Medo da cultura e cultura do medo: José Mojica e John Carpenter aproximados por Exorcismo negro (1974) e Halloween (1978)
Os contos de terror libertam sua imaginação libertando a sua realidade e consequentemente os seus sonhos.
Numa coletiva de imprensa, trajado com as unhas tradicionais de Zé do Caixão, José Mojica Marins afirma categoricamente: “o Zé do Caixão não existe”. E assim, somos levados a assistir Marins passar as festas de fim de ano no berço do seu célebre personagem: numa casa de campo com uma família bem tradicional. Exorcismo Negro transforma Marins em um personagem obrigado a lidar com sua criação. Ao longo da trama, eventos estranhos tomam conta da casa, decorada com símbolos religiosos, e conforme essa presença espiritual, estranha, demoníaca se apossa da casa e da família na volta de Mojica, fica claro que todo o mal é endógeno a estrutura da casa, escondido nos porões da família.
O filme é o retorno do Zé do Caixão ao cinema depois de um período de quatro anos em que Marins parecia ter abandonado o célebre personagem. A presença ausente de Zé desde a primeira cena reflete também sobre a condição do autor, atrelada a sua criação, o levando a todo lugar que vai, não importa quão pacato. Zé do Caixão é ao mesmo tempo causa e consequência dos eventos fantasmagóricos em O Exorcismo Negro porque uma vez que coisas estranhas começam a acontecer com a presença de Marins no recinto, a sombra da morte se projeta sobre o diretor.
Os anos 70, do crescimento da classe média, da moralização da sociedade brasileira, das pautas de costumes, da derrota definitiva do comunismo no país, consolidam a hegemonia da família e da religião na cultura brasileira, empurrando todo o resto para o campo da contracultura, lugar que vai ser ocupado pelos hippies tropicalistas, por boa parte do cinema, pela cultura de rua, de samba e de carnaval, um espaço próprio que passa ao largo da sociedade brasileira. O cinema de Marins não anda na contracultura, o diretor se interessou muito mais pelas margens da cultura. Zé do Caixão é a indigestão da imposição moral da classe média brasileira.
O personagem existe na tensão entre o que é visível e o que é contraditório na estrutura familiar tradicional. Ele é o que está fora da foto, o medo de toda tensão sexual e toda maldade e opressão que condicionam essa organização patriarcal e limitam as possibilidades de ser e existir das pessoas. Em O Exorcismo Negro, José Mojica se confronta com esse mundo que projeta o Zé do Caixão.
Já Michael Myers é ao mesmo tempo similar e antagônico ao personagem de Mojica. O monstro seminal criado por John Carpenter em Halloween (1978) é mais do que os dejetos da cultura moral capitalista. É a síntese do medo criado pelas contradições sociais econômicas desse sistema. O medo daquilo que se desvia da norma e portanto ameaça a existência fortemente idealista do subúrbio americano, construído na ideia de que a qualquer momento esse mundo pode ser destruído, a não ser que seja defendido. Esse conceito um pouco amplo e impreciso que se chama normalmente de cultura do medo nos permite olhar para Halloween de uma maneira abrangente. Myers é um filho da imoralidade, por isso mata sua irmã no ato sexual durante a primeira cena do longa, aliás, não é Myers que a mata, somos nós, sociedade, pelo menos isso que Carpenter quer dizer filmando o ponto de vista do menino para os assassinatos.
O status monstruoso que Myers ganha no imaginário social do subúrbio da classe média o transforma no inimigo ideal da cultura do medo. Ele assombra as casas, caça as suas vítimas, é imortal, invencível e se reproduz a cada vez que seu mito é contado. Essa é a principal semelhança de Myers e Zé do Caixão, o medo que se apodera das mentes da classe média é o que os faz imortais, pelo menos enquanto as pessoas tiverem medo. Mas se Myers representa a própria cultura do medo, esse instrumento de controle e defesa dos privilégios e do estilo de vida suburbano, Zé do Caixão é pior que isso, ele é todos os impulsos mais proibidos e pecaminosos que existem. O ritual que encerra O Exorcismo Negro é cheio de nudez, símbolos satânicos, sexo, tortura, bebida, é um desafio a tudo, e Zé do Caixão explica que o seu ritual não respeita nem os costumes nem os tempos do mundo.
Nos dois filmes a vitória final sobre os vilões não é o suficiente para livrar o mundo do mal, pois Laurie e Marins seguem habitando o território que cria a existência de cada um dos seus destruidores. Zé do caixão de dentro da cultura e Myers como consequência dela são intermináveis enquanto as estruturas morais permanecerem. E é isso que Marins nos mostra no olhar da menina escondendo Zé do Caixão ao final do filme sob o ritmo de “Bate o sino de Belém” e dos gritos das pessoas sofrendo no inferno.
O Problema Com o Pós Horror (Overland)
Notas do tradutor (Marco Leal):
Artigo escrito por Michael Brown, publicado em 15 de Maio de 2019 no site da revista Australiana Overland (e que pode ser conferida aqui).
Texto incrivelmente elucidativo que contesta não apenas o termo, mas principalmente o preconceito com o gênero por parte dos próprios diretores, que se recusam a chamar seus próprios filmes de “horror”.
Após seu filme de estreia em 2017, a alegoria racial de terror Get Out, ser indicado na categoria de Melhor Filme – Comédia ou Musical no Globo de Ouro, o diretor Jordan Peele rapidamente tomou medidas para evitar mal-entendidos sobre seu mais recente filme, Us, recorrendo ao Twitter no lançamento em março para afirmar firmemente: “Us é um filme de terror.”
A decisão de Peele de situar seu filme de maneira inequívoca dentro do gênero de terror foi necessária devido a uma aversão entre alguns críticos mainstream de veículos respeitáveis em aceitar o terror como uma forma cultural séria. Em um artigo recente para The Monthly, por exemplo, Shane Danielsen elogia o filme de estreia de Ari Aster, Hereditary, como um exemplar do que erroneamente tem sido chamado de “terror elevado” ou, em outros lugares, “pós-terror”. Esses termos têm sido usados ultimamente para discutir uma série de queridinhos da crítica e sucessos comerciais, como Hereditary, que são recebidos por alguns como evidência de um renascimento ou nova seriedade no cinema de terror. O problema é que as implicações de tais rótulos apenas revivem velhas suposições que trivializam a legitimidade do gênero e falham em engajar com seu rico e variado legado.
A desvalorização de Danielsen ao terror como um cinema de “sustos baratos” não é nova. No entanto, é sintomática de várias críticas e reflexões de segmentos da comunidade crítica que ficam coçando a cabeça diante da atual onipresença do terror e de sua aparente nova respeitabilidade. Começando, talvez, em 2014 com The Babadook, da diretora australiana estreante Jennifer Kent, o público cinematográfico foi favorecido com uma abundância de filmes bem recebidos que empregam tropos de terror, enquanto evitam as fórmulas narrativas excessivamente familiares das quais Hollywood costuma ser culpada. A lista inclui The Witch, de Robert Eggers, It Comes at Night, de Trey Edward Shults, It Follows, de David Robert Mitchell, Raw, de Julia DuCournau, A Ghost Story, de David Lowery, Get Out, de Peele, e A Quiet Place, de John Krasinski.
Embora tais filmes claramente se baseiem na linhagem do terror, parece haver uma ambivalência, senão uma aversão total, em simplesmente aceitar esses filmes como “terror”. Aster, ele mesmo, parece ter internalizado essa ansiedade. Ao discutir sua estreia, Hereditary, isso é o que ele disse quando foi perguntado sobre seu gênero:
“Eu acho que, se vou fazer um filme de terror, quero que ele caia naquele subgênero estranho de ‘terror elevado’. E por essa razão, quando estava apresentando o filme, descrevi-o como uma tragédia familiar que se transforma em um pesadelo.”
Até Peele sucumbiu a essa relutância na época, preferindo chamar seu filme indicado ao Oscar, Get Out, de “thriller social”. Por que, então, o terror se tornou uma palavra tão maldita, um gênero que não ousa dizer seu nome?
Na crítica citada acima, Danielsen realiza um manobra semelhante, declarando que Hereditary é “na verdade um drama psicológico”. Implícito em tais qualificações está a presunção de que o drama “social” ou “familiar” é, de alguma forma, a forma superior de expressão cultural, ainda mais se reivindica uma espécie de realismo psicológico. Não é surpresa, então, que Jason Zinoman, escrevendo para o New York Times, atribua o que ele chama, de forma descaradamente pejorativa, de “uma era de ouro do terror maduro” a uma mudança em direção a temas “antes reservados para dramas de prestígio”. Esses sentimentos se aderem a uma noção de drama que deve muito ao romance realista do século XIX e, subsequentemente, se adaptou ao cinema narrativo mainstream. A lealdade a tais modos de contar histórias não apenas ignora as inovações artísticas do século XX e XXI, mas também falha em reconhecer as contribuições únicas do terror para a história do cinema.
Parte da justificativa para o status “elevado” desses filmes parece ser essa ênfase no doméstico. Em The Babadook, é o relacionamento entre uma mãe em luto e seu filho que informa a presença monstruosa que espreita nas sombras de sua casa. Da mesma forma, The Witch, It Comes at Night, A Quiet Place e, mais vividamente, Hereditary têm como preocupação central a claustrofobia e a apreensão do espaço familiar. Mesmo uma familiaridade passageira com o gênero de terror, no entanto, certamente encontraria nos temas de isolamento, paranoia, luto, trauma e desintegração dos laços familiares desses filmes paralelos não apenas com o drama, mas mais profundamente nos espaços fechados do romance gótico – com suas assombrações subconscientes, relacionamentos disfuncionais e heranças familiares, das quais filmes como Hereditary são simplesmente o exemplo mais recente. No cinema, a família e o doméstico figuram pesadamente em filmes de terror, como Psycho, de Alfred Hitchcock, Rosemary’s Baby, de Roman Polanski, The Shining, de Stanley Kubrick, The Exorcist, de William Friedkin, Don’t Look Now, de Nicolas Roeg, ou até mesmo Antichrist, de Lars von Trier (que aborda muito do mesmo que Hereditary). Como os diretores desta breve lista atestam, a noção de que o terror elevado ganha sua distinção por ser impulsionado por autores também deve ser definitivamente descartada.
Tampouco se pode argumentar convincentemente que a priorização de questões raciais em Get Out ou a abordagem de políticas sexuais em It Follows registram uma nova consciência social no terror. Este é um território bem coberto por nomes como a exploração de classe por George Romero em Night of the Living Dead, a vitimização racial em Candyman, de Bernard Rose, ou o comentário de Takashi Miike sobre a objetificação feminina em Audition, que ajudou a liderar o ciclo do J-horror. Mesmo a típica oferta de monstros envolvendo múmias ou zumbis reflete em seu melhor aspecto ansiedades europeias sobre a retaliação por práticas coloniais violentas e a supressão de histórias e populações regionais (no Egito e no Caribe, por exemplo). Também é duvidosa qualquer afirmação de que esse novo ciclo de filmes é mais experimental do que o terror convencional. Certamente um gênero que inclui Eraserhead, de David Lynch, Suspiria, de Dario Argento, ou o clássico expressionista alemão The Cabinet of Dr. Caligari, de Robert Wiene, merece crédito não apenas por explorar vários conceitos, mas por expandir a linguagem do cinema em si.
O apelo duradouro do terror é sua capacidade de espreitar além da borda de quaisquer limites sociais e culturais que nervosamente tentamos nos esconder, confrontando as aterrorizantes inadequações de nossas concepções intelectuais – incluindo os ideais humanistas aos quais o drama de prestígio se agarra enquanto busca incessantes garantias de sua própria importância. O terror remove as fantasias consoladoras sobre as quais o eu moderno é construído, levando-nos aos recantos sombrios além do que pensamos saber. O que poderia ser mais “maduro” do que isso? Certamente, o cinema de terror teve sua cota de fracassos derivados e formulaicos – pense nos filmes diretos para VHS dos anos 80 – mas o mesmo pode ser dito para qualquer gênero que caia nas armadilhas de produtores em busca de fazer dinheiro rápido com o público mais jovem.
O que, então, marca esse último ciclo de filmes como algo além de uma continuação das preocupações bem estabelecidas do terror? A influência da produtora independente A24 merece algum crédito. Juntamente com The Witch, A Ghost Story e It Comes at Night, a A24 também é a força por trás do vencedor do Oscar Moonlight, assim como Under the Skin, de Jonathan Glazer, e The Lobster, de Yorgos Lanthimos. Esse catálogo diversificado e bem considerado fala da disposição da empresa em apoiar cineastas mais jovens e assumir riscos criativos. Essa mudança não se limita ao terror, mas está evidente em toda a produção cinematográfica mainstream. À medida que o cinema perde parte de seu público para a televisão em longas temporadas, talvez não seja surpreendente que Hollywood tenha sido forçada a repensar suas práticas de produção e tentar replicar o sucesso da pequena tela com conteúdo dirigido por criadores.
Termos como “elevado” ou “pós-” terror são pouco mais do que palavras de marketing projetadas para rebranding do terror e aumentar sua audiência. É cedo demais para determinar onde esses híbridos de terror e drama se encaixam – apenas o tempo dirá onde tais filmes se situam na história do gênero. No final, o sucesso de um gênero é determinado menos por executivos de cinema ou firmas de marketing e mais pelas práticas do público e pelas comunidades participativas.
Em vez de afirmar que o terror está tendo um momento de “prestígio”, talvez devêssemos dizer que o drama está, mais uma vez, tendo um momento de terror. À medida que o cenário político se torna cada vez mais paroquial e a mudança ambiental avança em um ritmo caótico, não é surpreendente que as histórias que contamos a nós mesmos reflitam essas ansiedades. Sob o peso de forças externas hostis – tanto reais quanto imaginárias – o drama recua para as consolações da família, para o interpessoal, apenas para descobrir, tardiamente, que carregamos nossa programação social dentro de nós como uma herança gótica, e que o verdadeiro horror sempre foi a incapacidade de escapar das limitações de nossos eu excessivamente humanos.
Como Filmes de Pós-Horror Estão Tomando Conta do Cinema (The Guardian)
De "It Comes at Night" a "A Ghost Story", uma nova forma de horror está surgindo nos cinemas, substituindo os sustos repentinos pela angústia existencial. Conversamos com os autores que estão quebrando todas as regras.
Notas do tradutor (Marco Leal):
Artigo escrito por Steve Rose, publicado em 06 de Julho de 2017 no site do jornal britânico The Guardian (e que pode ser conferida aqui).
Talvez o texto central para a justificação do tema dessa edição, causou tantos protestos e debate que o próprio autor teve que publicar uma tréplica.
A questão que Steve aponta é verdadeira: existem características em comum nos filmes mencionados. O que falta, e daí se a ele ou ao artigo, é a compreensão de que essa movimentação em direção à atmosfera e ao drama não é algo novo, e que o horror talvez tenha sido o gênero que mais se reinventou ao longo dos anos.
De valioso, estão também as citações dos próprios autores dos filmes, que contribuem um pouco para essa ideia de um suposto movimento cinematográfico na época onde esses são praticamente inexistentes.
"‘NÃO VÁ VER IT COMES AT NIGHT, NÃO VALE A PENA ASSISTIR, É O PIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS”. O Twitter estava cheio de postagens assim após o lançamento do filme nos EUA no mês passado. O público em geral esperava um horror tradicional; ao saírem, estavam incertos sobre o que tinham assistido e não gostaram. Críticos e uma certa parte dos espectadores adoraram o filme, mas sua classificação no Cinemascore – determinada pelas reações do público na noite de estreia – é um D.
É possível entender a confusão. O título, por si só, sugere fortemente que It Comes at Night é um filme de terror. O mesmo acontece com o trailer do filme, que apresenta ingredientes como um cenário pós-apocalíptico, uma cabana na floresta, máscaras de gás, espingardas, prisioneiros, um patriarca severo (Joel Edgerton) e advertências para nunca deixar portas destrancadas ou sair à noite. Não se trata de propaganda enganosa, é apenas que este filme tenso e minimalista não segue as regras aceitas."
“Eu não me propus a fazer um filme de terror propriamente dito,” diz Trey Edward Shults, o roteirista e diretor de 28 anos do filme. “Eu apenas queria criar algo pessoal e foi isso que se tornou. Coloquei muitos dos meus próprios medos nele, e se medo se iguala a terror, então sim, é terror. Mas não é um filme de terror convencional.”
Considerando que o terror é o lugar onde exploramos nossos medos mortais e sociais, o gênero é, na verdade, um dos espaços mais seguros do cinema. Mais do que qualquer outro gênero, os filmes de terror são governados por regras e códigos: vampiros não têm reflexos; a "garota final" prevalecerá; os avisos do atendente do posto de gasolina/nativo americano místico/senhora estranha serão ignorados; o mal será, em última análise, derrotado ou pelo menos explicado, mas não de uma forma que feche a possibilidade de uma sequência. As regras são nossa lanterna enquanto nos aventuramos no desconhecido. Mas, em alguns aspectos, elas transformaram o terror em um reino do que Donald Rumsfeld descreveria como “desconhecidos conhecidos”.
Não é de se admirar que alguns cineastas estejam começando a questionar o que acontece quando você apaga a lanterna. O que acontece quando você se desvia dessas convenções rígidas e se aventura na escuridão? Você pode encontrar algo ainda mais assustador. Ou pode descobrir algo que não é assustador de forma alguma. O que pode estar surgindo aqui é um novo subgênero. Vamos chamá-lo de “pós-terror”.
Para seus fãs, pelo menos, It Comes at Night é ainda mais assustador porque você não sabe exatamente de onde o horror vai vir. Há um apocalipse que nivela a civilização, um vírus contagioso e uma floresta à la Blair Witch, mas o filme está mais interessado nos horrores internos. Edgerton e sua família formam uma aliança nervosa com outra que está em uma situação semelhante, e com espingardas à mão e confiança em falta, a ameaça de violência está sempre próxima. Há dor, culpa, arrependimento e paranoia. Existem laços familiares que passam de protetores a restritivos. O filho adolescente é atormentado por pesadelos. E há também a escuridão, da qual as imagens do filme fazem um uso extraordinário. É impressionante o quanto pode ser desconcertante apenas assistir alguém com uma lanterna vagando pela noite escura. É mais fácil identificar o que não é assustador.
“Estou ciente de que o título soa como um filme de monstro qualquer, mas ele se relaciona tematicamente com o filme, não de forma literal,” diz Shults. Ele desligou todas as luzes em sua casa no Texas e andou com uma lanterna para sentir o clima do filme, confessa. Ele também pesquisou genocídios e ciclos de violência na sociedade. Mas a história realmente vem de suas ansiedades pessoais. Shults fala sobre seu pai afastado, que tinha um histórico de dependência e morreu pouco antes de ele escrever o filme. Ele confessou seu arrependimento ao filho em seu leito de morte.
“A morte é o desconhecido. Nós não sabemos,” ele diz, “e isso é sempre aterrorizante. Mas o que é ainda mais assustador é o arrependimento. A maneira como você viveu sua vida, as decisões que tomou. Isso me aterroriza o tempo todo.” Como um ex-estudante de administração que abandonou a faculdade contra os conselhos dos pais para seguir a carreira de cineasta, o medo de tomar a decisão errada estava claramente presente para Shults. O que o encorajou a mudar de carreira foi conseguir um emprego com o autor local Terrence Malick, trabalhando em The Tree of Life. “Não sei se ele sabe, mas ele mudou o curso da minha vida,” diz Shults. “O que me inspirou foi o quão não ortodoxo você pode ser... apenas pense fora da caixa e encontre a maneira certa de fazer um filme para você.”
Esse não é um sentimento que os produtores de terror realmente querem ouvir hoje em dia. O terror é o gênero mais lucrativo da indústria e está em plena ascensão. Este ano está prestes a ser o melhor da história do terror, liderado por títulos como Get Out (que arrecadou $252 milhões globalmente com um orçamento de $4,5 milhões) e Split, de M. Night Shyamalan ($277 milhões com um orçamento de $9 milhões). Como resultado, há um mercado para filmes de terror com baixos orçamentos e grande apelo popular, o que basicamente significa variações em temas bem estabelecidos: possessão sobrenatural, casas assombradas, psicopatas, zumbis.
Esse é o mercado contra o qual o pós-terror está reagindo. Shults cita a influência de Roman Polanski, cujas aclamadas “trilogias de apartamento” – Repulsion, The Tenant e Rosemary’s Baby – foram exercícios semelhantes em reformular os tropos do terror com uma sensibilidade autoral, assim como Don’t Look Now, de Nicolas Roeg, e The Shining, de Stanley Kubrick. Mas esses filmes foram feitos na era do terror bem financiado pelos estúdios; agora, cineastas jovens como Shults precisam causar uma impressão distinta com um orçamento independente. (Vale mencionar que It Comes at Nightjá recuperou seu orçamento várias vezes.)
Vários outros filmes recentes poderiam se encaixar na categoria de pós-terror. The Witch, por exemplo, do ano passado, que leva uma devota família do século XVII para a floresta da Nova Inglaterra. Novamente, o título e o trailer sugeriam um filme de terror convencional, mas, embora estivesse imerso em uma autêntica lore satânica, The Witch era escasso em sustos repentinos, perseguições frenéticas e explicações. Pelo menos tinha uma bruxa. Mas, mais uma vez, foi comercializado para o público mainstream, que se sentiu enganado e tomou o Twitter com comentários como “O PIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS”.
Tomando uma abordagem diferente, Personal Shopper, de Olivier Assayas, entrelaçou elementos sobrenaturais em seu estudo contido de uma assistente de moda parisiense, interpretada por Kristen Stewart. Ela busca “um sinal” de seu irmão gêmeo falecido. Ela acredita em fantasmas, e pelo que vemos, não está inventando, então, quando um stalker começa a enviar mensagens de texto, não sabemos se ele está vivo ou morto. Tecnicamente, é um filme de terror, mas ninguém confundiria Personal Shopper com A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2. De maneira semelhante, Nicholas Winding Refn trouxe supermodelos vampiras sanguinárias para o mundo da moda de LA em The Neon Demon – uma variação em tropos de terror já conhecidos, mas de forma alguma tradicional.
O filme que realmente pode selar o pós-terror é A Ghost Story, um filme extraordinário e exploratório que estreará nos EUA esta semana (e chegará ao Reino Unido em agosto). Novamente, é um título que cria certas expectativas. Há um fantasma, mas é Casey Affleck envolto em um lençol branco com dois buracos para os olhos. Ele é basicamente um emoji humano de fantasma. Após ser morto em um acidente de carro, ele assombra a casa de sua jovem viúva devastada, interpretada por Rooney Mara, mas ela não pode vê-lo. Quando ela se muda, ele fica preso lá. Para sempre. Novos inquilinos vão e vêm. O edifício em si eventualmente desaparece. O tempo se enrola sobre si mesmo, e a história se expande do trauma pessoal para os reinos da especulação cósmica.
“Eu queria me envolver com os arquétipos e a iconografia dos filmes de fantasmas e das casas assombradas, sem nunca realmente cruzar a linha para ser um filme de terror,” diz o roteirista e diretor David Lowery, que fez A Ghost Story com os lucros de seu filme anterior, um remake de Pete’s Dragon, da Disney. “Olhe para qualquer filme de terror e você pode rastrear até uma ansiedade social ou pessoal específica, e este filme não é diferente nesse aspecto: eu estava passando por uma crise existencial de grande perspectiva sobre meu lugar no universo, e ao mesmo tempo enfrentando um conflito muito pessoal com minha esposa sobre para onde íamos nos mudar. E tudo isso estava envolvido no meu desejo de longa data de fazer um filme com um cara em um lençol.”
Lowery não é um esnobe, no entanto: “Eu vou ver a maioria dos filmes de terror que saem, mas geralmente assisto com as mãos sobre os olhos.” Ele fala com admiração de The Conjuring 2. Mas Lowery também se inspira em uma visão mais oriental sobre espíritos e o sobrenatural. Goodbye, Dragon Inn, de Tsai Ming-liang, por exemplo, se passa em um cinema “assombrado” onde fantasmas e vivos sentam lado a lado. Ou os filmes de Apichatpong Weerasethakul, da Tailândia, em que o fantasma de uma esposa morta pode aparecer casualmente na mesa de jantar ou um filho pode se transformar em um wookiee que vive na floresta, e ninguém se surpreende. A carreira inteira de Weerasethakul é basicamente pós-terror.
É significativo que It Comes at Night, The Witch e A Ghost Story tenham sido lançados pela A24 Films, uma empresa jovem que já encontrou sucesso no Oscar com filmes como Moonlight e Room. Se alguém está empurrando o terror para novos reinos, são eles, mas não está na hora disso? Sempre haverá espaço para filmes que nos reaproximam de nossos medos primordiais e nos aterrorizam. Mas, quando se trata de enfrentar as grandes questões metafísicas, a estrutura do terror corre o risco de ser muito rígida para encontrar novas respostas – como uma religião em declínio. Escondido além de seu cordão está um vasto nada negro, esperando que iluminemos o caminho.
Cor e Mito em Gritos e Sussurros (Allegheny College)
Notas do tradutor (Marco Leal):
Artigo escrito por P. Adams Stiney, e publicad em 1989, na revista Film Criticism da faculdade Allegheny.
Bergman talvez seja o diretor mais fundamental do horror sem ter feito, propriamente, filmes de horror. Seus dramas lidavam com temas existenciais, religiosos e psicológicos, e se provocam um olhar de desespero ao lado impiedoso do mundo, o fazem sem necessariamente se construírem em torno do medo e sua iconografia.
O artigo aborda a questão da cor, tão central para este filme de Bergman, e do mito, e como estes se relacionam em um de seus filmes que mais conversa com o gótico e o fantasmagórico.
Abordarei dois aspectos de "Cries and Whispers": seu uso de cor e sua estrutura simbólica.
Primeiro, sua cor. Na rara companhia de filmes como "Mamie" e "Il deserto rosso", "Cries and Whispers" funde seu significado ao uso controlado da cor. Certamente, Bergman nunca repetiu esse experimento na organização cromática. Brilhantemente simples, é um filme de vermelhos, até mesmo pontuado por apagões vermelhos em vez de desvios escuros. Abrindo com uma luz crepuscular no jardim de esculturas de uma mansão do século XIX, o filme rapidamente se desloca para o interior, onde se fixa, com um único flashback externo, até seu epílogo. A casa é notável por sua estofaria vermelha: paredes e móveis em um vermelho ricamente saturado destacam os vestidos brancos das três irmãs, Agnes, Karin e Maria, e de sua serva Anna, que se vestem seguindo o modelo de sua mãe falecida, que aparece em um flashback.
Agnes está à beira da morte, aparentemente devido a um câncer no útero ou estômago. Após sua morte, o motivo branco se transforma em preto. O roteiro de Bergman, que difere significativamente do filme finalizado, oferece dicas fascinantes sobre a cor. Ele apresenta o cenário como uma carta para seu elenco, dizendo que "desde a minha infância eu imaginei o interior da alma como uma membrana úmida em tons de vermelho" (Bergman 60). Além disso, a imagem das quatro mulheres vestidas de branco se movendo contra um papel de parede vermelho o assombrou por mais de um ano antes de ele começar a fazer o filme.
Após o breve e sutil espectro do amanhecer e um deslizamento carinhoso de um relógio antigo em azul e dourado, uma concentração em vermelho e branco se apodera e mantém o filme. Mesmo quando a Mãe aparece, nos levando por um curto período de tempo para fora novamente em um mundo muito verde, ela emerge primeiro em seu vestido branco, dissolvendo-se a partir de um close em um botão de rosa branca, segurando um pequeno, brilhoso livro vermelho.
Talvez o ato de organização de cor mais brilhante e simples venha da colocação dramática do que chamei de epílogo, na verdade um último flashback motivado pela leitura do diário de Agnes por Anna após sua morte. A família deixou a casa, dispensando Anna de seus serviços com a oferta de um presente que ela recusou. Em vez disso, ela pega o que sabe que não seria autorizada a ter, embora os outros não o valorizassem: o diário de Agnes. Enquanto lê sobre uma tarde extática de clima perfeito e companheirismo entre irmãs, ouvimos a narração de Agnes e vemos um último flashback de Anna balançando as três irmãs em um balanço de dois lugares, em meio a cores outonais exuberantes. A efusão natural é ainda mais impressionante por ser reservada e isolada no final do filme. O contraste tonal mudou de branco sobre vermelho para preto sobre vermelho, mas agora os laranjas e ocres são abundantemente exibidos em uma cadenza visual. O arranjo geral de blocos de cores transforma o que seria uma bonita variedade de cenas em uma sequência musical, a elegância pictórica em significado.
Que significado? Comecemos pelo final e avancemos para trás. As cores outonais evocam a consumação das estações, uma linda morte da natureza. É outono (ou verão sueco); o penúltimo brilho da tonalidade de cor, logo antes da morte vegetal, corresponde à recuperação imanente na leitura de Anna das palavras de Agnes. Não é um renascimento, uma primavera; em vez disso, é uma repetição em um registro diferente da temporalidade de todo o filme. Mas agora conhecemos Agnes a partir da perspectiva de sua morte, então o flashback descreve uma zona liminal, onde a memória está sob o signo da morte, mesmo que seja linda em sua prolongação do fim.
Essa liminalidade é uma chave para o filme. No seu centro dramático, onde a lógica dos sonhos prevalece, o corpo de Agnes provoca conforto nas três mulheres sobreviventes. Karin, recorrendo a um lugar-comum de decoro, se recusa a se envolver com a morta e insiste que a experiência é um sonho; Maria temporariamente demonstra mais simpatia, lembrando-se de como se aninhou com Agnes uma vez em um momento de terror infantil, mas recua ao beijo do cadáver; Anna, sozinha, embala o corpo morto em uma imagem frequentemente reproduzida que sugere uma Pietà, mas também mostra um seio pleno ao lado do rosto "morto", incapaz de nutrir. Como Mater dolorosa, a serva tem uma fé religiosa na liminalidade da própria morte que é consistente com a primeira imagem que tivemos dela no início do filme, acordando e orando ao lado dos fetiches de sua filha morta.
Rastreando o filme mais para trás, em direção ao seu começo, podemos ver que essa imagem materna e religiosa da fusão entre morte e vida inverte o primeiro flashback em que a rosa branca contra a parede vermelha acionou a memória de seu negativo, o livro vermelho como uma mancha de sangue no vestido branco da Mãe. Nessa memória, Agnes se lembra de acariciar o rosto da mãe. (O roteiro acrescenta que a Mãe mais tarde retractou esse momento de afeto, assim como Karin e Maria negam seu momento anterior de reconciliação após o funeral de Agnes.) O elaborado vínculo de gestos, tanto rítmicos quanto inversos, ao longo do filme não deve nos surpreender; pois aqui, como muitas vezes em outras obras de Bergman, os diferentes personagens do filme são vetores de um único sistema de fantasia que gera sua complexidade narrativa espalhando e redistribuindo seus aspectos entre pessoas imaginadas que, em essência, são uma única presença assombrosa. Anna é tanto a Mãe ausente quanto Maria (Liv Ullmann interpreta tanto Maria quanto a Mãe); até mesmo a miserável Karin (que pode ter seu nome derivado da própria mãe do cineasta) é outra versão da Mãe, seu rosto mais ameaçador.
O ícone mais remoto da zona liminal entre a vida e a morte pode ser vislumbrado no primeiro plano do filme, no momento quintessencial da liminalidade: a aurora. Muito brevemente, vemos uma estátua clássica de um homem segurando uma lira: Apolo, o deus dos poetas, ou, como eu preferiria, Orfeu, o poeta da vida na morte e do poder da linguagem sobre a natureza. Agnes, a representante de Bergman no filme, é ela mesma uma artista amadora; ela atravessa a barreira da morte e parece voltar; sua Eurídice, a Mãe, está associada ao mundo verde na única vez em que ele aparece no filme; sem ela, a natureza aparece em seu estágio de decomposição.
A linguagem em si é multiforme e ambígua neste filme: nunca aprendemos o conteúdo do brilhante livro vermelho da Mãe, mas a leitura em voz alta de "Os Papéis de Pickwick" marca o auge da coesão familiar; a troca entre Karin e Maria que parece marcar sua reconciliação é silenciada por uma passagem musical de Bach; a frase central de Karin – "um tecido de mentiras" – repetida duas vezes, aparentemente descrevendo seu casamento com Frederick, mas de outra forma não explicada, funde corpo e linguagem em uma metáfora de engano; a eulogia untuosa do ministro se transforma em um grito de alienação agnóstica; o médico dá voz ao espelho de Maria em um diagnóstico cruel; o cadáver de Agnes fala e, mais dolorosamente, seu diário se torna uma voz do além-túmulo. O título do filme descreve dois limites da linguagem expressiva, mas vem de uma resenha de uma composição de Mozart (Gado 408).
Os homens do filme são todos figuras sombrias para os mortos, o pai radicalmente ausente. Alternadamente ferozes e fracos, eles sublinham a ausência da presença masculina na vida de Agnes. O médico, amante ocasional de Maria, e Frederick representam o poder punitivo da masculinidade, enquanto o marido suicida de Maria e o ministro ilustram a fraqueza masculina como autoabsorção.
Dentro da economia visual e cromática do filme, a ferida auto-infligida do marido de Maria (quando ele reage à dica de que ela dormiu com o médico) faz parte de uma equação simbólica velada com o vidro quebrado que Karin insere em sua vagina e seu eco visual final: o livro vermelho contra o vestido da Mãe como uma mancha menstrual deslocada. Neste mundo onírico e liminal da mulher metamórfica, fundindo fantasias de defloramento, menstruação e castração, os quatro homens são versões do auto-ódio masculino em registros sadistas e masoquistas.
Sabemos pela autobiografia de Bergman a importância fetichista que ele atribui ao Lanterninha Mágica. No flashback da Mãe em "Cries and Whispers", há uma lanterninha mágica associada a presentes de Natal, como na autobiografia e em "Fanny e Alexander". Neste caso, o mundo representado na projeção da lanterninha mágica vem dos contos de fadas dos irmãos Grimm. Poderíamos até dizer que a lanterninha mágica representa simultaneamente o presente dos contos de fadas, e, portanto, a maquinaria de defesa psíquica para exteriorizar terrores infantis e edípicos, e o presente do cinema para o incipiente cineasta.
Quero reconhecer minha profunda dívida ao livro de Bruno Bettelheim, The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales, neste ponto. Grande parte do que terei a dizer na parte restante deste trabalho surgiu da leitura de seu livro enquanto pensava sobre o filme de Bergman. Bettelheim aponta a persistência de um eixo simbólico vermelho/branco em contos de fadas, que marca a transição da inocência sexual para a puberdade e maturidade nas meninas. Encontramos isso nas três gotas de sangue no lenço de "A Princesa Ganso", nas três gotas de sangue na neve que anunciam o nascimento de "Branca de Neve" (na versão italiana convencional, há três gotas de sangue no leite) e no furo do dedo de "A Bela Adormecida". De forma mais sinistra, os pés sangrantes das irmãs de "Cinderela" refletem esse mesmo motivo de menstruação e defloramento sem o contraste branco.
Em Cries and Whispers, a automutilação de Karin ecoa esses pés sangrantes com um reconhecimento genital mais explícito. A análise dura do médico sobre a beleza madura de Maria enquanto ela se observa no espelho pode ter sua origem imaginativa na mãe narcisista de Branca de Neve. O conto de "João e Maria", o verdadeiro assunto da projeção da lanterninha mágica, é particularmente adequado para refratar o complexo de imagens que geram Cries and Whispers. Bettelheim nos diz:
"A mãe representa a fonte de toda a comida para as crianças, então é ela quem agora é vivenciada como abandonando-as, como se em um deserto. É a ansiedade da criança e a profunda decepção quando a Mãe não está mais disposta a atender todas as suas demandas orais que o levam a acreditar que, de repente, a Mãe se tornou não amorosa, egoísta, rejeitante... [A casa de doces] é a mãe original que dá tudo, a quem toda criança espera encontrar mais tarde em algum lugar do mundo, quando sua própria mãe começa a fazer exigências e impor restrições... A bruxa... é a personificação dos aspectos destrutivos da oralidade... Quando as crianças cedem a impulsos indomáveis, simbolizados pela voracidade desenfreada, elas arriscam ser destruídas" (Bettelheim 159, 161; reticências minhas).
A gratificação oral e a agressão oral são componentes proeminentes do filme de Bergman, cujo próprio título enquadra a fala com sugestões labiais (sussurros) e dentais (gritos). A sedução de Maria pelo médico envolve uma cena sensual e um tanto gananciosa de comer; em contraste direto, a refeição silenciosa de Karin e Frederick, na qual ela derrama vinho e nega a ele prazer sexual, precede a horrível mutilação de seus genitais, que também termina com ela esfregando o sangue na boca e rindo; Agnes vomita, e Anna passa pelos gestos de amamentar.
O conto de fadas começa posicionado na zona de liminalidade: "À beira da floresta." Essa borda se tornou o limiar da vida e da morte, e a casa de doces um interior vermelho semelhante a um útero. Para Agnes, o câncer é a bruxa, devorando-a de dentro para fora. Como artista amadora, ela é ao mesmo tempo a encarnação da estátua órfica e o objeto de sua busca poética. Sua morte encena uma fantasia na qual um ministro (como o próprio pai de Bergman) deve reconhecer sua espiritualidade superior; seus dois irmãos (Bergman tinha dois) admitem a rasura de seu afeto: e a figura da mãe se transforma em uma Madonna, que aprendeu a lição dolorosa de perder uma criança (uma fantasia ecoando dos filmes de Bergman, de Prisão até este), incarnada como Anna, uma sedutora que incita sua vítima a destruir a si mesma por inveja e humilhação representada por Maria, e uma vagina dentada castradora, Karin, rindo como uma bruxa macabra para as consequências destrutivas dos impulsos eróticos da criança.
Então, fazendo Gritos e Sussurros, Bergman novamente re-encena sua fantasia de morrer e viver para ver a perda e o remorso que sua morte causou. A imaginação pode atribuir essa morte à culpa por desejar a Mãe de forma erótica. As imagens aterrorizantes da vagina mutilada bloqueiam a fantasia de relação com a Mãe. Na verdade, a ambiguidade do gesto—ela está tentando repelir Frederick ou atraí-lo para que ele se castrasse?—colapsa a proibição em punição. Na estrutura do conto de fadas, Karin corresponde à bruxa.
Na história de Maria, essa culpa é simbolicamente projetada na mãe como sedutora, cuja busca por prazer privaria sua filha (podemos substituir por filho; aqui, como em outros momentos, Bergman se defendeu contra referências autobiográficas ao transpor os gêneros) de um pai. Assim, Maria cumpre o papel da mãe no conto de fadas que falha em cuidar de seus filhos e os abandona na floresta. Mas em Anna temos a Mãe que dá tudo, que perdeu sua filha (novamente, leia-se filho). A substituição mulher-por-mulher é evidente na alusão à Pietà.
A lição de "João e Maria", segundo Bettelheim, é que a criança deve aprender a conter seus desejos infantis e conquistar a autossuficiência por meio de sua própria engenhosidade. A engenhosidade de Cries and Whispers é a transformação órfica do terror e da arte, da perda da Mãe na riqueza musical das cores outonais e na autossuficiência da memória.
Entrevista | John Carpenter (Cinema Daily)
O CULPADO DE TUDO
Notas do tradutor (Marco Leal):
Entrevista conduzida pelo repórter Nobuhiro Hosoki, por e-mail e publicada em 22 de Outubro de 2021, traduzida diretamente do site Cinema Daily (que pode ser conferida na íntegra aqui). Foram mantidas apenas as perguntas e respostas entre o entrevistador e o entrevistado, com a introdução original sendo excluída desta tradução. Assim como em outras entrevistas, trechos podem ser cortados da tradução a depender do tradutor.
Na introdução, Nobuhiro conta como conseguiu a entrevista por meio de um encontro com Sandy, esposa de John Carpenter, e que ele concordou com a entrevista desde que fosse feita por e-mail, o que fica evidente com as respostas, aparentemente feitas como uma tarefa.
De interessante, para o tema, é a maneira como Carpenter fala sobre Halloween e sobre o legado do filme.
Q: Você compôs toda a série Halloween e fez um arranjo do tema de Halloween. Essa trilha é assombrosa, como ela surgiu?
John Carpenter: Necessidade.
Q: Estou ciente de que o filme tinha um orçamento baixo, mas como você fez a música em vez de usar outros músicos? Pode detalhar seu processo de criação da música? Que tipo de tentativa e erro você enfrentou para fazer a canção tema?
John Carpenter: Não houve tentativa e erro na criação da música para “HALLOWEEN”. Eu sabia que iria usar esse tema que desenvolvi ao longo dos anos. Mas era baseado no meu pai, que me ensinou sobre compasso 5/4.
Q: Depois que você fez o filme original, disse que nunca quis fazer uma sequência, porque não havia mais nada a dizer, mas a série continuou. Em 2018, uma sequência direta do original foi lançada. Como Jason Blum e David Gordon Green abordaram você sobre fazer uma sequência do original? A série Halloween capturou a relação entre a família Myers — que apareceu no primeiro filme — e a existência de Laurie — que tem uma conexão particularmente forte com eles.
O que é descrito no trabalho mais recente. Quanto da sua ideia para a história de Halloween (2018) e “Halloween Kills” (2021) você deu para manter uma sequência adequada?
John Carpenter: Antes de mais nada, eu não estava fazendo a sequência. Nunca dirigi uma sequência de “HALLOWEEN”. David e Danny McBride criaram as histórias.
Q: Eu sabia que você não fez a sequência, mas queria saber que tipo de conselho ou bênção você deu a David, Danny e eventualmente a Jason Blum para que eles aprovaram a produção do filme; qual foi sua reação em relação aos dois filmes?
John Carpenter: Participei do desenvolvimento de ambos, “HALLOWEEN” e “HALLOWEEN KILLS”, mas não houve bênção envolvida.
Q: Jamie Lee Curtis era adolescente quando você a escalou para o primeiro filme. Quais foram as qualidades significativas que se destacaram para você ao escolhê-la como protagonista?
John Carpenter: Jamie era uma atriz talentosa. Ela era bonita e carismática.
Q: Sim, ela possui todas essas qualidades, mas eu pessoalmente acho que há mais. Que tipo de abordagem ela teve no filme original que você achou diferente de outras atrizes?
John Carpenter: Jamie Lee fez uma leitura para mim. Ela era perfeita para o papel. Eu achava que ela tinha uma força interior, uma vontade de sobreviver, que usei no filme.
Q: Qual foi sua inspiração ao criar o homem das sombras, Michael Myers? Há algum filme que te inspirou a criar esse personagem icônico? Mesmo sendo atacado por pessoas, ele nunca pronunciou uma palavra — qual foi a razão de você mantê-lo assim? Fale sobre o elemento imortal — mesmo sendo baleado dezenas de vezes, ele não morre. O público sai com um medo interminável.
John Carpenter: Michael Myers era uma força do mal. Ele era menos um ser humano e mais um elemento. Foi essa falta de caracterização que o tornou assustador. Eu mantenho minha resposta.
Q: Quais são os ingredientes importantes para um grande filme de terror?
John Carpenter: Não há regras.
Q: É porque você encontra uma apreciação mais profunda pelo terror que foi reinventado por outros jovens diretores? Que outros diretores de terror te surpreenderam?
John Carpenter: O terror é o gênero mais antigo. Ele estava lá no começo do cinema. Cada nova geração reinventa o terror para si mesma. Todos nós temos medo. É por isso que o terror é um gênero tão universal.
Q: No próximo ano, será lançado “Halloween Ends”. Como você estará envolvido com isso — como produtor executivo e compositor, assim como nos filmes anteriores, conforme dito no IMDB? Você tem algo a dizer sobre o toque final?
John Carpenter: Serei produtor executivo e compositor em “HALLOWEEN ENDS.” Dou minha opinião e assisto basquete na TV.
Q: O título sugere que este será pelo menos um desfecho para o cenário entre Jamie Lee Curtis e Michael Myers. Que tipo de memórias você quer deixar para trás neste filme?
John Carpenter: Quero que o público se divirta muito ao assistir “HALLOWEEN ENDS.”
Q: Por que você colocou seu nome acima do título no filme original? Foi uma escolha consciente, de certa forma, para assumir a posse do filme?
John Carpenter: Uma escolha consciente. Estou assumindo a posse dos meus filmes.
Q: Quão eficaz ou importante, como cineasta, foi continuar fazendo seus próprios filmes? Você tem algum conselho para jovens diretores sobre como possuir seu conteúdo?
John Carpenter: O corte final é essencial para os diretores. Eu encorajo cada jovem diretor a lutar por sua visão.
Q: Por que você acha que este filme teve uma base de fãs tão grande e ressoou com o público por tanto tempo?
John Carpenter: Porque é assustador.
Q: Eu acho que há muitos filmes de terror por aí tão assustadores quanto Halloween. Mas a maioria deles desapareceu ou as pessoas se esqueceram deles. Acredito que há mais em Halloween do que apenas ser assustador, como a temática assombrosa que permeia a série. Todos os anos temos o Halloween, que nos lembra do filme original e inspirou alguns jovens cineastas a seguir seus passos.
John Carpenter: Existe um exército de jovens diretores morrendo de vontade de contar novas histórias e mostrar seu talento. Cada diretor tem seu próprio caminho na indústria cinematográfica. É uma tarefa difícil, mas um caminho que vale a pena trilhar.
Clipping. e a Abstração do Horror Urbano
Você, que mora em uma metrópole e nunca presenciou:
Trilha de sangue numa avenida movimentada
Porrada generalizada com direito a tiro pra cima
Gritos sem explicação que acordam a vizinhança inteira
Múltiplos assaltos a mão armada
Então você não mora em uma metrópole.
A inevitável abstração do horror urbano é, na minha opinião, a mais visceral e complexa categoria do gênero. Não tem rosto, não tem aviso prévio, a violência humana é de natureza imprevisível e simples de entender; a mais real, trivial e instintiva forma de falar sobre horror. O ano de 2020 foi um terror por si só, um para os estudiosos e os livros de história tentarem explicar, além do fator óbvio que fez deste ano uma gigantesca torre de estrume, 2020 também foi um ano repleto de controvérsias políticas e sociais.
"Donald Trump is a white supremacist, full stop
If you vote for him again, you're a white supremacist, full stop
Call it like it is, and then let the rims spin 'til they full stop
Put one up for Big Floyd, the march is not goin' to stop"
- Chapter 319
"Visions of Bodies Being Burned" é o segundo disco conceitual de horror sci-fi do grupo clipping. Herdando a temática lírica de "There Existed an Addiction to Blood", mas ao mesmo tempo muito mais confortável com a sonoridade mais áspera e industrial; os minutos finais das duas primeiras faixas flertando com a Noise Music quase como artefato de jumpscare. Afinal de contas, esse é um disco de histórias aterrorizantes.
Os - muitos - interlúdios entre as principais faixas do disco são artifícios sonoros imprescindíveis para a construção estética. "Wytchboard" e "Drove" sendo urgentes para as faixas que as precedem. "Say The Name" evoca imagens de slashers dos anos 90, mas principalmente "Candyman".
"Eaten Alive" também referencia o filme do mesmo nome, do diretor Tobe Hooper. O último terço da canção serve de noisescape e interlúdio para "Body for the Pile" que é de longe uma das faixas mais movimentadas e experimentais do projeto, também um dos pontos mais altos em relação à produção, onde inúmeras fontes sonoras banais, como: alarmes, apitos e clicks harmonizam.
O tema visceral e cru da violência urbana se faz presente em "‘96 Neve Campbell" e "Make Them Dead", como na primeira linha da faixa ilustra: medo, ódio, raiva, morte e doença. Nos transportando automaticamente para a tensão política-racial em meio a uma pandemia global.
Os fantasmas e personagens daquele ano caótico ainda vivem conosco; vivenciando tudo isso do sul global, mas sabendo dos impactos aterrorizantes que assombram as minorias numa intensa crescente do renascimento do proto fascismo. Nada mais desconfortante do que a vida real e a discrepância entre quem domina e quem é dominado.
Quem Tem Medo da Música Má?
Música e Emoção
Quem nunca disse “vou botar uma música alegre para animar o ambiente” ou se pegou precisando colocar aquela canção mais melancólica para acompanhar o estado de espírito, que atire a primeira pedra. Essa relação natural e intuitiva entre os humores e a música tem uma longa tradição de reflexão, já que, em muitos momentos da história, a música foi tratada sumariamente como uma evocadora ou facilitadora dos afetos humanos.
Os incontornáveis filósofos da Antiguidade, Platão e Aristóteles, definiam a música menos por suas qualidades estéticas e intrínsecas e mais pelos efeitos que ela provoca na alma ou mentalidade do indivíduo - ou ainda, equivaleram um ao outro (estrutura = emoção). Sem nos estendermos muito em cada uma destas teorias, os mais curiosos poderão pesquisar sobre a intensificação das virtudes ou o corrompimento do caráter pela música, em Platão, e sobre a capacidade catártica e mimética da música, ou seja, sua imitação dos afetos, em Aristóteles.
Vamos então começar com algumas perguntas mais imediatas: A música tem, necessariamente, que provocar uma reação emocional em seu ouvinte? Alegria, tristeza, medo, raiva – entre tantos outros estados psicológicos? Existe essa natureza refletida da música para com as emoções humanas? Se considerarmos que a música é talvez a forma de arte mais abstrata que temos, não surpreenderia que alguns pensadores, compositores e teóricos musicais respondam a essas perguntas com um categórico e retumbante: não!
Na própria Antiguidade, Pitágoras e Aristóxeno seriam os primeiros exemplos daqueles que seguiam uma abordagem bastante diferente, focada na natureza matemática e no jogo de proporções entre os sons. Inevitavelmente, este ponto de partida resulta em uma visão menos emotiva e, pasmem, menos utilitária da música - ou seja, “a música deve servir para x função”. O coração desta divergência milenar é, então, se a música deve ser entendida primordialmente como uma experiência sensível ou como uma prática de proporções.
Como algo essencialmente humano ou constitutivamente inumano.
Música de Chuveiro e Música de Corredor
É impossível dizer o que seria mais famoso no filme Psicose, de Alfred Hitchcock: se a “cena do chuveiro” ou a trilha sonora que a acompanha, o que diz da indissociabilidade entre ambas. A trilha, composta por Bernard Herrmann e intitulada The Murder, é amplamente reconhecida por seus violinos agudos e dissonantes, que atacam em conjunto na introdução de forma pulsada e constante. Muito provavelmente, mesmo que o leitor não tenha rememorado a partitura exata, a breve descrição anterior evocou, no mínimo, uma sonoridade bastante próxima da música. Afinal, é algo como música de filme de terror, não é mesmo?
Musicalmente, a composição de Herrmann se inspira em influências e compositores variados. Contudo, é notável que essas influências provenham todas do que, de forma ampla, se entende por Música Moderna ou Música do Século XX. Os maiores exemplos são:
As peças atonais e extremamente dissonantes de Arnold Schoenberg;
Os motivos repetidos e econômicos de um estilo Minimalista, ainda em franca construção na época; ou então
As experimentações referenciadas a uma escola mais geral de compositores, trabalhando com inovações no campo da harmonia e do ritmo. Entre estes últimos, são fortes os nomes de Igor Stravinsky e Béla Bartók.
Bartók, embora tenha vivido até 1945, nunca se aproximou ou trabalhou diretamente com o cinema. No entanto, o músico húngaro acabou sendo associado ao universo cinematográfico postumamente, na década de ‘70, em outro grande clássico do terror estadunidense — O Iluminado, de Stanley Kubrick. O trecho musical que alçou este compositor "de nicho" ao reconhecimento global se encontra no terceiro movimento de sua obra Música para Cordas, Percussão e Celesta. Esta peça, marcada por texturas dissonantes, atmosfera tensa, cordas sussurrantes e ritmos irregulares, foi crucial para imortalizar as paisagens sonoras que há muito o ouvinte reconhece como terroríficas ou assustadoras em se tratando de música.
O que chama atenção é que a aventura composicional do século XX, por mais extrema ou variada que tenha sido, jamais teve como propósito assustar ninguém, nem mesmo o ouvinte mais leigo ou desavisado. Também, não estava em seu cerne provocar desconforto, perturbação emocional ou, de fato, provocar qualquer tipo de reação emocional específica no ouvinte.
A produção de Bartók, assim como a de outros compositores de sua época, é apenasmente representativa de uma linguagem musical em constante inovação e renovação. Essa evolução pode tanto ser traçada há mais de um milênio, se considerarmos o início da escrita e notação musical, ou há mais de três séculos, se tomarmos como ponto de partida o surgimento da linguagem sinfônica - estilo musical derivado das ouvertures das primeiras óperas italianas e francesas.
Assim, por mais que a música de Hermann beba da mesma genealogia da música dita moderna, existem diferenças de intenção que são fundamentais para pensar a questão da música e da emoção - na medida em que Hermann queria, sim, que sua música provocasse o ouvinte a sentir medo e a ficar tenso. E como ele fez isso? Ora, antes de tudo, sua música foi chamada The Murder, associando através da palavra a música ao evento censurável do assassinato. Em seguida, o pulso repetitivo dos violinos foi compassado para representar não só o ritmo das facadas que Norman Bates desferia em Marion Crane, mas também a aproximação lenta do psicopata em direção à sua vítima - associando através da imagem a música ao terror.
Este vínculo entre a música e as imagens, bem como ao léxico do macabro, do grotesco e do assustador é algo extremamente comum. É até mais do que comum - é condição de possibilidade para que a música convoque certas propriedades terroríficas. Sem todas estas indicações linguageiras e representativas, saberíamos estar diante de um dispositivo sonoro amedrontador ou afim? Um menino ou menina especulativamente criado por lobos, ao escutar estas músicas, se sentiria intuitivamente assustado?
Já no século XIX, havia compositores românticos hipnotizados pela imagética gótica e com afinidade ao sombrio e ao sobrenatural, tais como Hector Berlioz e sua Symphonie Fantastique. Esta obra, composta em 1830, é um exemplo marcante da fusão entre música e concepções literárias e representativas, utilizando uma narrativa programática para contar a história de um jovem artista consumido pela obsessão, pesadelos e bruxas. Para tanto, Berlioz se viu “obrigado” a dispor de um libreto indicando tais narrativas febris. Outros compositores contemporâneos, como Von Weber, Franz Liszt e Richard Wagner, também exploraram desta mesma maneira os temas góticos e sobrenaturais, refletindo um fascínio coletivo pelo misticismo sombrio e pelo trágico conforme a época.
Atualmente, ao considerar a relação entre terror e música, talvez nenhum gênero represente melhor a fabricação desta conexão do que o Metal. Em suas vertentes mais extremas, como o Black e o Death Metal, se encontra um verdadeiro festival de capas de álbum, nas quais o limite do grotesco fica a cargo da imaginação do artista e do tamanho de sua perversidade. A música fica assim entrelaçada aos corpos flagelados, às assombrações obscuras, ao caos do mundo, à eterna noite. Em termos sonoros, os vocalistas de Metal Extremo transfiguram seu canto em urros guturais - desmantelando a articulação dos fonemas aos berros, evocando o estado psicológico perturbado daqueles que vivenciam o horror e, por consequência, precisam gritar.
Medo de quê, mesmo?
O fato é que, pura e simplesmente, se deve admitir: o cinema venceu.
Nos dias de hoje, aquela música com um pezinho na atonalidade ou que carregue outras insígnias da Música Moderna é prontamente identificada ao acervo do terror. E isso sem nem mencionarmos as demais regiões emocionais que as soundtracks colonizaram de maneira desenfreada, criando associações que, em alguns casos, se tornaram praticamente irreversíveis na escuta de alguns tantos. Não há prova mais contundente desta influência do que identificar na sonoplastia dos momentos mais tensos do Show do Milhão uma cadência e uma atmosfera harmônica assustadoramente parecidas com as da fatídica cena de Psicose.
Vamos lá, não é como se a Música Moderna fosse santa e inspirasse passividade nos ouvintes. Desde meados do século XIX, vários compositores já caminhavam na corda bamba entre o rechaço e a aceitação. Em sua época, cada nova obra que trouxesse alguma ousadia sinfônica gerava fortes reações do público pagante, muitas vezes resultando em momentos escandalosos, vaias intensas e pura balbúrdia. Contudo, estas manifestações eram decorrentes de um embate estético, no qual os ouvintes ficavam absolutamente desconcertados diante de sua própria ignorância e falta de referencialidade diante do que estavam ouvindo. Seria isso uma emoção?
Bem, Freud explica. Em seu célebre artigo Das Unheimliche (1919), Freud trabalha algumas categorias conceituais que se encaixam perfeitamente em nossa discussão, sendo elas: o medo **(Furcht), a ansiedade (Angst) e o conceito titular de Unheimlich. Este último é uma palavra que não apresenta tradução direta para o português, por vezes interpretada mais simplesmente como “estranho”, e por outras como o neologismo “infamiliar” - tradução esta que daremos preferência.
Sem surpresas, o medo para Freud é uma reação emocional a um perigo concreto e externo, uma resposta objetiva face a algo identificável e real. Já a ansiedade é a sua contraparte, ocorrendo no caso da ausência de uma ameaça definível. Apesar dessa diferença, ambos os sentimentos estão correlacionados a um objeto - no caso da ansiedade, trata-se de uma sensação de perigo iminente, ou seja, ela aguarda por um objeto que lhe caiba.
Na maioria dos filmes de terror, os personagens são perseguidos por algum objeto ameaçador (monstros, serial killers, infectados, forças demoníacas etc.), ou então são tomados, seja gradualmente, seja abruptamente, por um conjunto de percepções de que “algo não está certo”. Assim, o arco narrativo desse tipo de história geralmente vai desde a tranquilidade inicial, passando, em alguns casos, pela ansiedade, até culminar no medo e no terror - entendido pelo pico emocional do confronto direto com o objeto ameaçador. Desta forma, medo, ansiedade e terror são categorias que jogam no terreno da figurabilidade e da representação, e qualquer música criada para acompanhá-las tem que falar esta mesma língua.
Em contrapartida, Freud reserva um lugar especial no pensamento para o conceito do infamiliar. Demonstrando a complexidade do conceito, o psicanalista o descreve como a queda gerada quando algo familiar, previsível e conhecido se torna perturbador ou estranho. Freud sugere, ainda, que o infamiliar está ligado ao retorno do recalcado — algo que antes nos era acessível ou conhecido, mas que, por processos mentais ou culturais, foi reprimido e esquecido, retornando de forma distorcida e abrupta.
O infamiliar ocorre quando um lugar que deveria ser seguro, como o hotel Overlook, se revela estranhamente opressor. Ele ocorre quando uma música, que deveria ser agradável ou minimamente fiel a certos padrões, torna-se angulosa, desarmônica e alheia as expectativas do ouvinte. Ora, se o infamiliar é a quebra das referências daquilo que nos assegura a ordem do mundo e das coisas, o que pode passar desapercebido é que esta ordem também se equaciona à repressão cultural imposta ao mundo dos sons em sua totalidade exploratória.
Não seria justamente essa abertura à infamiliaridade, que a Música Moderna nos apresentou, o elemento que foi posteriormente capturado e docilizado pelo cinema e outras mídias audiovisuais?
Estranhar o Novo
Chegamos no ponto em que podemos arriscar a traçar um esquema de polaridades entre o que seria fortemente temático, de um lado, e o que seria mais puramente musical, de outro, mesmo sabendo da existência dos vários pontos intermediários entre uma e outra ponta. No primeiro, temos o medo e o objeto; a palavra e a imagem. No segundo, temos o infamiliar e o estranhamento; a perda de referências. No primeiro, temos o psicológico emocional e o humano. No segundo, temos abstrato e o inumano. No primeiro, temos Bernard Hermann e o mundo das representações. No segundo, temos Béla Bartók e o mundo dos sons.
Não é como se a tensão criativa entre os polos supracitados não pudessem muito bem providenciar excelentes experiências estéticas. É o caso do álbum SAVED! de Kristin Hayter, lançado em 2024, que estrutura uma dialética sonora entre o temático e o estranho, ou infamiliar.
Mais conhecida por seus trabalhos anteriores sob o pseudônimo de Lingua Ignota, Hayter já tinha o hábito de utilizar temas religiosos e espirituais, mas, agora, torna estes elementos como a pedra angular em SAVED!. A utilização musical de hinos e elementos litúrgicos acaba distorcida de maneira a criar uma sensação de desconforto e terror.
A religiosidade, algo que normalmente remete à segurança ou esperança, é transfigurada em algo que provoca angústia e estranhamento. Isso é alcançado pelo uso inteligente das dissonâncias, pelo compasso incomum e repetições inesperadas dentro das canções, assim como pela justaposição de instrumentos tradicionais com técnicas vocais extremas e perturbadoras.
Assim, a música em SAVED! provoca no ouvinte sentimentos ambíguos, onde algo familiar - como a música de igreja e os spirituals norte-americanos - se torna perturbador, desafiando a maneira como esses temas são comumente percebidos.
Apesar de lamentarmos as grandes injustiças diante de todo um tesouro musical do século XX, a relação entre o cinema e a música contemporânea — sua interseção com o terror e seus clichês — está longe de se encerrar em um ponto fixo. De forma similar, o infamiliar, enquanto conceito sonoro e estético, segue encontrando novos contextos e ressonâncias, revelando que o desconforto não é um fim em si mesmo, mas sim uma reação às complexidades que transcendem a representação e toca em algo que apenas o musical pode proporcionar.
UBOA e o Mergulho no Desconforto
Uma experiência pessoal com The Origin of My Depression
Em se tratando de sonoridade, a subjetividade impera. Além disso, o contexto em que se escuta algo é determinante. A música, diferente de outras formas de arte, é permeada por infinitas variáveis na sua forma de consumo. Tudo emite som, mas até que esses sons sejam organizados com um propósito, eles permanecem completamente abstratos.
Quando essa matéria-prima se transforma em algo concreto, o que resplandece para a maioria das pessoas é o despertar da vivacidade do presente. Elas buscam sensações de felicidade, guiadas por melodias leves e entusiasmadas. A magia está justamente aí: no poder da música de moldar o nosso humor e oferecer uma nova perspectiva a momentos (intensificando ou suavizando-os). Quando ouvi "Unwritten" pela primeira vez, por exemplo, não sabia por que aquilo me fazia feliz, mas não conseguia controlar a vontade de dançar, cantar e (querer) viver.
Mas e o outro lado da moeda?
O que acontece quando a fonte de inspiração se encontra na mais profunda solidão? Quando a ausência de ritmo é a regra, e não há melodia ou estrutura definida para salvar nossos despreparados ouvidos? Quando o objetivo parece ser abrir uma Caixa de Pandora pessoal, carregada de traumas, medos e angústias, apenas por abrir?
Me deparei com “A Origem da Minha Depressão (The Origin of My Depression)”, 4º álbum da artista australiana de música Drone e Noise Rock, Xandra Metcalfe, sob o nome de seu pseudônimo Uboa, 3 dias após meu aniversário de 21 anos. Na época em questão, me encontrava em um quadro ansioso/depressivo e, por ocasião do destino, vagando pelo Rate Your Music, encontrei tal título que parecia conveniente para a situação.
De imediato, percebi que ali repousava uma experiência completamente nova para mim — uma daquelas muda a vida de um ser humano pra sempre. Era algo profundamente diferente, e o amedrontamento que senti ao escutar seus primeiros minutos superava o que filmes do gênero horror já haviam me causado. Um chiado, como o de uma televisão raivosa, sobreposto a um arranjo catártico digno de Hans Zimmer, na faixa "Detransitioning" introduziu os drones que seriam figuras centrais do álbum. Tive, ali, meu primeiro contato com a chamada musique concrète.
Mais do que o simples uso de sons sampleados como material musical, a musique concrète representa uma inversão em relação à abordagem musical tradicional. Segundo Schaeffer (1952) - o primeiro desenvolvedor desse sub-gênero - o compositor tradicional (ou "abstrato") segue um caminho que o leva do abstrato ao concreto. A peça tradicional é concebida mentalmente, notada simbolicamente, e finalmente executada. Na musique concrète, os efeitos criados por diferentes maneiras de excitar corpos produtores de som, e pelas manipulações eletroacústicas das gravações desses sons, não podem ser concebidos a priori; além disso, a notação tradicional, que essencialmente descreve a altura do som, é inadequada; o intérprete é desnecessário. O novo compositor (ou "concreto") não pode fazer melhor do que fabricar seu material, experimentar com ele e, finalmente, juntá-lo.
Uboa, em entrevista para a New Noise Magazine, descreve seu processo de composição em conformidade com esse conceito: “Muitos dos sons eram incidentais ou baseados em tudo ao meu redor. Eu costumava andar pelas ruas com um ditafone, murmurando pensamentos e poesias improvisadas. Adoro usar instrumentos não convencionais, como o Zippy Zither, que aparece em ‘Epilation Joy’ e ‘Misspent Youth’.”
Nesse sentido, acredito que Schaeffer não poderia imaginar, durante seus anos de experimentos e criações, como gritos irrestritos e crus de um ser humano (cujo sofrimento é constante) poderiam, como forma de interpretação ou não, agregar e fazer sentido naquela construção imprevisível de samples urbanos e industriais.
Afinal, essa imprevisibilidade é o que desenvolve a angústia e o suspense que culmina no terror. Ninguém se assusta com uma história previsível, nem com um jumpscare que se enxerga há quilômetros de distância. O medo se instala sorrateiramente, na furtividade e no relance. É o que ocorre ao chegarmos em "Lay Down and Rot". O que antes era apenas desconforto, desabrocha em um apocalipse sonoro. Os gemidos e respirações ofegantes criam uma atmosfera hostil, até que os gritos embriagados de Uboa transformam a experiência em um pesadelo quase insuportável.
Tive que parar. Tentei respirar fundo mas o ar parecia rarefeito, então decidi que não era o momento, e não voltei ao álbum por cinco anos. Quando me deparei com o tema do mês da revista outrahora, soube imediatamente que ali estava meu texto.
Depois de um longo processo terapêutico, menos egocêntrico, pude me colocar numa posição exclusiva de ouvinte. Pela primeira vez, não tentei me relacionar com um álbum, nem buscar algo que ressoasse com minha experiência pessoal. O desconforto, o caos e a dor pertenciam a Xandra Metcalfe, e eu só podia passar por aquilo esperando que, ao final, ela estivesse bem. Mas estava decidido a suportá-lo (o álbum) de olhos e ouvidos bem abertos. Diferente de uma montanha russa, sabia que o medo não passaria, e eu definitivamente não ia querer me aventurar ali uma segunda vez.
A experiência permaneceu perturbadora. Seguindo de onde havia parado, a transição de Lay Down and Rot para Epilation Joy parece um sonho febril. A sua voz, nítida por alguns segundos, parece uma rápida experiência Post-mortem até chegarmos no purgatório que é Please Don’t Leave Me. Num reflexo involuntário, a regra dos olhos abertos foi revogada. Só queria que aquilo passasse até os acordes de violão e as notas no xilofone de An Angel of Great and Terrible Light me despertarem.
Essa faixa, junto com "Misspent Youth", ocupa metade do tempo do álbum. É o espaço da catarse. Notas intensas no piano acompanham um desabafo paralisante sobre sua vida como mulher trans. Uboa não grita, mas suas palavras atravessam a alma quando diz: “Even death is tolerable if there is truth, and we're truth; And I am so scared that all this possible pain Is still better than being a corpse in a closet.”
No momento final do álbum, ouvimos talheres sendo postos à mesa e um incompleto “venha” (C’mon). Parece ser a primeira vez que respiro ar puro desde o início. O caminho até ali foi o mais árduo possível, e não sei dizer se valeu a pena. É um sentimento verdadeiramente conflituoso. A obra, em toda sua ousadia, transcende os limites tradicionais da música, explorando o som como veículo de uma experiência emocional visceral e profundamente pessoal.
Não se trata de uma audição para entretenimento, mas de um mergulho doloroso e incômodo no universo de alguém que usa a arte como uma forma de expurgo e sobrevivência. Ao mesmo tempo que a dor de Uboa é intransferível, sua coragem em expô-la nos força a refletir sobre os limites do que é aceitável sentir e compartilhar.
O grande mérito do álbum mora aí: na maneira como desafia quem ousa encará-lo, deixando um impacto que, muito provavelmente, perdurará para além de seus 40 minutos. Ao fim, sua força não está na beleza ou no prazer auditivo, mas no confronto direto com a realidade mais crua e inescapável da condição humana.
Metal Extremo 101 + 20 Álbuns Transgressores
Se o rock fosse uma semente, o metal extremo seria o fruto proibido
extremo | ex·tre·mo | adj
Situado no ponto mais distante; afastado, longínquo, remoto.
Que atingiu o mais alto grau de algo; máximo, sumo.
Que ultrapassa o limite do que é considerado razoável; exagerado, excessivo.
Que foge ao habitual ou à regra.
Que assinala o fim de alguma coisa; derradeiro, final, último.
(Fonte: Michaelis)
Tudo começou na amplificação da guitarra e do baixo, no pedal de bateria, no blues e no jazz, e na mutante cultura do século XX. Já as técnicas vocais animalescas vieram mais pra frente por consequência da crescente intensidade proporcionada pelas tecnologias citadas anteriormente.
Artistas do jazz, do blues e do rock and roll plantaram e semearam essas sementes selvagens da amplificação que ao longo dos anos foram sendo selecionadas em diversas linhagens. Domesticadas para vários gostos, inúmeras variedades deram origem a diversos gêneros musicais que ouvimos hoje, cem anos depois. Hoje, busco aqui explorar brevemente algumas linhagens específicas selecionadas pelo sabor mais intenso, picante e as vezes bem amargo. Certamente não são do gosto de todos. As linhagens mais brandas podem ser mais facilmente apreciadas, já as mais intensas são para pessoas intensas. Não que exista um mérito em apreciar esse ou aquele sabor, essa ou aquela intensidade.
Assim como tudo nessa vida, gosto é gosto e é só provando que se descobre. Busco, aqui, apenas contar uma breve história sobre como surgiram gêneros musicais mais intensos, especialmente os da linhagem do metal extremo, como death metal, grindcore e black metal. Foi à partir daí, acredito eu, que a picância e a intensidade, as vezes amargura, começaram a tomar proporções absurdas. Pelo menos pra época eram. Mas antes de abordar esses gêneros, se faz necessário um breve contexto histórico sobre a vanguarda do Heavy Metal. E pra ajudar na jornada, fiz uma playlist com algumas das músicas que serão mencionadas ao longo do artigo.
O início do fim: A tríade do Heavy Metal dos Anos 70
Black Sabbath (1970)
O ano 1968 foi marcado pelo nascimento de três bandas muito importantes pra história da música. São elas: Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. Amplamente aclamadas, hoje há consenso sobre a importância de seus feitos. Foram de grande influência para os mais diversos artistas, do rock, do punk, do pop, dentre outros. Sob principal influência do hard rock, blues rock, psicodélico e progressivo, a tríade do Heavy Metal ampliava os elementos já postos, como o foco em virtuosidade na guitarra, com riffs e solos mais complexos e rápidos, power chords pulsantes e muita distorção a todo o volume. Um baixo e uma bateria também se faziam necessários para criar uma parede de som pulsante e energética. As temáticas eram mais sérias, falavam da vida e da morte, problemas ideológicos e políticos, religião e ocultismo. Em termos estéticos, o álbum autointitulado Black Sabbath (1970) viria a influenciar as linhagens mais transgressoras ao trazer temáticas sobre satanismo e o oculto, com uma pegada mais diabólica como é possível ver na capa, nas letras e nas apresentações dos integrantes da banda. Outras bandas importantes pra história do heavy metal são Coven, Blue Cheer e Steppenwolf.
O Inferno na Terra – Nova onda do metal britânico
Hell Awaits (1985)
Rock e heavy metal não eram os únicos gêneros musicais da rebeldia. Na verdade, na metade dos anos 70 a primeira geração de punk rock havia saído do underground, tomando conta do mainstream. Em um quase antagonismo, novas bandas de metal surgiram para competir com o punk do rádio. O lançamento do álbum autointitulado Iron Maiden (1980) foi um divisor de águas e marca o início da New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM ou nova geração do heavy metal britânico). Bandas inglesas como Samson e Angel Witch, apesar de não explodirem da maneira que a Iron Maiden, foram parte essencial pra época underground do gênero. Novatas, Diamond Head, Saxom, Raven, Tygers of Pan Tang, Motörhead; e até veteranas, Black Sabbath, Judas Priest, Whitesnake, AC/DC, acabaram surfando nessa onda. Os norte-americanos não ficaram de fora. Com maior apelo as rádios e sob influência de música pop, algumas das bandas mais populares foram Mötley Crüe, Poison, Bon Jovi, Europa e os “traidores” dos britânicos da Def Leppard. O foco aqui era aparências e diversão, as músicas eram como o bom e velho “sexo, drogas e rock’n’roll”. Também nos Estados Unidos uma banda em particular ficou muito popular ao continuar a linha mais bruta do NWOBHM: Metallica. Seguindo uma linha ainda mais abrasiva do que a dos canadenses Exciter e Anvil, os precursores do thrash metal, como o subgênero ficaria conhecido foram Metallica, Megadeath, Slayer e Anthrax. O som dos norte-americanos ficou marcado pela agressividade lírica e instrumental. Especialmente a banda Slayer, como no debut Hell Awaits (1985), mais pra frente viria a influenciar o black e o death metal. Se distinguiram dos britânicos ao aumentar a velocidade e o uso de distorção mais intensa, tanto nas guitarras como na técnica vocal. Enquanto a linhagem do glam, ascendeu e a do thrash continuou a tradição, algumas outras eram domesticadas nas profundezas e continuariam descendo cada vez mais.
Bem-vindo ao Inferno – 1ª Geração do Black Metal
Logo no início dos anos 80, dobraram a aposta de Black Sabbath. Witchfinder General foi pioneiro em ampliar a aura sombria do heavy metal clássico, sendo considerada a primeira banda de doom metal. De modo geral, diferente das outras linhagens, a maneira em que o doom intensifica o metal vem da busca por um som mais grave acompanhado de músicas mais lentas e longas, o que fica bem evidente a medida que o subgênero progride e, influencia e é influenciado por outras bandas do black metal, do rock gótico e do pós-punk. Outras bandas notáveis do início do doom metal foram Saint Vitus, Cirith Ungol, Trouble, Pentagram e Candlemass.
Agora, apostando no oculto, a postumamente intitulado primeira geração de black metal surgia das profundezas. Mais explicitamente satânicas e intensas nas composições, as pioneiras foram Venom, Mercyful Fate, Hellhammer, Celtic Frost e Bathory. Nascida em Newcastle, na Inglaterra, a banda Venom era debochada e ácida. A blasfêmia e o caos de Welcome to Hell (1981) certamente chocou muitos britânicos na época. Com o anticristianismo digno de um especial de natal do Porta dos Fundos, foi no seu segundo álbum, Black Metal (1982) que a banda se destacou. Se o primeiro se tratava de demos, essa já contava com uma produção profissional que possibilitou canções mais atmosféricas, como na intro de Buried Alive. Vocal distorcido, a pá na terra e a respiração ofegante sintetizam essa nova noção de transgressão. Cronos, Mantas e Abaddon também iniciaram a tradição da utilização de pseudônimos tão sombrios quanto a própria imagem.
A banda Mercyful Fate, da Dinamarca, tinha um som que não apontava pra linhagem mais agressiva, porém não deixavam a desejar em questão lírica, teatral e imagética. As letras tinham um tom satânico forte, porém mais sério do que de Venom. Era mais voltado para o satanismo moderno, ou seja, não se baseavam na noção teísta da existência real de Deus ou de Satã e sim na filosofia de LaVey, de 1966. As músicas se aproximavam mais da NWOBHM ou thrash metal do que do black metal de seus contemporâneos, tanto no vocal como na dupla de guitarras. Um bom exemplo disso é a faixa The Oath do álbum Don’t Break The Oath (1984). Em termos de apresentação, faziam uso de ossos e partes de animais como recurso teatral e são tidos como precursores do corpsepaint (face branca, e olhos e boca pretos, normalmente), a maquiagem comumente associadas ao black metal até hoje.
Outra banda influente vem de um pequeno município agrícola na Suíça. Hellhammer teve um início difícil, mas em retrospecto foram aclamados pela inovação. Tom Fischer, idealizador da banda, tinha na música um refúgio. Sobrevivente de uma juventude trágica de abuso e violência, o garoto, quando livre, viria a amadurecer seu gosto musical voltado a linhagens mais extremas. Foi influenciado por bandas como UFO, Discharge, Rush, Motörhead, mas principalmente por Venom. Inflamado pelo single debut In League With Satan (1981) o jovem decide se dedicar ao ofício e, com o pouco que tinha, comprou um baixo. Anos depois ele formou a Hellhammer e fizeram três fitas-demo gravadas precariamente. A oportunidade apareceu pela convocação de bandas extremas feitas pela recém-criada Noise Records, da Alemanha. Em 1984 gravaram um split, Death Metal (não confundir com o subgênero de mesmo nome, explicarei sobre ele mais pra frente) e um EP, Apocalypyic Raids. Apesar da oportunidade, o álbum quase não foi publicado. “Nós chegamos lá como os poderosos da Hellhammer, uma banda de metal radical e extrema, e fingimos que sabíamos de tudo… E não sabíamos. Dissemos, ‘ nós vamos produzir esse EP e blá, blá, blá’, e obviamente ficou horrível pra época” (Dayal Patterson, 2013, p59). A crítica da época foi abismal mas o EP revolucionou a vida dos rapazes. O sonho não terminava ali, mesmo a banda não resistindo ao baque. Logo em seguida, Tom e Martin começaram a repaginar os conceitos postos até então, conceito, estética, álbum, temáticas e até o nome. Frost simbolizava o fim de um ciclo, a queda de uma civilização. No caso, Celtic (pronuncia-se Keltic), em referência a suas raízes. Em junho de 84, Hellhammer morre e de suas cinzas nasce a Celtic Frost. No mesmo ano, o miniálbum Morbid Tales marcaria o novo ciclo, mais inovador, mais pesado, mais groove, melhor gravado e melhor performado. Em 1985, gravam o inovador To Mega Therion com a capa, Satan I, do artista H.R. Giger. Dramático, rítmico e eclético, o álbum é aclamado até hoje e viria a influenciar, não só o black metal, mas muitas linhagens do metal extremo daqui pra frente. E da mesma forma, continuaram inovando nos anos subsequentes.
Outro grande influenciador, Bathory, apesar de chegar um pouco atrasada pra festa, marcou a noite. A capa de Bathory (1984) é inegavelmente icônica, assim como a atmosfera é o som do black metal da segunda geração (como abordarei mais adiante). Certa vez, no site oficial dos suecos, Quorthon teria descrito o som da banda como a “amalgama da penumbra de Black Sabbath, O som de Motörhead e o recém-descoberto frenesi de GBH” (Dayal Patterson, 2013, p37). O primeiro álbum é, sem dúvida, muito importante, mas o segundo, The Return….. (1985), é ainda mais sombrio que o debut e viria a inspirar fortemente o Black Metal dos anos 90.
O Inferno é aqui – Grindcore e Death Metal
Na Inglaterra industrial dos anos 80 ainda imperava o punk rock, sobretudo os da segunda onda. Eram mais velozes mais raivosos e mais revolucionários que nunca, tanto liricamente quanto musicalmente. Naquele ponto, ao contrário da repulsa dos anos anteriores, a colisão e intersecção com o metal era inevitável. O resultado dessa cruza seriam, principalmente, o crust punk e o grindcore. Grosso modo, o crust é mais punk que metal e o grind é mais metal que punk. A cena de ambos gêneros, e outros, não só coexistiam mas se retroalimentavam a cada show e a cada fita-demo ou EP gravado e distribuído. São muitas as bandas importantes que influenciaram essas linhagens, são nomes do Reino Unido como Discharge, Crass, Exploited, GBH; dos Estados Unidos como Siege e Dirty Rotten Imbeciles (D.R.I.); e do Brasil como Ratos de Porão, Cólera, Olho Seco e Inocentes; dentre muitas outras, mundo afora. Vale ressaltar que o punk em solo americano daria origem ao hardcore, mais agressivo e rápido semelhante a chamada segunda onda dos europeus, simplificando. Naturalmente a velocidade das músicas aumentou muito mas nem sempre o apelo técnico e virtuoso acompanhava. Tocar na velocidade de 230 BPM não é exatamente fácil, mas certamente a solos e riffs complexos não era o foco aqui. Mesmo as influências do metal tinham uma abordagem mais simples e crua como por exemplo, as bandas de thrash metal europeu, como os suíços da Celtic Frost (também associada a primeira onda de black metal) e os quatro do thrash alemão, Kreator, Destruction, Tankard e Sodom.
Assim, na metade dos anos 80 já se solidificava a cena do grindcore em volta de selos independentes como o Earache Records de Nottingham e Manic Ears de Bristol. Outro eixo importante foi o bar The Mermaid em Birmingham, responsável por catalisar uma fan base em volta da jovem Napalm Death. Mick Harris, com apenas 19 anos, é tido como o responsável por cunhar o termo blast beat, para descrever a batida veloz utilizada, e o termo grindcore, em referência ao hardcore punk. Foi com o álbum Scum (1987) que Napalm Death virou história. A absurda velocidade, a voracidade e o vocal político e direto viriam a ser o som do grindcore dali em diante, músicas curtas e soco na cara. Em relação a temática, outra forma se destaca. A banda Carcass de Liverpool, como o nome sugere, cantava literalmente sobre morte. A capa de seu debut Reek of Putrefaction (1988) é uma colagem feita com imagens de cadáveres e de autópsias retiradas de literatura médica. O álbum tinha um objetivo simples: ser o mais nojento e abjeto possível. E conseguiram, tanto é que nos relançamentos de alguns anos depois, a capa era outra. Dessa vez, a original ficava na parte de dentro do CD. A medida que a primeira geração de punk e a NWOBHM se tornava mainstream na Europa, os novos subgêneros se espalharam ao redor do globo. Do outro lado do oceano Atlântico, as cenas eram bem mais esparsas, naturalmente, e continuavam se proliferando com o status de movimento underground. Washington D.C., Nova Iorque, Los Angeles, Boston e oeste de Massachusetts; Ontário e Colúmbia Britânica; São Paulo, Belo Horizonte, Santiago, Bogotá, Lima, Cidade do México, para citar alguns eixos. Nos Estados Unidos a versão mais pesada do punk foi chamada de hardcore e trasbordou pras outras nações americanas, além de ter influenciado a cena underground dos europeus, como exemplificado anteriormente.
De Flint, Michigan, Matt e Scott tinham interesses em comum. Os jovens eram entusiastas da cena hardcore e amantes de Celtic Frost e Slayer. Formaram uma banda em 84, primeiro foram Tempter, depois Genocide, Ultraviolence e Genocide de novo, mas sempre buscando tocar rápido. Apesar de altos e baixos, em 86 já tinham certa popularidade localmente. Apesar disso, o agora quarteto, trocou o nome pra Repulsion e com as habilidades mais amadurecidas, viriam a se estabelecer como precursores do grindcore nos EUA. Mas foi em 1989 que o compilado de demos, Horrified, chegaria na Europa, lançados pelo selo da Carcass, Necrosis Records (subsidiária da Earache Records, aquele selo da Napalm Death). Não é a toa que foram notados. A banda tinha um timbre semelhante a Slayer porém mais rápida e compartilhavam da temática gore com os britânicos. The Stench Of Burning Death e várias outras, são sobre apocalipse zumbi, por exemplo. Apesar da vida curta, a banda foi assertiva e deixou seu nome na história do grind americano.
Com apenas 15 anos de idade os amigos de escola formam a banda que anos depois criaria o termo death metal. Os garotos norte-americanos da Possessed buscavam o som e aura sombria dos debuts de Slayer e Venom, satanismo incluso. Se agruparam em 1982 e amadureceram suas habilidades ao participar ativamente da cena de thrash metal em Bay Area, Califórnia. Essa cena também é conhecida por gestar nomes do thrash como Metallica e Exodus. O som era bem semelhante ao thrash, porém bem mais satânico e com vocal muito distorcido. Daí, plantaram a demo Death Metal, em 1984, e no ano seguinte colheram a gravação do álbum Seven Churches. Assim, Possessed influenciaria tanto a cena do thrash metal como a ainda inexistente cena do death metal. São duas as bandas consideradas precursoras no subgênero. Além de Possessed, contribuindo com o nome, atmosfera e vocal mais agressivo que o thrash, Death foi quem deu o passo adiante na brutalidade.
Também criada por amigos da escola, inspirados em Venom e Motörhead. A primeira iteração da banda se chamava Mantas, em homenagem ao guitarrista da Venom. Em 1984 a banda já tinha uma demo, mas tudo mudou quando eles tiveram acesso a demo Death Metal, da Possessed. A epifania gerada nos garotos foi tanta que mudaram o nome da banda pra Death e trataram de engrossar mais a música. No fim do mesmo ano se apresentariam pela primeira vez como uma banda de death metal. No ano seguinte um dos guitarristas sai da banda e em busca de novos integrantes, tentam juntar esforços com os amigos de Michigan da banda Repulsion (Genocide na época). A dupla vai até a Flórida, mas logo desistem e voltam pra reagrupar a banda. Diferenças criativas os separaram, porém acabaram por fazer uma troca importante. Chuck, da Death, tinha em mãos uma demo Surrender or Die da banda underground canadense Slaughter. Era um som ainda mais rápido que o disponível anteriormente e viria a influenciar tanto Repulsion como Death. Em seguida Chuck vai até São Francisco atrás de um bateirista mas acaba voltando em menos de dois meses. Então tenta com uma banda em Toronto mas em dois meses, pula pra outra. O nômade finalmente consegue um parceiro para gravar uma demo, Mutilation (1986), o que rendeu um contrato com a gravadora indie Combat Records. Mais uma vez Chuck retorna a Flórida, mas não sozinho. Em novembro de 1986 nasce o álbum Scream Bloody Gore. Apesar do bom resultado, o baterista acaba retornando a califórnia, deixando Chuck sozinho mais uma vez.
Paralelamente as idas e vindas da Death, a Morbid Angel ia pra lá e pra cá. Formada pelo amor compartilhado por Black Sabbath e Iron Maiden, Mike e formam a banda Morbid Angel. A banda começa oficialmente em 1984. Até 1988, o grupo sofreria diversas mudanças, sendo o único membro constante o guitarrista Azagthoth. O início não foi nada fácil. Eles se mudaram pra Charlotte em função de um estúdio. De dia trabalhavam num lava-jato e de noite ensaiavam e compunham. Foi nessa época que descobriram o álbum Scum dos britânicos da Napalm Death, o que os incentivou bastante. Em 1987, com a demo Thy Kingdom Come em mãos, retornam a Flórida. No ano seguinte já se sentiam prontos para colocar a Morbid Angel no mapa e, depois de muitos telefonemas, saem para sua primeira tour, viajando em um ônibus escolar velho. Os shows eram pequenos, obviamente, mas ainda assim ajudaram a dar forma a cena underground dos Estados Unidos.
A banda Obituary começou ainda mais cedo que as outras bandas mencionadas. Idealizada pelos irmãos Tardy. Apesar da educação católica, a inclinação pra música extrema veio desde cedo. Eles começam na infância com a bateria de um amigo e nos anos seguintes se inspirariam na cena underground local. Em 1984 já tinham uma banda, Xecutioner junto com um colega do ensino fundamental. Inspirados inicialmente pelas bandas emergentes, como Venom, Slayer e Metallica, foi com a descoberta de Morbid Tales, da Celtic Frost, que a imaginação fluiu. Entre 85 e 87, os garotos gravam algumas fitas-demo, que acabam parando nas mãos do editor de zines e futuro jornalista do site blabbermouth, Borivoj Kgin, que se impressionou com o vocal abrasivo de John Tardy. Com sua ajuda, os garotos garantiram um espaço no split Raging Death (1987), abrindo muitas portas pra futura banda Obituary.
Nesse caldeirão com os primórdios do thrash, death, black, grindcore, punk, hardcore música brutal surgia de todos os cantos. Esses jovens rebeldes não são os únicos. Na Suécia, fortemente influenciados pela Bathory e por hardcore local e americano, uma onda de novos artistas surgia e viria a dar a região a alcunha de país do death metal. Entombed, Dismember, Unleashed, Grave e Tiamat, também fundadas por jovens artistas, influenciaram muito no contágio do death pela Europa. Exemplos de bandas notáveis são Fear of God, de Suíça; Disharmonic Orchestra, da Austria; Vader, da Polônia; Krabathor, da antiga Tchecoslováquia; entre muitos outros. Nas Américas, nomes como Sepultura e Sarcófago, de Belo Horizonte; Vulcano, de Santos; Mystifier, de Salvador; Pentagram, do Chile; Mortem e Hadez, do Peru; Autopsy e Cannibal Corpse, nos EUA;
É importante lembrar que distinguir entre primeira e segunda geração é interessante a fim de clareza acerca de diferentes linhagens de black metal, porém tais termos podem dar a entender que são dois conceitos distintos. Na realidade a transição foi gradual à medida que fitas-demo e álbuns eram, de mão em mão, lançados e distribuídos; e interpretados, replicados e/ou expandidos. Esses termos vieram a ser aplicados a posteriori e com distanciamento histórico. Talvez uma melhor interpretação seria a de que, na época, cada artista era considerado mais extremo ou obscuro, do que pertencente a essa ou aquela linhagem. Exemplos perfeitos de elos entre a primeira e segunda geração do black metal são Slayer, dos EUA e três dos Big 4 do thrash teutônico: Sodom, Kreator e Destruction. Com a exceção de Tankard, que segue uma linhagem mais leve, os alemães intensificam bem a temática sobre satanismo, violência, guerra e antifascismo. Outro diferencial é a velocidade e a abrasividade das composições que se equiparam ao punk hardcore da época.
No Brasil, em 1984 e 1985, duas bandas importantes são formadas: Sepultura e Sarcófago. Ambos são considerados os precursores do black, do death, e no caso de Sepultura, do groove e do nu metal. Walter começa na Sepultura mas após desavença com os irmãos Cavalera, sai da banda. No ano seguinte foi convidado pra Sarcófago. Tiveram forte influência de bandas como Black Sabbath, Celtic Frost, Bathory, Napalm Death, Slayer, Exodus, Motörhead além de hardcore gringo e brasileiro. Sepultura sai na frente com o álbum Morbid Visions (1986). Lançado pela Cogumelo Records. O álbum tem uma produção fraca, assim como a performance. Em 1987, lançam Schizophrenia, já com o som mais polido e mais definido pra linha do thrash metal. No ano seguinte assinam com a Roadrunner Records e lançam o álbum internacionalmente. Também em 1987, os mineiros da banda Sarcófago lançam o debut I.N.R.I., pela Cogumelo Records. O álbum também sai do país e viria a ser particularmente influentes na cena do black metal norueguês, influenciando sonicamente com o blast beat e aprimorando no visual malvado e pretensioso, como na capa do debut. Se trata de uma foto dos integrantes num cemitério, usando corpse paint, cruzes invertidas e acessórios de pregos e balas, dando início a tradição das capas de álbum soturnas e monocromáticas, nesse mesmo estilo.
O Silêncio do Morto – 2ª Geração do Black Metal (1990)
Voltamos à Suécia. O ano era 1987 quando Quorthon, com 21 anos, lançava o terceiro álbum da Bathory, o último da trilogia satânica. Under the Sign of the Black Mark é obscuro e cavernoso como os anteriores mas inova na utilização de sintetizadores, elemento que viria a influenciar bandas como Sigh e Samael. A partir daí Quorthon começa sua segunda trilogia, dessa vez focando em cultura nórdica pré-cristianismo. Os álbuns seguintes impulsionaram um novo subgênero, o viking metal. Ao que parece acidental, a segunda trilogia inspiraria o nacionalismo fascista das bandas nórdicas que viriam a incorporar signos ligados a cultura nórdica em seus anseios nazistas. Quorthon nega ter tal ideologia e alega que nessa época seu interesse é exclusivamente na história antiga. É preciso ressaltar que a partir daqui neofascismo é muito recorrente, então é recomendável, a quem tiver interesse em black metal, que pesquise sobre os artistas. Até mesmo aqueles que não aparentam podem compartilhar dessas ideologias. Um bom exemplo atual é a Deathspell Omega que tem atitude suspeita. NSBM (black metal nacional-socialista, essencialmente black metal nazi) é o termo utilizado para se referir ao subgenero dos fascistas. Os seguintes compilados são um bom ponto de partida pra pesquisa: Black Metal: Is it sketch? (“Esse é suspeito?”) https://rateyourmusic.com/list/ChadWorthington1/black-metal-is-it-sketch/3 e Black Metal bands and their politics (“Bandas de BM e suas políticas”) https://rateyourmusic.com/list/HelloInquisitor/black-metal-bands-and-their-politics/3/.
Nesses compilados não consta o perfil de uma banda que será mencionada. Sarcófago é sketchy. São racistas e homofóbicos conforme a entrevista no Fúria Metal em 1997, disponível no Youtube. O entrevistador pergunta pra eles sobre a faixa Purification Process cuja a letra diz “fuck off the gays, fuck off the indians, fuck off the browns”. Eles afirmam se referir apenas a estilos musicais, mas tem que ser muito trouxa pra acreditar nessa resposta. O vocal da música é praticamente inaudível mas o que dá pra escutar não corrobora com a explicação. O álbum em si, pra além de ser bem ruim, trem uma vibe bem reacionária. Enfim, vamos ao que interessa.
No início dos anos 90, Wagner Antichrist, da Sarcófago, já trocava correspondências com o responsável pela atenção negativa em torno do black metal e por sua disseminação. É por aqui que inicia a segunda geração de black metal. E não era o único. Oysten, conhecido como Euronymous, já havia reunido em torno de si popularidade na cena musical da Noruega e em outras cenas mundo afora, como da Colômbia, Japão, EUA e outros. Especialmente depois de abrir uma loja de discos e dar início a Deathlike Silence Records em Oslo. Ele e seu infame grupo, o Inner Circle, viria a chamar atenção pro black metal norueguês das formas mais abjetas e criminosas, incluindo fogo criminoso, suicídio e assassinato. Tudo começa em 1984, quando três adolescentes rebeldes de classe média se encontram. Unidos pelo interesse comum em Black Sabbath, Venom, Motörhead e Celtic Frost, os jovens formam a Mayhem. Eles gravam diversas fitas-demo nessa época. Buscavam fazer música de maneira mais abrasiva possível. Além de utilizarem de agressividade, como seus ídolos, buscavam intencionalmente fazer gravações em péssima qualidade. A transgressão não era só sonora, mas estética, sempre de maneira desconfortavelmente porca. E até aí, tudo bem. Foi em 88 que a situação começa a ficar absurda. Ingressam na banda um bateirista e um vocalista sueco. De pseudônimo Dead, logo de cara já apresentava um comportamento notoriamente evasivo, depressivo e uma estranha obsessão por morte. Isso que só piora quando eles se mudam para uma casa numa região rural. Em 1991, ele tira a própria vida. Ao encontrá-lo, supostamente, Euro retorna para buscar uma câmera e então fotografa o cadáver antes de chamar a polícia. A foto viraria capa de um bootleg. Em luto e enojado pelo comportamento do guitarrista, o baixista deixa a banda, sendo o único virar as costas ao grupo. O comportamento dos integrantes dali em diante piora ainda mais, especialmente de Euronymous que frequentemente se portava como uma pessoa cheia de ódio e malvada, o que, segundo os mais próximos, se tratava de um personagem. Seu discurso envolvia promover um satanismo “real”, anticristianismo e discurso de ódio, sempre em função de criar uma aura em volta de si. De certa forma, funcionou. Em entrevistas e até conversas privadas com as revistas underground da época, Euro performava dessa maneira. No mesmo ano ele abre uma loja de discos, que vira um ponto focal para a cena. Os mais próximos, integrantes de outras bandas, viriam ser conhecidos como o Inner Circle. Se instaurava ali uma aura de culto, com Euronymous como charlatão. E, assim como antes, chegada de outra personalidade problemática tensionou ainda mais a situação. Varg é o nome por trás do projeto Burzum. Ele ganhou atenção do grupo e admiração de Euronymous ao colocar em prática o que antes era apenas discurso. Diversos crimes foram cometidos nessa fase. Incêndios criminosos em igrejas cristãs por autopromoção. Um assassinato de um homossexual. E pra fechar com chave de ouro, em 1993, Varg assassina Euronymous a facadas por uma desavença envolvendo questões financeiras, supostamente. Ele é sentenciado a 21 anos de prisão, levando junto dois cúmplices e o outro assassino. As bandas mais próximas a essa situação foram Thorns, Emperor, Immortal, além da Mayhem e Burzum.
Toda essa situação vira publicidade para o grupo, expondo-os não só para a noruega como para outros países. Apesar dos crimes, o som cortante e obscuro feito nessa época foi extremamente influente, pro bem e pro mal. O black metal já tinha tomado muitas formas diferentes e os eventos ocorridos na Noruega viriam a catalisar muitos outros projetos, com a expansão dos conceitos já estabelecidos, a criação de novos e a fusão com outros. As mais variadas temáticas viriam a ser abordadas para além do satanismo. Religião, filosofia, política, história e ciência. Supremacismo e neonazismo, com o nacional socialist black metal (NSBM); anarquismo e marxismo, com o red and anarchist (RABM). Linhagens formaram um black mais melódico e sinfônico, como em Cradle of Filth. Outras se misturam com música folclórica, como Ulver, Moonfog, Enslaved e Negura Bunget. Outros inovam no campo da música eletrônica, como Beherit, Mysticum e Striborg, todos os três mudando drasticamente seus estilos. Outros tão inovadores e ecléticos que nem me arrisco a classificar, como Sigh, In the Woods... e Solefald. Isso sem falar dos que continuam a expandir as fronteiras, como Krallice, com uma abordagem progressiva, explosiva e atmosférica; Jute Gyte, com música atonal e de ritmos incompreensíveis; Cult of Fire, com mantras dedicados a Kali; Liturgy, com a subversão e superação do “black”; The Botanist, com um dulcimer e uma profecia; Violet Cold, combinando blackgaze, eletrônica e folk azeri. Existem muitos tons de black.
50 Tons de Morte – Nu Metal
No fim do milênio, música extrema já era bem difundida tanto no underground, black, death grind, hardcore; como no mainstream, como glam metal, NWOBHM, punk. Outro gênero musical transgressor muito importante não foi mencionado até aqui. Nos anos 80, assim como o metal e o punk, a cena do hip-hop crescia muito nas margens da cultura contemporânea, cenário perfeito para a formação de mais linhagens inovadoras. Em 1984, início da era de ouro do hip-hop, Run-D.M.C. lança um álbum autointitulado com a música Rock Box, uma das primeiras músicas a fundir rock com rap e o primeiro clipe de hip-hop a tocar regularmente na MTV. Em 1986, é lançado o sucesso Walk This Way, uma colaboração da Aerosmith e Run-D.M.C. Em 1987, o guitarrista da Slayer colabora com a música No Sleep Till Brooklyn dos Beastie Boys. Também em 87, a banda Anthrax lança o EP de rap metal I’m the Man com samples do Run-D.M.C. e dos Beastie Boys. Em seguida, Public Enemy lança a música Bring the Noise com a participação da Anthrax. A colaboração também rendeu uma tour. Em 1989, Faith No More lança o eclético The Real Thing. Em 1990, Primus lança Frizzle Fry. Em 1991, vem o autointitulado Mr. Bungle. Em 1992, tem o rap metal do Body Count, autointitulado. Em 1994, Korn abre a caixa de pandora. Assim se formou o nu metal, simplificando muito. Depois vem Rage Against the Machine, Deftones, P.O.D., Limp Bizkit, Sepultura, System of a Down, Slipknot, Linkin Park e por ai vai. Mais uma vez o underground transborda no mainstream.
Esse artigo não risca nem a superfície do tema, mas espero muito que desperte a curiosidade. O objetivo principal foi catalogar, sobretudo aqueles entre 1980 e 2000, de maneira introdutória os diversos subgêneros para que seja um ponto de partida para uma melhor compreensão da história do heavy metal e também para o descobrimento de novas formas de perceber, sentir e compreender o mundo e tudo aquilo que a arte pode refletir. Além de pesquisar bastante pra tentar ser acurado e sucinto, preparei a playlist com carinho e com muito cuidado para tentar não incluir nenhum artista de má índole ou de ideologia criminosa. Ainda assim vale relembrar que é sempre bom fazer uma pesquisa sobre os artistas do metal extremo. Em seguida, darei uma breve apresentação de álbuns que acho muito interessantes. Eles estão separados entre clássicos e modernos e estão em ordem de ano de lançamento. Caso queira escutá-los enquanto lê, todos eles aparecem ali na playlist.
Os clássicos
Venom | Black Metal (1982)
Newcastle, Tyne and Wear, Inglaterra
Além de dar nome ao gênero, o começo do satanismo explícito é aqui. Nesse caso é de tom satírico, nada de se levar a sério. Levemente mais picante que o rock da época, é energético e animado ao contrário do que a capa sugere. Em comparação ao álbum anterior, Welcome to Hell, um álbum demo disfarçado, é bem melhor produzido e mais refinado. Se é que dá pra chamar de refinado.
O menos black dos metais é bem sombrio mesmo assim. A caveira diabólica da capa não mente. Mas não é exatamente como os outros da primeira geração do black metal. É bem mais sério e filosófico que os outros. Por natureza, afinal é mais sobre um satanismo ateísta, Satanás aqui é mais um símbolo do que qualquer outra coisa. O álbum conta com momentos épicos de vocal de falsete bem agudo e limpo, tipo Iron Maiden e longos solos de guitarra.
Bathory | The Return….. (1985)
Estocolmo, Estocolmo, Suécia
A atmosfera é sombria, a guitarra é bem chiada e embolada; a batida é desleixada e oscilante e o vocal é moribundo e amargo. Black metal 101. Esse álbum é considerado da primeira onda de black metal e é o mais influente nas características sonoras da segunda onda. Com certeza é uma antiobra-prima.
Slayer | Reign in Blood (1986)
Huntington Park, Califórnia, EUA
Da galera do thrash norte-americano, Slayer é de longe o mais rápido, o mais sombrio e o mais satânico de todos. A capa é do artista Larry Carroll. O álbum não chega a ser tão sinistro e grotesco quanto um black metal, mas, com certeza, é pra lá que ele aponta. Tem a batida clássica do thrash, só que mais rápida e com mais pedal duplo. O vocal é bem agressivo e melódico, estilo Metallica. É um clássico do black/thrash que inspirou a maioria dessa lista e provavelmente vai continuar assim. Reign in Blood é o Sgt. Peppers do metal extremo.
Napalm Death | Scum (1987)
Birmingham, Midlands Ocidentais, Inglaterra
Desde o início é bateria a todo vapor. Os riffs são simples e efetivos, como no punk rock, porém com tanta distorção que em momentos nem se entende. Pra combinar o baixo é cheio de distorção, o que ajuda a criar essa onda gigante sonora onde o vocal surfa loucamente. A onda quebra e em seguida vem outra, de novo e de novo. As músicas são bem curtas mesmo, é coisa de dois minutos em média. Cada uma joga na cara do ouvinte duras verdades sobre a nossa sociedade, nada de satanismo e ocultismo. A realidade já é sinistra o suficiente.
Sigh | Scorn Defeat (1993)
Tokyo, Kantō, Japão
Segue bem a fórmula do black metal da segunda geração. Aura fantasmagórica, guitarra opressora, batida pesada e vocal demoníaco. Em contraste, chama a atenção o uso de piano e órgão em momentos chave, dando continuidade a melancolia porém de maneira graciosa, mostrando uma faceta virtuosa do compositor. Outro diferencial vem do uso da mitologia Hindu como pano de fundo. O álbum descreve o apocalipse ou o fim do quarto yuga, segundo hinduísmo. Ready for the Final War descreve o momento em que Kongoyasha, Fudo, Gundali, Daiituko e Gouzanze empunham suas espadas antes do fim. “Adentrando no vazio, onde nem mesmo a escuridão pode existir, então apenas chore nesses destroços”.
Ulver | Bergtatt (1995)
Oslo, Noruega Oriental, Noruega
Apesar de ser contemporâneo e conterrâneo dos artistas mais problemáticos da noruega, aqui a pegada é bem menos caricata. Não que não seja sombrio mas a produção é bem mas apurada, as músicas são mais polidas. A atmosfera não é desconfortável, mas também não é amigável. Como a floresta da capa, onde, segundo a letra das músicas residem trolls sedentos por cristãos. Também diferente dos outros, o vocal limpo é predominante. O vocal distorcido é dedicado somente aos trechos mais rápidos e barulhentos. Chama a atenção o contraste atingido ao trazer trechos complexos de violão logo após o rugir da guitarra. Chama atenção também a dinâmica, o álbum conta com momentos de maior volume e de menos volume, criando uma espacialidade rara nos primórdios do black metal. A quarta faixa, Een Stemme Locker, é um dos momentos mais marcantes do álbum. São dois violões, uma simples percussão e vocais etéreos e sombrios, criando uma atmosfera melancólica e opressora.
Death | Symbolic (1995)
Altamonte Springs, Flórida, EUA
When did it begin? (Onde começou?) É contra intuitivo, mas é sobre a vida. O álbum começa com Symbolic que começa com um andamento bem contido, porém manco; com uma conversa filosófica e séria. Logo em seguida a velocidade aumenta e o pedal duplo come solto. Um breve respiro e começa de novo. E assim segue, filosófico e cerebral, com solos complexos. Mesmo nos momentos mais fictícios o álbum, como em Misanthrope, serve ao terreno sempre. Nessa faixa fala sobre um ser estelar que nos observa coletivamente e ele odeia o que vê. De certa forma o álbum inteiro é assim, reflexões sobre conflitos da humanidade, simbólico.
Sepultura | Roots (1996)
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Um clássico do nosso país. Mistura música indígena e africana com o peso da guitarra, groovado e agressivo que traz das profundezas um ódio milenar. Para a criação do clássico, os mineiros buscaram se voltar as raízes da nossa cultura, então viajam até o Mato Grosso conhecer a comunidade Xavante na terra indígena Pimentel Barbosa em Canarana. Eles saem de lá inspirados e com duas faixas, Itsári e Canyon Jam. Lá ocorre uma troca muito importante pra história da música nacional.
11Meshuggah – ObZen (2008)
Umeo, Västerbotten, Suécia
ObZen é tão influente que é discutível a criação de um novo subgênero do metal: o Djent. O nome é em referência a onomatopeia do palm mute numa guitarra de 8 cordas. É basicamente o som percussivo estranho como no verso de Electric Red. Por mais estúpido que pareça, esse tipo de guitarra deu origem a inúmeras bandas que buscam imitar esse rugido grave para ser usado de maneira rítmica. Pra que usar um baixo se existem guitarras de 8 cordas, não é mesmo? Faz perfeito sentido. Pra além desse timbre peculiar, o ritmo consegue ser mais absurdo ainda. Esse é o tipo de coisa que é melhor mostrar do que explicar, então não vou nem tentar explicar. Adianto aqui que o baterista não é um robô, é de fato um humano, por incrível que pareça. Fato curioso e menção honrosa: o baterista, o Thomas Haake, é casado com a Jéssica Pimentel. Ela é mais conhecida por seu papel em Orange is the New Black mas também é vocalista das bandas Alekhine’s Gun e da clássica Brujeria (ella es La Bruja Encabronada), ambas do death metal.
Os Modernos
Krallice | Years Past Matter (2012)
Nova Iorque, NY, EUA
Esse é uma montanha-russa do início até o fim. Uma não, muitas emendadas. As músicas não tem uma estrutura clara, a cada trecho vai avançando e avançando, com um trecho mais forte que o outro. O ritmo é abstrato como o nome sugere e fluido como a lava retratada na capa. “Anos Após a Matéria” é uma viagem sem volta pra além da existência da vida nesse universo.
Solefald | World Metal. Kosmopolis Sud (2015)
Kristiansand, Agder, Noruega
O nome da banda significa “pôr do sol” na língua nórdica antiga. As temáticas da banda tendem a ser mais cabeçudas, são sobre filosofia, política, história e coisas do tipo. E pra combinar, o som é bem eclético. A faixa de abertura é sobre a história da humanidade e incorpora vários tipos de música ao longo dos oito minutos. A faixa dois questiona a história moderna. A quarta conta a história moderna. As mais pesadas são a seis e a sete, que falam sobre o atentado em Oslo de 2011 e sobre luto. As letras são em inglês, francês e norueguês, colocando ainda mais variedade pro mix. É um álbum muito detalhado e interessante, assim como os outros da banda.
Al-Namrood | Diaji Al Joor (2015)
Arábia Saudita
Al-Namrood é uma das bandas mais underground que existem e não é por opção. Num país onde religião é política, a sharia wahbabita, não existe nenhuma possibilidade da banda ver a luz do sol. Nesse caso, desafiar a religião é punível por lei, quem dirá em forma de black metal. Ainda assim, desde 2008 o trio lança suas músicas na internet. No início, no estilo lo-fi e cru característico do gênero, mas com o passar dos anos as produções foram melhorando cada vez mais. O quinto álbum da banda, Diaji Al Joor, representa fortemente a crescente da banda, em termos de composição, produção e emoção. Logo na primeira faixa a atmosfera desértica é posta. O vento sopra, uma harmonia de neys, um oud, um canto sinistro é a prenuncia de que algo sombrio está por vir. Em seguida a percussão e o oud anunciam o começo. Outros instrumentos marcantes desde a primeira faixa são o qanun, semelhante a uma harpa; o darbuka, tipo um tambor; e o violino. Em entrevista com a Vice, Mephisto revela: “Não há o que explicar, os conceitos envolvidos no black metal descrevem o que estamos experienciando. (…) O que pode ser mais motivante do que viver num país onde tudo é controlado pela religião?”
Zeal & Ardor | Devil Is Fine (2017)
Nova Iorque, EUA/Basileia, Suíça
Manuel Gagneux conta em uma entrevista sobre seu post em um fórum sobre música que gera a temática que muda o conceito de black no metal. E se os escravizados trazidos pras Américas tivessem se revoltado contra a imposição ao cristianismo? E se buscassem aliança com o inimigo para a destruição de seus mestres? Daí surge a mistura de gêneros afro-americanos estadunidenses (da ancestralidade de Gagneux) com o black e death europeu. A banda formada na suécia seguiu essa linha no álbum seguinte, Stranger Fruit, e mais recentemente divergiu dessa formula em favor de novas misturas de gêneros bem interessantes.
Botanist | Collective: The Shape Of He To Come (2017)
São Francisco, Califórnia, EUA
Diferente dos outros álbuns de Otrebor, a primeira faixa entrega a identidade do instrumental. Não existem guitarras em suas composições. O baterista, buscando dar forma ao conceito, escolhe o dulcimer de martelo como instrumento tonal e começa a praticar. É uma espécie de harpa em uma caixa trapezoide tocada com martelos de madeira semelhantes a baquetas de bateria. Dessa forma ele conseguiria transferir seus conhecimentos percussivos e compor black metal sobre plantas. O conceito da banda gira em torno desse personagem perturbado, o botanista, que busca exílio na floresta por odiar o avanço tecnológico as custas da destruição dos ecossistemas. Em solitude, o botanista recebe mensagens proféticas sobre o apocalipse Verdante. Infelizmente, no momento da escrita desse artigo, o site que explicava a história e os termos utilizados nas músicas encontra-se fora do ar. Todavia, em Collective, a mensagem é clara em relação a profecia. Essa obra inova muito em cima de conceitos básicos do black metal. Como sugerido em outro álbum, a obra de Otrebor se trata de green metal.
Alien Weaponry | Tangaroa (2021)
Waipu, Bream Bay, Nova Zelândia
A primeira vez que eu vi uma seleção neozelandesa performando um haka (num dos jogos olímpicos, eu acho) eu me impressionei muito. “É muito do rock”, eu pensei. Experienciar todo o poder do haka em um álbum de metal é absolutamente incrível. Tangaroa é cheio dessa energia empoderadora. O instrumental se encaixa perfeitamente com o canto de guerra, é groovado e dançante, a guitarra é bem pesada e percussiva. E colocando no contexto lírico, faz mais sentido ainda. O álbum é cantado em inglês e em maori e fala sobre a mitologia local e da colonização sangrenta do império britânico. Pra quem gosta de metal, esse aqui é obrigatório.
Wormrot | Hiss (2022)
Singapura
Singapura é o país dos precursores do metal védico, Rudra. Mais recentemente, os mais populares são da Wormrot, desde 2010 assinados com a lendária Earache Records. Hiss não é só grindcore, é hardcore, é thrash, é black. Vocal ora furioso ora poderoso; riffs memoráveis, riffs porrada, riffs black; blast beats insanos e várias batidas diferentes; e um violino absurdo. É um álbum muito versátil considerando que o foco deles é grindcore, gênero que por vezes não tem muita nuança e variedade de emoções. É muito memorável considerando que tem 21 faixas e só 32 minutos. Na verdade parece ter bem menos faixas de tão bem que uma leva a outra. Fato curioso: Wormrot tinha uma fã muito fofa e excepcional. Seu nome era Biquette (~2003 – 2013), também conhecida como a cabra do punk rock. Ela teve um momento de fama em 2012 quando postaram fotos suas na internet. Até onde sei, é a primeira fã de grindcore não-humana já registrada.
Liturgy | 93696 (2023)
Brooklyn, Nova Iorque, EUA
Haela Hunt-Hendrix é provavelmente uma das artistas mais inovadoras da lista. A americana vem trabalhando seu estilo de composição desde 2008 a fim de virar o conceito de black metal do avesso. Em 20xx em um manifesto, Transcendental Black Metal – a Vision of Apocalyptic Humanism, a compositora define o que busca fazer como transcendental em oposição ao que chama de hyperbolean black metal, fazendo referência a segunda onda de black metal. Ali ela define a filosofia de seu trabalho em busca de superar a tradição de ampliar cada vez mais a intensidade para além do círculo vicioso depressivo que não tem início ou fim. A saída, dentre outros aspectos, seria se desfazer do uso do blast beat em troca do que chama de burst beat. Em resumo, seria mais fluido e mutante que o “um-dois, um-dois, um-dois” do blast beat tradicional. Esse papo cabeçudo, por mais pretensioso que pareça, deu força pra que Haela fizesse esse tipo de metal de luz, empoderador, pulsante e fluido. Isso sem falar da questão espiritual trazida por sua filosofia, que, francamente, eu não compreendo. A pesar da noção de ritmo mais fluido não ser coisa criada aqui, certamente a versão proposta chama a atenção, não só pela complexidade mas pela intensidade e sinceridade emocional que as transições, viradas e erupções proporcionam. Os elementos trabalhados nos cinco álbuns anteriores se convergem nesse, que é facilmente um dos melhores álbuns dessa lista.
Arka’n Asrafokor – Dzikkuh (2024)
Lomé, Maritime, Togo
Arka’n é muito assertiva em seus feitos. Se trata da primeira banda de metal de Togo, pequeno país da África ocidental, próximo da Nigéria e da Costa do Marfim. Dzikkuh traz elementos da cultura Jeje pro universo do metal. A fusão de elementos do thrash, groove, nu e metalcore, com padrões rítmicos complexos criam o que chamam de afro metal ou asrafocore (asrafo significa guerreiro em jeje). Esse álbum tem a atmosfera única da Terra-mãe, empoderadora e feroz como o rugido da leoa. Assim como fazem Alien Weaponry e Sepultura, furar a bolha da hegemonia rítmica ocidental é fundamental para a difusão da música extrema ao redor do planeta. Esse álbum é obrigatório pros metaleiros e curiosos.
Oranssi Pazuzu – Muuntautuja (2024)
Tampere, Bircária, Finlândia
Um sonho febril. Aparição alien ou alucinação sideral? Logo de cara o ouvinte é apresentado com esse ritmo estranho, pulsante, que vai até o fim da música e ainda sim a construção atmosférica do clímax segue com riffs graves e rítmicos. O vocal absurdo e a letra em finlandês corroboram muito pra uma vibe psicodélica e alienígena. Quando cheguei em Valotus, a sexta de oito faixas, achei que era o fim. O que diabos poderia vir depois da morte. A cada sequência de ghost notes, um pouco mais perto do centro do pesadelo. Provavelmente uma das músicas mais catastróficas que já escutei. Mas realmente tem vida após a morte. As últimas duas faixas mostram justamente a contemplação do resultado da bad trip astronômica.
O que faz a Música Soar Assustadora (The Beat)
Artigo escrito por Zoe Sones, e publicado em 9 de junho de 2022 no blog The Beat, que pode ser conferido aqui.
O que é exatamente que faz músicas soarem tão assustadoras? Vamos mergulhar na teoria por trás das trilhas sonoras de Terror para entender como elas provocam medo.
Todos nós estamos familiarizados com o tipo de música dos filmes de terror que causa angústia e ansiedade. No momento em que uma trilha tortuosa começa a tocar, sabemos que o destino dos personagens na tela não é promissor. Mas você já se perguntou o que exatamente torna as trilhas sonoras tão assustadoras?
Como compositora, escrever música que deixa o público desconfortável e carrega um tom sinistro é algo que eu realmente aprecio. Por isso, vamos reservar um momento para explorar as técnicas que os compositores usam para alcançar esse mundo sonoro específico e como usar essas teorias a seu favor ao adicionar trilhas sonoras ao seu próprio filme de terror.
O Poder da Dissonância
Dissonância refere-se à falta de harmonia na música. A dissonância faz com que seu público se sinta inquieto e ajuda a criar tensão e um senso de movimento nas composições. Normalmente, temos tonalidades maiores e menores na música. A tonalidade maior comumente proporciona um clima positivo e alegre, enquanto a menor está associada à sensação de tristeza ou escuridão.
Tudo isso está relacionado aos intervalos entre cada uma das notas em uma tonalidade específica: em uma tonalidade menor, as notas são rebaixadas, o que altera muito a sensação geral.
A dissonância é uma técnica fundamental usada em trilhas sonoras de horror para aumentar esse desconforto e medo. Isso é alcançado por meio de duas ou mais notas tocadas juntas, que não soam muito agradáveis ao ouvido. Na Teoria Musical Clássica Ocidental, a dissonância geralmente é resolvida para aliviar a tensão, mas neste caso, ela permanece ali, permanentemente pairando sobre nós.
Um exemplo de dissonância pode ser encontrado na trilha sonora de Bobby Krlic, no filme Midsommar. A faixa "Gassed" começa com uma nota longa e sustentada de violino enquanto outra entra, movendo-se ao redor da nota fundamental em completa dissonância. Impactante, não é?
Contraste e Transição
O princípio do contraste afirma que as músicas devem apresentar ideias opostas à medida que progridem. Enquanto Midsommar possui seu mundo sonoro escuro e assustador, Bobby Krlic também utiliza tonalidades que soam mais esperançosas, mas ainda assim têm um subtexto perturbador. Isso é alcançado por meio da transição entre trechos contrastantes. Quando vamos em direção ao final do filme, existe tanto a sensação de alívio misturada com um receio perturbador; a música transmite isso perfeitamente.
A peça “Fire Temple” é inicialmente calma, com cordas suaves tocando acordes lentos. Embora tenha um longo desenvolvimento, ela se torna amarga com a introdução de tremolo (repetição rápida de notas) e cordas agudas que soam como gritos. Essa mistura entre dois mundos sonoros opostos deixa uma sensação angustiante, assim como o que você vê na tela.
Texturas Ásperas e Ritmos Pulsantes
A textura musical é como as camadas de som são construídas e como interagem entre si. É muito semelhante a como você sentiria um objeto tátil com suas mãos. A suavidade de um cobertor macio é reconfortante, mas a textura de uma cama de pregos é muito menos acolhedora. O mesmo acontece com o som.
A combinação de texturas inclui drones baixos com sussurros sinistros de outros sons, texturas de acordes mais densas com progressões de acordes mais ásperas e gritos instrumentais de alta frequência. Muitas trilhas sonoras terão explosões súbitas para complementar sustos repentinos.
O exemplo mais famoso é a trilha sonora de Bernard Herrmann para a cena do chuveiro em Psicose. Não apenas as cordas agudas tocam em completa dissonância, mas elas tocam cada nota acentuada, em uma dinâmica alta, provavelmente tocadas com o calcanhar do arco para um som mais áspero e agressivo. O ritmo constante imita o efeito da facada, outra maneira de implementar um medo indefinido!
Uma das técnicas de composição mais populares utilizadas são os drones baixos. O desenvolvimento lento e profundo proporciona uma textura ambiental sombria, que contribui para a construção da tensão. Para aprimorar ainda mais isso, colocar um ritmo pulsante por cima também pode adicionar antecipação e criar o efeito de um batimento cardíaco.
Os compositores podem explorar essa ideia alterando o ritmo; ter um ritmo de batimento cardíaco irregular pode aumentar a ansiedade, mas manter um ritmo constante também pode ter o mesmo efeito. Howard Shore, que compôs a trilha sonora de O Silêncio dos Inocentes, utiliza essa técnica. Não apenas a linguagem harmônica é assustadora com sua natureza dissonante, mas a adição dos timbales sobre a sequência de acordes destaca a angústia do que está acontecendo na tela.
O ritmo pulsante também pode ser interpretado no tema de Tubarão. John Williams compôs um tema cromático característico, alternando entre duas notas a meio tom de distância uma da outra, acelerando gradualmente como se um enorme tubarão estivesse prestes a atacar!
Instrumentação
Entre todas as características musicais técnicas já discutidas, não devemos esquecer a escolha dos instrumentos. Embora haja uma vasta quantidade de opções de instrumentação, uma escolha popular é a Família de Cordas. Ela oferece uma paleta muito versátil de tons, texturas, timbres e dinâmicas para incitar o medo. As cordas mais baixas (contrabaixo e violoncelo) podem tocar drones rumorejantes muito baixos, com a capacidade de aumentar dinamicamente ao adicionar mais pressão ao arco.
As cordas mais altas (violinos e violas) podem tocar passagens alarmantes, imitar gritos, uivos e até facadas! O uso do arco pode mudar o som de muitas maneiras: tocar mais perto do calcanhar do arco para um timbre mais agudo, tocar mais perto da ponte para um som semelhante ao vidro (conhecido como sul ponticello) e repetir rapidamente os golpes do arco para um som tremulante (conhecido como tremolo).
Não apenas instrumentos acústicos são utilizados, mas as maravilhas da tecnologia musical ampliaram ainda mais as possibilidades de encontrar outros sons para criar uma atmosfera assustadora. A criação das DAWs (estações de trabalho de áudio digital) permite que os compositores melhorem a experiência do ouvinte, incluindo mundos sonoros mais imersivos. Os métodos de edição de áudio tornaram o processo de composição muito mais empolgante, já que criar essa paisagem sonora de horror com mais parâmetros disponíveis pode, em última análise, levar o ouvinte a outro mundo.
Voltando a Midsommar, a faixa “Hålsingland” tem esse incrível drone pulsante lento, acompanhado por ondas de som sinistras, que só foi possível graças à tecnologia musical atual.
Os sintetizadores proporcionaram uma gama mais ampla de sons para explorar. John Carpenter, que compôs as trilhas sonoras de Halloween e The Thing, demonstra a versatilidade do sintetizador na criação de trilhas sonoras assustadoras. Mais recentemente, Stranger Things ressuscitou aquele som de sintetizador dos anos 80 na cena de horror, não apenas nos levando de volta à década, mas ainda assim alcançando aquela sensação creepy.
Portanto, da próxima vez que você decidir ter uma noite de filmes de terror, preste atenção àquelas riffs dissonantes, às texturas perturbadoras e aos ritmos pulsantes, e permita que elas inspirem o tema musical perfeito para seu próximo filme ou curta-metragem de terror. Estude como elas te fazem sentir desconfortável e como funcionam dentro da edição e da história. Isso, sem dúvida, levará sua cena assustadora para o próximo nível.
Artigo | Aphex Twin - Come To Daddy (Universidade de Edinburgo)
CLAMANDO CHRIS CUNNINGHAM PARA O CINEMA BRITÂNICO
O videoclipe mais assustador da história e sua influência no cinema britânico
Nota do tradutor:
A influência de Richard D. James no cenário musical é inegável. Sua importância vai muito além da música eletrônica, impactando profundamente a música como um todo. Desde artistas consagrados como Radiohead e Björk, que publicamente o admiram, até Kanye West, que utilizou a melodia marcante de "Avril 14th" como peça central na faixa "Blame Game" de My Beautiful Dark Twisted Fantasy — James, mais conhecido por seu pseudônimo Aphex Twin, deixou uma marca indelével.
Mesmo que você não reconheça o nome, é bem provável que já tenha tido contato com sua identidade visual intrigante e provocadora. No entanto, muitos talvez não tenham dado a devida atenção aos seus álbuns extensos, sem elementos vocais, focados em sons ambientais e altamente experimentais. Esses trabalhos desafiadores podem ser difíceis de abordar à primeira vista, mas revelam uma profundidade sonora rara.
Ao mesmo tempo em que cria algumas das músicas mais emocionantes e sensíveis da música contemporânea, Richard D. James, unindo forças ao diretor Chris Cunningham, é responsável por uma das peças audiovisuais mais perturbadoras de todos os tempos. Para quem se arrisca a assistir pela primeira vez, é uma experiência que, sem dúvida, causa impacto.
A história por trás de uma de suas músicas mais desconfortantes é tão estranha quanto fascinante. Em uma entrevista concedida em 1997, James compartilhou o curioso relato:
"Essas palavras estavam em uma carta que recebi de um fã há muito tempo. Veja, eu fiz a faixa em sua forma original há cerca de dois anos e meio, no mesmo dia em que recebi essa carta maluca. Ela terminava com 'Eu quero sua alma, eu vou comer sua alma, eu quero sua alma'. Eu não consegui entender o que aquilo significava, mas achei que soava bem."
Esse relato de origem já estabelece o tom desconcertante da música, que, quando unida ao videoclipe, cria uma experiência audiovisual quase apocalíptica. Desde o primeiro segundo, a sensação de desconforto se instala. Elementos dissonantes e industriais se sobrepõem, criando uma atmosfera claustrofóbica e ameaçadora que se intensifica até o fim, sem um momento sequer de alívio.
Richard D. James desafia nossos sentidos, nos conduzindo por paisagens sonoras e visuais que alternam entre o sublime e o perturbador. Essa dualidade é o que o torna não apenas um ícone da música eletrônica, mas uma figura essencial na música contemporânea.
"As letras da faixa do Aphex Twin são claramente influenciadas por Hellraiser (1987), de Clive Barker, em que o personagem Frank repete a frase 'Come to Daddy' (Venha para o Papai), e o personagem 'Pinhead', quando diz as palavras 'Vamos despedaçar sua alma'. O uso da frase 'Come to Daddy' em outros filmes de terror (por exemplo, quando é dita por Freddy Krueger em A Nightmare on Elm Street 4: The Dream Master (1988)) reforça a ideia de que Cunningham/James estão explorando o potencial de choque/cômico ao transplantar um clichê do cinema de fantasia para os espaços monótonos da decadência urbana."
Filmado em um conjunto habitacional em Thamesmead, no leste de Londres, Come to Daddy é, para mim, a produção de Cunningham mais nativa em termos de sua iconografia e seu engajamento com ideias associadas à delinquência e aos 'efeitos da mídia' na imaginação popular britânica (embora não exclusivamente). Mesmo que seja facilmente classificado como um videoclipe, dado seu papel na promoção de um EP homônimo de Aphex Twin, Come to Daddy apresenta desde o início um desafio sutil à ortodoxia dos videoclipes, ao impor o nome do diretor, do músico e do título quase subliminarmente sobre as imagens por meio de flashes rápidos e cores atenuadas. Além disso, o símbolo familiar de Aphex Twin – um logotipo de marca que não carrega nenhuma referência conhecida – é visto mudando rapidamente de um lado para o outro para um sinal (reminiscente dos associados a banheiros públicos) que sugere a forma humana; isso antecipa não apenas a imagética que está por vir, mas também a tensão mais ampla do vídeo entre abstração e figuração.
"O videoclipe de seis minutos começa com enquadramentos que estabelecem uma atmosfera de suspense – acompanhadas por sons eletrônicos inquietantes – de um bloco de apartamentos cinza e de concreto e a chegada de uma mulher idosa, que parece vulnerável, acompanhada de seu grande grande cachorro inquieto que fareja uma pilha de lixo e, em seguida, urina em um pequeno televisor abandonado. Isso traz à vida uma imagem digitalmente mutável de um rosto na tela recém mijada. A face transmutada é de Richard James, e a faixa musical, descrita como 'horror jungle' (Young 2005: 78), começa com sua voz agressivamente processada gritando 'Eu quero sua alma'. Isso chama a atenção de um grupo de algumas pessoas pequenas (daqui em diante, crianças Aphex), todas com o sorriso característico de James em seus álbuns (Matthews 2004), apenas identificadas como femininas ou masculinas através de seus uniformes escolares ou casacos parka (uma referência, talvez, às evocações cult britânicas da cultura 'mod', notavelmente em Quadrophenia (1979)). Elas correm descontroladamente, brigam entre si e assustam um morador em uma área de estacionamento. O televisor com o rosto de James é acidentalmente derrubado, e isso libera o “nascimento” de uma criatura esquelética, semelhante a um humano, através de uma tela membranosa, que então – agora com o familiar rosto de James – se coloca orgulhosamente sobre seus 'filhos' em uma névoa que obscurece qualquer sentido de um local específico. Os últimos 40 segundos do vídeo cortam rapidamente entre a criatura se movendo de forma rígida e flashes abstratos da imagética anterior: o rosto da TV, estático, a velha aterrorizada, os blocos de apartamentos, flashes de luz, respingos e as crianças Aphex em fúria. Em um momento, a criatura coloca as mãos sobre a cabeça em uma posição de submissão, como se estivesse espelhando a própria subjugação do espectador ao ataque sonoro e visual avassalador do vídeo; além disso, em um dado momento, é vista usando um pano sobre suas genitais que pode ser tanto uma fralda infantilizadora quanto uma tanga, reforçando a interpretação da criatura como uma figura de Jesus que sofre."
Embora o vídeo seja principalmente editado de forma associativa aos ritmos intensos da música, em vez de seguir o estilo de continuidade cinematográfica tradicional, há instâncias de construções de plano-contraplano para transmitir o ponto de vista e evocar suspense ou ameaça. Por exemplo, antes que as crianças Aphex sejam reveladas, uma série de tomadas utiliza a convenção do horror/thriller de um observador invisível – significada por uma visão levemente obscurecida de onde a mulher percebe um movimento. O nascimento pegajoso da criatura da televisão, uma evidente homenagem a Videodrome (1983), conecta-se claramente com uma tradição de “horror corporal” focada anatomicamente, ligada a figuras como Cronenberg e Clive Barker; a criatura é revelada de forma incremental por meio de imagens fragmentadas que geram ansiedade sobre sua forma e o que ela pode fazer com a mulher.
Para Tristan Fidler, ao se basear em paradigmas relacionados à construção do corpo cinematográfico, Come to Daddy é um emblema da visão “pessimista” de Cunningham – como visto em outras obras como Only You e Afrika Shox – sobre a ‘relação negativa entre o corpo humano e o espaço urbano, repleta de tensão e desconforto’ (2007: 130). Assim, as crianças Aphex personificam uma experiência de alienação no conjunto habitacional por meio de seu comportamento fisicamente e socialmente disruptivo, enquanto a criatura da televisão também fica sozinha e alienada, enfatizando uma ‘sensação geral de desconforto diante do Outro espetacular’ (ibid.: 141). No entanto, interpretar Come to Daddy como meramente um ‘grito contra a decadência urbana’ (Hanson 2006: 15) é uma leitura excessivamente reducionista de sua investigação mais complexa das ansiedades na imaginação popular britânica relacionadas aos conjuntos habitacionais, lugares que têm sido explorados na mídia impressa e visual como 'cifras... abreviações para fazer um ponto sobre a sociedade em que vivemos’ (Hanley 2007: 183). Na época de Come to Daddy, o conjunto habitacional já estava firmemente estabelecido como um cenário recorrente para um certo tipo de cinema britânico socialmente consciente, com uma postura ambivalente sobre questões de agência e aprisionamento: pode-se contrastar, por exemplo, a maneira como os personagens são sobrecarregados por seu ambiente em Raining Stones (1993) de Ken Loach com o senso de direito das adolescentes exibicionistas de Rita, Sue and Bob Too! (1987). No entanto, com sua abordagem mais lúdica do que didática, Come to Daddy é melhor apreciado como um precursor de representações ‘fantasiosas’ como a comédia dramática de televisão Shameless (Channel 4, 2004–13) e o filme de terror Attack the Block (2011), que em grande parte evitam o naturalismo, mas ainda assim intervêm em debates políticos em torno da ‘classe subalterno’. Embora o vídeo seja atípico de Cunningham em sua utilização de um cenário ‘do mundo real’ reconhecível, o conjunto habitacional oferece uma plataforma ideal para sua fusão característica de figuração e abstração. O conjunto habitacional foi definido como um ‘encontro do modernismo arquitetônico com os ideais do estado de bem-estar britânico’ (Taunton 2010: 176), e Cunningham encontra uma equivalência à violência sônica da faixa em composições e edições que exploram as linhas e formas brutalistas do ambiente, ao mesmo tempo em que utiliza personagens para sugerir um cenário de proteção paternal alternativa àquela do estado. Em um ponto, perto do final do vídeo, uma tomada das paredes do conjunto habitacional se torna inesperadamente sujeita a um efeito de degradação, como se a interferência vista anteriormente no monitor de televisão tivesse sido transferida, assim como a criatura dentro dele, para o 'mundo real'. Embora o efeito contribua para a progressiva confusão do vídeo entre realidades mediadas e não mediadas, também alude à vigilância de espaços públicos por meio da tecnologia de CFTV, ou pelo menos ao colapso de tal monitoramento."
"Ao retratar entidades físicas sem uma clara “classificação como criança ou adulto’ (Fidler 2007: 135), Come to Daddy complica uma leitura simples de sua narrativa em termos de efeitos da mídia. Enquanto são as imagens agressivas na tela da televisão que dão origem a uma ameaça monstruosa e física para a mulher idosa (que pode ser interpretada como representativa do tecido social mais amplo), e que aparentemente impulsionam as crianças Aphex em direção à delinquência, a criatura da televisão também traz calma e unidade para os menores. Para o espectador britânico, pelo menos, esses elementos de Come to Daddy podem remeter ao pânico dos ‘video nasties’ do início dos anos 1980, relacionado aos medos sobre o possível impacto do conteúdo explícito e não regulamentado sobre as crianças (veja Egan 2007). Curiosamente, o próprio Cunningham delineou, no contexto da imposição de classificações de idade pela British Board of Film Classification em vídeos online, o impacto formativo do material ‘extremo’ em sua própria criatividade:
"Eu costumava assistir a video nasties. Foi uma má ideia? Eu não sei, mas poder tomar essa decisão por si mesmo é mágico... Quando criança, eu realmente não fazia distinção entre olhar um livro sobre pintores surrealistas, um livro sobre como Tom Savini fez efeitos de gore ou um videoclipe. Para mim, tudo é arte... Durante um tempo, os videoclipes foram um substituto do que o cinema de vanguarda estava fazendo. Se você quisesse ver algo de vanguarda ou surreal, era mais provável que visse em um videoclipe do que em um filme." (Monroe 2015)
"No entanto, a música ‘Come to Daddy’ tende a ser vista, em parte, como uma crítica paródica aos ‘hits de dança eletro-rock’ da época, particularmente o sucesso techno de 1996, ‘Firestarter’, do The Prodigy (Fidler 2007: 131). E, como mencionado anteriormente, o vídeo também é uma continuidade do uso de Aphex Twin de seu próprio ‘rosto e corpo [na arte de capas e vídeos] como um ataque brutal à imagética excessivamente cosmetizada do pop contemporâneo’ (Shaughnessy 2005: 81). Nesse sentido, Rob Young observa como o desconforto de Richard James com sua crescente reputação levou a uma “decisão consciente de retaliar, despedaçando sua imagem, cortando imagens digitais suas, fazendo-se parecer um louco borrado” (2005: 77–8). Um precursor notável do vídeo de Cunningham é o clipe promocional de David Slade para ‘Donkey Rhubarb’ (1995) de Aphex Twin, que também possui um cenário urbano e apresenta três pessoas vestidas em trajes de ‘urso’ peludos, personalizadas com os rostos idênticos e planos do músico, que brincam, brigam e fazem gestos sexuais – incluindo um movimento de ‘impulso de quadril’ que é repetido (a intertextualidade é presumivelmente deliberada) por uma das crianças Aphex em Come to Daddy. Embora totalmente inesperados, os seres aqui, às vezes filmados interagindo com crianças ‘reais’, são estranhamente semelhantes aos personagens do programa infantil da BBC, Teletubbies, que estreou em 1997. Dado que Teletubbies e Come to Daddy compartilham uma concepção de figuras infantis que recebem e internalizam transmissões de vídeo, talvez não seja uma ideia tão descabida sugerir que Aphex Twin e Cunningham estão canalizando uma ideia mais ampla tanto na cultura popular quanto na teoria pós-moderna sobre crianças e formação cultural. De fato, a análise de Jonathan Bignell sobre Teletubbies como uma representação da infância como familiar e alienígena tem alguma aplicação em Come to Daddy, especialmente em como “coloca a televisão como um mediador das fronteiras incertas entre a idade adulta e a infância, o familiar e o alienígena, o humano e o inumano’ (2005: 374)."
Entrevista | Dario Argento (INTERVIEW)
Dario Argento sobre transformar uma vida de sangue, lâminas, e pulp em arte
Notas do tradutor (Marco Leal):
Conduzida por Christopher Bollen e publicada em 17 de abril de 2019, esta entrevista foi traduzida diretamente do site da Interview (que pode ser conferida na integra aqui). Foram mantidas apenas as perguntas e respostas entre o entrevistador e o entrevistado, com a introdução original sendo excluída desta tradução. Assim como em outras entrevistas, trechos podem ser cortados da tradução a depender do tradutor.
A entrevista, sucinta e menos imersiva que outras que Argento deu ao longo dos anos, foi escolhida por ser feita próxima aos debates do pós-horror no cinema, algo que Bollen menciona indiretamente na introdução e o próprio Argento comenta em resposta a filmes de terror contemporâneos.
CHRISTOPHER BOLLEN: Você vem de uma família que trabalhou no cinema — sua mãe era fotógrafa e seu pai, produtor. Filmes devem ter sido parte da sua vida desde cedo. Quais filmes despertaram seu interesse inicialmente?
DARIO ARGENTO: Eu tinha um gosto muito eclético quando criança. Eu adorava dramas e filmes de aventura, crimes e faroestes. Depois, descobri o cinema de horror, e isso ficou gravado na minha mente desde então. As imagens, cenas e atores — todo aquele mundo foi marcado na minha mente como uma tatuagem.
BOLLEN: Tenho certeza de que foi semelhante na Itália, assim como nos Estados Unidos: o horror não compartilhava a mesma reverência ou prestígio que outros gêneros.
ARGENTO: Eu era muito fã de horror e lembro que esses filmes não eram respeitados pela minha família ou pelos professores. Lembro quando um novo filme do Hitchcock — que eu amava — foi lançado, e os críticos o menosprezaram, chamando-o de um filme "comercial". Eu me sentia mal pelo Hitchcock e por aqueles que, como eu, se sentiam parte dessa estranha e alienígena clã.
BOLLEN: Edgar Allan Poe foi uma grande influência para você também, correto? E, na verdade, antes de ser diretor, você passou anos como escritor e jornalista. Não é coincidência que em muitos dos seus primeiros filmes, o protagonista seja um escritor.
ARGENTO: Descobrir Edgar Allan Poe foi a minha luz na escuridão. Suas histórias estavam tão longe da rotina da minha vida cotidiana que eventualmente o tomei como modelo ou mentor. E, sim, todos os anos passando escrevendo contos e artigos para revistas me levaram ao mundo que eu mais tarde fiz meu: o cinema.
BOLLEN: Eu estava tentando imaginar um típico quadro de referências do Dario Argento para cada um dos seus filmes. Onde começa a ideia inicial? Como você começa a construir cada novo mundo assombroso?
ARGENTO: Meus filmes sempre ganham vida a partir de uma ideia, uma coincidência ou uma mágica onírica. Um momento efêmero que se estabelece na minha mente e começa a florescer. A trama lentamente aparece diante dos meus olhos, e só resta escrevê-la. Na verdade, eu uso um quadro de referências. E a pesquisa de locações é essencial para a realização do filme. Eu me inspiro na arquitetura — na beleza de certos bairros, no mistério de edifícios estranhos ou ruas que sugerem teorias psicanalíticas. Eu só escolho meus atores depois de escrever o roteiro.
BOLLEN: Que papel as cores desempenham nesse mundo?
ARGENTO: As cores são instrumentos fundamentais para dar um tom e uma alma ao filme.
BOLLEN: O giallo como gênero literário e cinematográfico já estava em pleno desenvolvimento na Itália quando você fez seu primeiro filme. E, no entanto, eu diria que você o aperfeiçoou como uma forma de arte nessa primeira contribuição, O Pássaro com Plumagem de Cristal. O que foi que o giallo o atraiu?
ARGENTO: O giallo sempre me fascinou — seja italiano ou internacional — por causa de seus mistérios, enigmas, o charme do proibido, as histórias de amor impossíveis, os reviravoltas sensacionais e uma trama não muito linear. Nos anos 1960, quando realmente comecei a lidar com o cinema — primeiro como jornalista, depois como roteirista — o giallo tinha muito pouco interesse para os intelectuais. Minha avó, uma mulher realmente conservadora, não me deixava lê-los, então eu costumava me esconder no sótão para fazer isso em privado.
BOLLEN: O que torna o giallo tão distintamente italiano?
ARGENTO: O giallo é um misto de referências. Havia uma torrente de temas e pensamentos que se aglomeravam no giallo italiano. Por exemplo, não vamos esquecer a ferocidade dos assassinos, a constante presença de personagens femininas e sua importância para a trama (especialmente nos meus filmes), os cenários irreais e altamente artísticos. Além disso, há a alma italiana que marca as histórias e os personagens — algo que vem do nosso passado, nossa religião e nossas superstições.
BOLLEN: Eu vejo uma espécie de barroco católico no design dos seus filmes — tanta atenção às cores e à luz. Como você consegue esses espetáculos visuais deslumbrantes repetidamente? É quase como se houvesse algum tipo de filme Argento que é super saturado.
ARGENTO: Acho que meus filmes são deslumbrantes porque são o resultado de muito estudo por trás da minha cenografia e movimentos de câmera. Estruturas peculiares, viagens ao desconhecido, enigmas, assassinatos selvagens, mas extravagantes, longas sequências de violência que lembram rituais astecas — tudo isso está conectado à minha ideia deste mundo que relato em meus filmes.
BOLLEN: Você pode ser o diretor que mais matou personagens de maneiras bizarras e originais. Não há assassinatos rápidos por pistola para você, a menos que seja uma bala pelo olho de uma porta, como em Ópera. Frequentemente são machados, estacas, ratos, elevadores, pedaços de vidro, lâminas de barbear, quedas por janelas. Como você continua pensando em novas maneiras de matar pessoas? E quais foram suas favoritas?
ARGENTO: Eu tive centenas de assassinatos nos meus filmes. Eles são a minha especialidade. Eu os visualizo quando escrevo e deixo minha imaginação fluir. Quanto ao processo de pesquisa por trás da estratégia de assassinato, eu levo em consideração o momento particular da trama e a psicologia do personagem na cena. Algumas cenas de morte foram mais bem-sucedidas que outras. Eu teria que mencionar as de Profondo Rosso (Profundamente Vermelho), Suspiria, Tenebre e Ópera.
BOLLEN: É difícil conseguir uma boa cena de morte de um ator? Eles geralmente têm que gritar, se contorcer e espirrar sangue de vários orifícios.
ARGENTO: Não, não foi difícil para mim me divertir com os atores e suas mortes macabras. Assim que eles entendem seu papel, o ator o interpreta da melhor forma, seguindo minhas orientações. E, então, quando estou editando o filme, é meu trabalho encontrar o momento certo na atuação.
BOLLEN: Como os censores tradicionalmente trataram seus filmes?
ARGENTO: Eu lutei contra a censura em quase todos os países em que meus filmes foram lançados. Hoje, a censura foi em sua maioria abolida, embora, até recentemente, ela tenha me perseguido o tempo todo. Na verdade, eu não acho que tenha sido culpa da Igreja Católica; foi mais sobre burocracia e leis conservadoras.
BOLLEN: Fora das cenas de morte, seu trabalho de câmera também é excepcionalmente inventivo. Frequentemente vemos através de múltiplas janelas ou quartos, movendo-nos de perto ou ampliando acima da ação. O que você se lembra como a tomada mais complicada de executar?
ARGENTO: O trabalho de câmera é uma criação minha, e não leva semanas ou anos. É mais como um trovão na minha cabeça. É intuição. O uso de um guindaste em Tenebre pode ter sido o momento mais complicado [uma longa tomada contínua usando um guindaste que observa através de várias janelas em uma casa antes de um assassino entrar, considerada uma conquista técnica marcante]. Além disso, a cena do corvo no início de Ópera foi difícil.
BOLLEN: O que te assusta?
ARGENTO: Filmes de horror raramente me assustam. Fico mais assustado com pesadelos — que realmente me deixam ansioso e apavorado. Caminhar sozinho pela minha casa pode me deixar assustado, dependendo do que está passando pela minha mente. Às vezes, sinto que estou cercado por presenças. Mas eu acho que isso está apenas na minha cabeça — na parte obscura.
BOLLEN: Eu sei que você respeita o diretor John Carpenter, mas e quanto a todos os filmes slasher americanos dos anos 80? Seus filmes são frequentemente considerados uma das inspirações para essa onda popular de horror.
ARGENTO: Eu acho que meus filmes e os slasher americanos são dois gêneros completamente diferentes. Eu lido com psicologia e o subconsciente; sem esses elementos, meus filmes não fariam sentido. Filmes de horror adolescente não têm nada a ver com isso, e a maioria das vezes são sem sentido e infantis.
BOLLEN: E, no entanto, tenho certeza de que você poderia ter se mudado para Hollywood a qualquer momento da sua carreira e feito filmes americanos. Você permaneceu comprometido com o cinema italiano. Por que você nunca filmou em Veneza, uma cidade que parece feita para uma produção do Argento?
ARGENTO: Pensei em filmar em Veneza em vários momentos da minha carreira. Questões práticas e financeiras sempre impediram cada tentativa. Eu escrevi algumas histórias curtas ambientadas em Veneza, e escrever é muito mais fácil porque minha criatividade não está atrelada a questões políticas ou operações complexas. Filmagens em Veneza podem ser realmente problemáticas por causa de suas pontes, canais e do mar.
BOLLEN: Recentemente, houve um aumento nos EUA de filmes de horror artísticos ou inteligentes — estou pensando em filmes como Corra! e Hereditário. Qual é a sua opinião sobre o recente remake do seu filme Suspiria feito por Luca Guadagnino?
ARGENTO: Para mim, o remake de Suspiria não parece um projeto bem realizado. Falta medo, música, tensão e criatividade cênica. Filmes como Corra! e Hereditário me impressionaram pela sua bela fotografia, trama e produção.
BOLLEN: Antes de você dirigir seu próprio filme, você co-escreveu com Bernardo Bertolucci o roteiro do clássico de Sergio Leone, Era Uma Vez no Oeste. Você aprendeu alguma lição com Leone sobre cinema? E há algum conselho que você daria a um cineasta que está começando?
ARGENTO: Leone me ensinou o papel crucial da câmera na realização de um filme — uma lição decisiva para mim. Como conselho para um jovem cineasta, você deve assistir a muitos filmes, várias vezes, buscar sua direção dentro de si mesmo e seguir esse caminho.
Entre o Puro e o Perverso | O Giallo de Lucio Fulci
O cinema italiano é uma das mais ricas fontes da sétima arte, com sua extensíssima gama de criadores que impulsionaram os limites do cinema, prática sob risco de extinção.
São os italianos que colocam os pés do cinema no chão com o neorealismo, mas também o destroem e reconstroem com o magnífico terror italiano. O cinema de terror, embora muito anterior ao boom italiano, é, de certa forma, revolucionado a partir dos anos 60, com o surgimento de diretores que, com distintas visões, renovam e reinventam os sentidos e sensações atrelados a filmes de terror. Três dos grandes pioneiros dessa revolução são Mario Bava, Dario Argento e Lucio Fulci: uma trindade que se opõe e se complementa.
Fulci, o autor em foco neste texto, começou sua jornada cinematográfica ainda nos anos 50, com seus primeiros trabalhos como diretor assistente, escritor, e até mesmo diretor ao fim da década. Nos anos 60, dirigiu dezenas de filmes de todos os gêneros que à época estavam em “alta” para com o seu público nacional: commedia all’italiana, spaghetti western (bang-bang à italiana), musicarello... mas foi somente na passagem da década de 60 para a de 70 que Fulci começou a realizar os trabalhos que desabrocharam a sua genialidade, por meio do terror e do suspense.
Há quem diga que o auge de Fulci como diretor foi no início dos anos 70, e há, outrossim, defensores de que o italiano alcança o pináculo da sua filmografia entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Não importa. Desde o primeiro momento em que Fulci começa a trabalhar com o suspense e o terror, os gêneros em questão passam a ser modificados para sempre. Como a temática dessa edição é referente aos filmes que antecederam Halloween (1978), esse texto focará sua análise na primeira era dourada do fulcismo.
O que diferencia Fulci dos outros mestres da tríade mencionada no início do texto é o seu total desmame de um cinema de terror convencional, em uma eterna, bagunçada procura pelo transcendental. Enquanto Dario Argento era um meticuloso formalista e Mario Bava um maestro da ecleticidade, Fulci desbrava o terror pelas suas entranhas, na depravação, no impossível, na construção de um terror fundado na eternidade, numa admiração pelo terror baseada numa fusão de corpo e tempo.
Mas toda essa teoria fulciana do terror não nasce de uma só obra, é uma construção que, de certa forma, se inicia com Uma Sobre a Outra (1969). Em seu primeiro giallo, Fulci constrói uma narrativa que homenageia Vertigo (1958), mas sustentada em decadência e tesão no estilo eurosleaze. Não é um filme de terror, mas sim de suspense, e um dos filmes paradigmáticos da era inicial dos gialli (anos 60). O gênero, que basicamente teve Mario Bava como pioneiro ainda na mesma década, deixa de ser tratado como exuberante, mas de uma forma crua – uma tendência que se repetirá em trabalhos futuros – e, embora não deixe de operar com sensualidade, isso é feito com uma lente da depravação e com um certo olhar mais naturalista. É uma prévia do que virá no futuro: Fulci como um pai do terror italiano na rota do exploitation.
Os dois gialli que seguiram são considerados como dois dos mais importantes do cinema italiano: Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher (1971) e O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos (1972). O primeiro filme, estrelado pela brasileira Florinda Bolkan, intensifica o olhar indecente já iniciado em obras anteriores tais quais o Unna sull’atra. É um filme no qual Lucio parece brincar com as possibilidades de perspectivas e da psicossexualidade, através de escolhas hipnóticas, oníricas, trêmulas, distorcidas e até mesmo lobotomizadas. É um filme que dialoga muito com a obra do seu contemporâneo Sergio Martino – que, na verdade, trabalha um pouco melhor com esse método específico. Dentre os gialli de Fulci trazidos aqui no texto, é possivelmente o menos bem sucedido, mas um que representa bem a abordagem fulciana para com o cinema: pé no acelerador, sem se contentar com miséria de ideias.
Se o Uma Lagartixa… não é desprovido de defeitos, o Segredo do Bosque…, lançado um ano depois, já está bem mais próximo de uma concepção imaculada. É um filme seminal no âmbito dos gialli e, também, do cinema de terror italiano num geral. Nessa obra, Fulci traz um dos gialli mais perversos de todos os tempos. E perversidade é, na verdade, uma característica comum do gênero, mas o diretor não traz a característica de forma gratuita, mas sim construída em pilares essenciais ao terror. O filme se sustenta no oculto, no medo do desconhecido e no preconceito, para defender sua tese da exist}encia um mal que é fruto do determinismo. É um filme essencialíssimo não só porque é um dos gialli mais complexo a serem concebidos, ou porque Bolkan e Bouchet realizam duas das mais memoráveis performances do gênero, mas também porque abre – ou escancara – as portas de uma temática que será fortemente abordada na filmografia do diretor: a busca pela definição da maldade.
Em seu último filme de suspense – com elementos de terror – pré-1978, e antes de dar início à sua ótima fase de cinema de terror “clássico” (incluindo a trilogia Gates of Hell), Fulci lança Premonição (1977). É um filme no qual ele abre mão das suas sensibilidades depravadas e se dedica totalmente à complexidade da procura e da descoberta do mal. Trabalha com as percepções da existência do mal, tanto de uma maneira psíquica – ou mental –, quanto física. Trata-se de uma obra que ainda tem os “pés no chão” quanto à temática, pois ainda é, acima de tudo, um giallo, então apenas flerta com o transcendental, esse que será abordado de forma mais aprofundada posteriormente, a partir do irretocável Zombi 2 (1979), filme a ser discutido em outra data.
O que há de se concluir é que Fulci sempre foi incansável com suas obras. Sua influência existe porque o diretor nunca deixou de ousar entender o que realmente permeava os gêneros com que trabalhou. E isso fica explícito na progressão da profundidade dos temas que ele aborda nesses filmes de gênero. Hoje em dia, a maioria dos filmes de terror “do mês” se preocupam com um “conceito” ou com “dar medo”, sendo que, no cinema italiano, muito bem representado por Fulci – e outras lendas –, a preocupação sempre foi em entender o terror, cria-lo, moldá-lo, destruí-lo e reconstruí-lo. E o fulcismo é justamente sobre compreender a essência do terror, o mal.
Barão Sanguinário | Horror em Construção
Como um filme esnobado de Mario Bava nos ajuda a traçar a rota de um gênero revolucionário
O terror é provavelmente o gênero mais famoso da sétima arte e sempre foi marcado, desde os primórdios do cinema, por suas inovadoras experimentações visuais, narrativas e tecnológicas. E mais especificamente a partir do final da década de 60, essas experimentações começaram a se desenhar em um verdadeiro ápice de nomes icônicos: é inevitável não ir de encontro uma vez na vida a John Carpenter, George A. Romero ou Roger Corman, além de marcos históricos como O Exorcista (1973) e, óbvio, Halloween (1978).
O giallo, gênero-movimento-gênese italiano, representa dentro da evolução do terror no cinema não somente um prelúdio a estes anos áureos do Slasher quanto sucesso comercial, mas também um marco de consolidação das extensões plásticas do gênero e de uma total proliferação estética desses maneirismos. No giallo, a (des)construção da imagem é representação absoluta da experiência fílmica, e esses mecanismos formais não apontam um interesse em se aprofundar numa lógica argumentativa da estética, e sim se aproveitar de uma superfície plana como uma tela em branco, usada para criar e cativar o espectador.
Assim, ainda que redigimos importantes comentários políticos e sociais sobre o filme, analisemos metáforas freudianas e tecemos grandes estudos filosóficos entre a relação dos personagens, o sentido do giallo nos filmes de Lucio Fulci, Dario Argento e Mario Bava, alguns dos nomes mais famosos do ramo, é encontrado não no texto, mas sim na hipérbole visual de uma imagem literal - uma literalidade bárbara, sensual e fantasista - que não se esquiva de sua origem espalhafatosa e ordinária vinda das revistas pulp, romances policiais de capa amarela responsáveis por inspirar o movimento.
Dentre suas principais características gerais, podemos identificar duas marcas de herança indissociáveis no terror: a primeira marca, inspirada na estrutura televisiva, consiste no clássico “whodunnit” onde o suspense motriz da história centra-se em revelar quem é o assassino. A segunda é uma forte presença simbólica no visual do assassino e na cena de assassinato, contendo nuances tão fotogênicos e imaginativos como a de um artista e sua arte: assim, tal qual uma em uma instalação, visionamos uma manifestação artística em um jogo efêmero de vida e morte, onde o corpo e o espaço são destrinchados e unificados pelo instrumento do crime, tudo performado no cenário pela vítima e pelo autor.
Mas essas heranças, de tanto serem reproduzidas, homenageadas e copiadas ao longo das décadas, foram se tornando progressivamente mais banais ao espectador, passando a ser reduzidas a um mero pastiche de cores que apenas espetaculariza acriticamente a forma do giallo. Há um certo desconforto de um olhar viciado para com estes filmes do passado que poder ser explicado por esse falso déjà vu nas referências modernas, mas também pelo impacto da transformação do gênero dos anos 2000 para cá, que passou a responder em sua maioria a uma lógica de obsessão pela matéria filmada, onde uma tácita forma tem sua função limitada a construir o universo narrativo na frente da câmera da forma mais credível possível - Sob certa ótica, o que é o found footage, se não o uso da captação mais próxima do amador possível para encontrar a expressão total deste mundo real? O que ele é, se não a expressão ao extremo do subjetivo e do assunto olhado?
“Entre o moderno e o arcaico, a ambiguidade do espaço hierarquizado no cinema de Bava dita a forma e a estrutura do terror numa lógica de surrealidade”
E mais: apesar de toda essa insistência em prover verdade, fugimos do mundo sensível para nos escondermos no falso plano do mundo inteligível, imutável e etéreo, que pule os signos e convenções do gênero com o cristalino digital, que fortalecido pela sua narrativa, se refugia para longe da imagem em sentidos extra-diegéticos, falsas metáforas e comentários metalinguísticos. Ainda claro, como todo bom pecador, recorre aos bárbaros recursos gráficos e explícitos, mas tenta educá-los ao reproduzi-los da maneira mais verossímil possível, ao invés de, por exemplo, tentar conectar o espaço e o corpo de forma expressiva.
Tudo isso nos conduziu à supressão dos maneirismos típicos e autorais do passado, ainda que felizmente tenha ressurgido por meio de casos como Pulse (2001) de Kiyoshi Kurosawa ou A Visita (2015) de M. Night Shyamalan, no geral nos levou a uma solenidade reprodutora das convenções de gênero: os infinitos remakes e sequências absurdas, dramas psicológicos que ficam totalmente presos as imagens "metafóricas" desinteressantes, ou pífias tentativas de construir a fisicalidade da ação no terror, e até a oposição em compreender - não sei se por má vontade ou falta de capacidade - o lado caricato e erótico do terror em suas “homenagens”.
Em razão disto, retorno a este pretérito como um romântico e abro meu coração ao Giallo, que mesmo em seus filmes menos famosos e complexos, como esse que falarei a seguir, Baron Blood (1972), de Mario Bava, demonstra ser capaz de conceber realidade através do poder da imagem sem se acovardar de suas escolhas estéticas por mais absurdas que estas possam aparecer, se tornando verdadeiras marcas de um estilo passado que jamais poderá ser replicado. Um molde de manufatura que abraça artesanalmente sua artificialidade, seu lado defeituoso, artístico e humano, unindo o mistério curto e imediato da literatura policial a um visual arrebatador que, em cada detalhe cenográfico, cada cena de morte e cada trucagem realizada, revela um sadismo do autor de mostrar o grotesco como belo sem mudar sua natureza. No Giallo, não há fetiche pela imagem, mas pelo próprio assassinato. E a imagem só é como é por materializar este prazer de matar.
O Tempo e o Espaço Social como Mística do Terror
Na história, acompanhamos o jovem Peter Kleist (Antonio Cantafora), que após terminar seus estudos, quer se reconectar com o passado ancestral de sua família viajando para Áustria em busca de seu tio Dr. Karl Hummel (Massimo Girotti). Lá, ele vai ao encontro ao mito do perverso Barão Otto Von Kleist, um nobre do século XVI conhecido por métodos sádicos de tortura e empalar seus opositores nas torres de seu castelo, que agora decadente, está sendo reformado para se tornar um hotel. Fascinado pelo ocultismo, Peter juntamente com a estudante de arquitetura responsável pela preservação do castelo, Eva Arnold (Eike Sommer), entram em um ritual de bruxaria através de um antigo pergaminho de seu avô que trará novamente o Barão à vida.
Esse cenário de masmorras arcaicas e amaldiçoadas, herdadas a outros personagens é bastante familiar àqueles mais conhecedores da filmografia do diretor. A abastada família isolada de O Chicote e o Corpo (1963), o luxuoso ambiente da moda em Seis Mulheres Para o Assassino (1964) e a mansão quase abandonada em Lisa e o Diabo (1973) revelam uma constante espacial nos filmes de Mario Bava, que cerca estes espaços aristocráticos para torná-los parte de seu espetáculo de morte e decadência. Existem muitas camadas que podem explicar a razão desta escolha recorrente, a mais evidente é, claro, a riqueza visual das estruturas góticas com seus adornos pontiagudos, imponentes linhas oblíquas e a solidez de sombras pedregosas.
Mas além dessa abundância cenográfica, o que torna os cenários do filme de Bava especialmente únicos é a maneira como exercem uma função de estilo partindo de uma estrutura social. Estes cenários da alta classe, muitas vezes relacionados há tempos remotos, se afastam da realidade cotidiana, numa espécie de idealização mística da riqueza, e passam a estar em um mundo particular distorcido, um espaço de surrealidade na fronteira entre o mágico e o racional. E com este anacrônico ressurgimento, os seguintes dogmas relacionados reaparecem: não somente a recorrente presença de personagens submetidos a escalas hierárquicas dentro da narrativa, como criados, mordomos, pessoas designadas com títulos de nobreza ou mesmo aqueles com posses milionárias, mas também de uma estrutura serviçal que, a todo custo, deve saciar as vontades, desejos e ambições dos poderosos soberanos - que no caso, é o Barão Sangrento. Assim, Bava não só evoca o cenário quando esteta, mas também suas relações de poder internas.
Um detalhe que particularmente acho extremamente interessante, é como somos introduzidos a essa nova realidade de forma quase onírica, o plano ou a sequência de abertura sempre tem uma noção de deslocamento, seduzindo nossa curiosidade progressivamente até entramos de fato nesse novo mundo, tal como Alice entrou no País das Maravilhas caindo na toca do coelho. Na outra vida em Lisa e o Diabo, a narrativa inicia verdadeiramente apenas quando a personagem principal se perde durante uma visita a uma antiga cidade. E em Barão Sanguinário, acompanhamos a entrada decrescente de Peter do aeroporto até o passado medieval através da sua carruagem automobilizada.
O exótico visual gótico é visionado com sadismo pelo espectador e pelo autor
Contudo, mesmo nos transpondo a este novo mundo passado, permanecem na história resquícios anacrônicos que não compactuam com essa nova realidade estabelecida, quase um lembrete que, com uma certa ironia sádica, faz com que essa falta de sincronia desafie nossa percepção. Há uma evocação do visual e do cenário do ocultismo medieval assim como há em Black Sunday (1960), mas aqui é chocado com elementos da modernidade, como por exemplo o vistoso guarda-roupa setentista italiano que veste nossos personagens: as padronagens combinadas, coloridas texturas aveludadas, golas altas de lã, vestidos decotados estampados e saias curtas no meio desse mundo feudal de um déspota sanguinário.
Uma curta cena do filme ilustra perfeitamente esse diálogo divertido de dissonâncias temporais. Enquanto acompanhamos o prefeito da cidade se deslocar no cavernoso castelo, essa aura antiga é interrompida pela invasão do chamativo vermelho da logo da Coca-Cola em uma máquina de refrigerantes. O prefeito para exatamente no meio do enquadramento para colocar as moedas na entrada, habitando um hiato entre mundos, onde à esquerda há a máquina e à direita há as paredes adornadas do castelo, justamente o lado do qual o Barão surge para o estrangular. Ele agarra o homem e o puxa para si com violência, obrigando a câmera a acompanhar a cena, jogando a máquina para fora de campo bruscamente.
O prefeito termina tendo seu pescoço quebrado e seu corpo enforcado exibido na escadaria, e todo esse conjunto de acontecimentos nos transmite não só o nível de crueldade do Barão para concretizar seus interesses para obter o domínio da moradia, mas também uma certa tentativa de obter vingança ao presente, a morte como punição para aquele que trouxe a presença do oposto moderno ao seu santuário.
Encantados pelo Mórbido sob a ótica do Voyeur
“A sedutora encenação de Bava e seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico, voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a mórbida obsessão do público com a violência.”
A presença deste encantamento, desse fascínio pelo exótico mórbido, pode ser explicada através da anatomia dos filmes de Bava. Dentre muitas escolhas de estilo magnéticas, a não tão comentada composição iguala objetos de diferentes escalas em um mesmo nível de profundidade: adornos, estátuas, móveis e pequenos objetos se aproximam dos rostos, bustos e corpos filmados, criando esse quebra-cabeça perfeitamente encaixado da simbologia gótica.
Esse jogo de texturas e elementos na tela são visionados também como forma de salientar essa hiperocupação, com grandes angulares que dobram a imagem ou planos mais alongados com uma alta profundidade de campo. E com toda essa presença elementar excessiva do cenário, seria um desperdício vê-lo sendo engolido por sombras em prol de impacto alusivo, mas, ao usar do efeito contrário, privilegiando a própria luz através de feixes coloridos e diretos, cria uma atmosfera tão equivalente quanto. Sua luz dura não só esculpe os corpos, pinta os tons e traz vida - ou, como de costume, morte - ao movimento, mas também estabelece zonas de contraste bem definidas da quais as áreas mais sombrias jamais desaparecem totalmente na penumbra, permanecendo sorrateiras na fotografia da qual, em uma visão quase infantil, notamos a presença da indefinição.
Em um memorável momento da história, temos um quadro belíssimo de Eva tentando escapar das garras do Barão, em uma imagem acentuada pelo contraluz e pelas silhuetas na neblina da noite. E, ao longo da sequência, ele cria toda uma sensação de desorientação psicológica e física, como se estivéssemos em um labirinto e percorrêssemos a mesma rua esfumaçada de paredes oblíquas e claustrofóbicas repetidas vezes.
Esse instrumento da repetição, tal como na comédia por exemplo, é necessária uma estruturação de previsibilidade antes da punchline, o prelúdio ao terror também é uma constituinte fulcral dessa construção. O roteiro sempre encontra uma forma de retornar narrativamente a ações ou espaços, como o castelo ou as cenas de assassinato consecutivas, mas maior do que uma mera lógica textual, Bava desenvolveu uma linguagem de repetição particular para ilustrar medo e desespero em seus filmes. Em uma mesma imagem, comunica o terror através do zoom e do duplo zoom, muitas vezes seguidos e em diferentes velocidades, abrindo e fechando as escalas.
Num jumpscare de aparição do Barão, um mesmo crash zoom vertiginoso em sua face é repetido 4 vezes na montagem. E afinal, por qual motivo não deveríamos mostrá-lo novamente? Por que não deixar o público enojado, mais uma vez, virar o rosto na direção contrária do mutilado Barão? Por que não repetir aquilo que nos dá prazer? Uma, duas, três, até quatro vezes, a quantidade que acharmos que for necessário. O voyeurismo intrínseco em sua filmografia é expresso também por essa estranha sensação de que Bava está nos espiando escondido enquanto aguarda nossa reação, rindo enquanto nos provoca com sua arte.
E assim como ensina Hitchcock, o mestre do suspense, onde aquele que tem prazer em olhar passa a ser o objeto olhado, Mario Bava é tarado o suficiente para revelar sua presença, saindo de seu esconderijo do espaço criador e se exibindo para nós, espectadores. São essas as marcas de autoria que a todo momento nos relembram da presença da câmera e da ação conflitante que exerce quando visiona o mundo criado.
Uma das características estéticas mais abordadas não somente no cinema do Bava, mas no Giallo, em geral, é como o assassino carrega um valor estilístico particular no seu visual e na forma como executa as cenas de assassinato, criando assim uma personalidade que guia o filme sob seu olhar. Assim, a decupagem desassocia a visão do espectador com a experiência do protagonista, nos aproximando mais do olhar do assassino do que do medo da morte das vítimas. Em vários momentos do filme, o monstro é filmado seguido de algum ângulo, preservando a posição relativa do outro personagem em cena, enquanto o contra-plano assume a perspectiva do olhar do Barão, criando um filme mais de reações horrorizadas em direção a câmera que a mera demonstração de eventos sob ótica dos personagens inseridos ali.
A cena de morte da primeira vítima do Barão, um doutor que inocentemente tenta o socorrer, é construída de uma forma que comprova essa escolha estilística dos olhares. A cena inicia com o Barão recém-invocado observando o homem pela janela, da qual assumimos o seu ponto de vista de fora da casa. E quando entra em seu consultório, todo o desenrolar da cena é constituído ou com a perspectiva assumida de sua visão, ou com ele de costas para câmera onde vemos a reação do médico, que será degolado com um Over the Shoulder pouco funcional que apenas realça a proximidade de cúmplice da câmera ao monstro. Em Bava não trememos de medo encarando o mal, e sim personificamos o seu olhar, observando escondidos junto às intenções secretas e mortíferas.
As vísceras expostas de Bava
Barão Sanguinário nos permite conhecer o diretor em suas múltiplas facetas: seu lado gráfico, psicológico, exagerado e apaixonado pela arte. E ainda que, a partir da metade do filme, desacelere e não seja capaz de ter o mesmo charme do início, finaliza tudo com uma irônica maestria. Anterior à resolução, nos é exibido na câmara de tortura a presença de um sistema de som que projeta gritos destinados a criar um ambiente de imaginação para os turistas, e depois que as vítimas do Barão ressurgem por feitiçaria para se vingar, os gritos de tortura se tornam reais. Mas ainda assim a cena não interrompe o fluxo de imaginação do espectador, pelo contrário, o instiga ao não expor imagens diretas, trabalhando com planos exteriores e interiores da construção nos quais os gritos ecoam, assim como os dizeres macabros do vilão que assinalou seu destino. “Na época do Barão, esses gritos eram autênticos. Os nossos, quem sabe… divertido não?
Para finalizar, nós, espectadores, muitas vezes acreditamos, pela forma com que entramos em um estado de submersão e envolvimento com a história, que o terror é sublime e que ele só funciona quando estamos totalmente ausentes e inconscientes de sua realização. Mas, eu também acredito que um filme de terror que assuma essa ação criadora pode ser tão envolvente quanto, afinal, o terror consiste justamente em assumir perspectivas subjetivas e individuais frente a um fato maior. Logo, quer seja a visão limitada de seus personagens ou de valores que transcendam o corpo e o espaço, todos no fim são pontos de vista incapazes de revelar e alcançar tudo. São imparciais, errantes e viciados, mas funcionam por estar em um constante movimento - de fuga, de perseguição e de deslocamento para saciar seus desejos e objetivos -, em constante construção.
E é justamente essas vísceras abertas e expostas que vemos no cinema de Mario Bava: Cada recorte da montagem não segue só uma linearidade lógica, mas sim de cortes que interrompem e pontuam a cena de acordo com ritmo e intenção, como vírgulas em uma prosa sombria que intercede essas imagens extremamente pictóricas. Em sua gramática, os velocíssimos zooms são os dois-pontos que anunciam a chegada do macabro, e as panorâmicas e travellings são como os olhares agitados percorrendo as estrofes. Os efeitos práticos que soam datados aos inspetores de plantão, as atuações fragilizadas na dublagem e o roteiro que facilmente cai para o caricato, todas são características que soam como defeitos de uma obra inacabada - mas aqui são sinônimos de uma obra em constante movimento, como uma antiga maldição que se renova, afinal jamais será perdoada.
Véspera de Halloween | O Pré Horror
Um velho tipo de medo
Como os filmes do pós horror nada mais são que parte do ciclo do gênero
É curioso imaginar que, em um mundo que cada vez menos a leitura e o estudo são encorajados, um artigo publicado em um jornal digital possa ser tão influente como o de Steve Rose.
Intitulado como os filmes de pós-horror estão tomando conta do cinema (e traduzido nesta edição da revista Outra Hora) o texto de 2017 tinha o intuito de propor uma nova categorização para uma série de filmes lançados no grande circuito na década de 2010: Babadook (2014), Corrente do Mal (2014), A Bruxa (2015), Ao Cair da Noite (2017), Corra! (2017), entre outros. Em comum entre todos estes filmes há uma rejeição pelo jumpscare, uma aproximação do drama, e a associação dos aspectos sobrenaturais com questões psicológicas e sociais.
Na maior parte do tempo, discordo do que diz o crítico brasileiro Philippe Leão, de que na pós-modernidade é impossível movimentos cinematográficos se formarem. Ao menos no que tange o agrupamento dos filmes, pois podem não ser movimentos com ementas e manifestos, mas é sempre possível reconhecer características que, em determinado recorte, parecem seguir uma busca coletiva. Goste ou não do termo, há algo assim com o pós-horror, tanto na questão estética como na aparente pose que surge de diretores que sugerem estar fazendo algo além do horror em entrevistas esnobes e auto-indulgentes.
O que acarreta nas maiores críticas feitas ao texto de Steve Rose, de que essa pose seria - e é - desrespeitosa com a própria história do gênero, um dos mais antigos, ricos e essenciais na história do cinema. Sempre fico atônito quando entra em pauta o fato de o horror (e, curiosamente, acho que só no Brasil que falamos mais "terror” que “horror”), e o gênero como um todo, não ser reconhecido na temporada de premiações norte-americana, justo um dos países que mais depende do gênero na concepção de sua identidade cinematográfica. Mais ainda quando sugerem que essa ignorância é relacionada com a idade dos votantes, sendo que Hitchcock já "sofria" com essa relutância muito antes do mais velho membro da academia ainda vivo, estar vivo.
Mas evitando divagações, pois o escopo da conversa é grande, este texto mira em dois filmes que exemplificam como, mesmo existindo (e acredito que, de fato, exista), o pós-horror nada mais é que uma tendência cíclica, na mais jovem e circular das artes.
O ACADEMICISMO DA A24
Antes disso, uma pequena parada, pois a verdade é que o termo pegou, e parece que a maior beneficiada foi a A24, produtora que se tornou análoga a esta nova tendência e que parece ter acoplado outras características que vinham se formando em anos anteriores.
Em 2007 o professor Luiz Carlos de Oliveira Jr. publicou um artigo na revista Contracampo onde comenta sobre, entre outras coisas, o academicismo da época, onde diretores estariam "imitando" os modos de cineastas como Apichatpong Weerasethakul e Hou Hsiao-hsien, mas que falta a estes diretores uma maior compreensão "filosófica" dos cineastas. O que sobra da estética deles, diz Oliveira Jr., é uma linguagem domesticada, inofensiva e acadêmica.
E é possível perceber parte deste legado estético, se é que é possível chamar de legado, em diversos filmes da A24, com alguns dos comentários feitos naquele artigo ainda ressoando no cinema de hoje.
“Mas se é verdade que toda época tem seu academicismo, o de hoje seria este que recusa as técnicas clássicas de dramaturgia e encenação (não raro tidas como caricatas e anacrônicas pela platéia típica dos festivais) e segue narrativas elípticas/flutuantes, dramas mudos do cotidiano, relação afetiva entre câmera e atores, não-julgamento das situações e dos personagens, mais atenção ao corpo do que à psicologia.”
À primeira vista, o último comentário, de que se dá mais atenção ao corpo que à psicologia, não seria condizente com os horrores de teor psicológicos associados ao termo, mas Oliveira Jr. aqui fala menos sobre os temas e mais sobre a forma, algo que pode ser melhor elucidado no comentário seguinte:
“Apesar da estrutura em filme-painel, Shanghai Trance tenta se filiar a um modelo de narrativa minimalista com diálogos esparsos. Quando um diálogo acontece, entretanto, percebemos que no fundo o diretor gostaria de contar uma história bem clichê e convencional. Mas optou pelo plano-seqüência que aguarda pacientemente, sem se antecipar aos acontecimentos, supostamente respeitando a ambigüidade do real, à espera do êxtase que vem da falsa sensação de que nada acontece (quase uma contradição de princípios, essa idéia de um êxtase destinado a reencontrar a banalidade do cotidiano)”
O pós-horror surge, portanto, como uma evolução natural do horror caso este entrasse em contato com o academicismo descrito neste texto, e observado ao longo do século 21. O que separa, formalmente, um drama social como Moonlight (2016) de um horror como A Bruxa? A fotografia digital, límpida e de cores lavadas, os olhares e diálogos fugidios, a relutância em verbalizar ações e pensamentos, uma suposta dramatização do cotidiano, que procura encontrar o que de mais doloroso e velado existe no tecido que rege a vida, e não necessariamente em seus acontecimentos.
O mesmo pode ser observado em Ao Cair da Noite, filme que nunca deixa claro ou encara de maneira frontal o seu aspecto sobrenatural, apostando na ambientação e tensão atmosférica criada por esse desconhecido. Mas é uma tensão ao contrário da vista em, por exemplo, O Enigma de Outro Mundo (1982), pois ela reside na internalização dos personagens e em uma suposta animosidade que cresce entre eles, mas que nunca aflora.
De certo modo, é como se os diretores se recusassem a abraçar a iconografia do gênero de frente, deixando seus conflitos e confrontos ou velados ou mesmo de fora do que assistimos em tela. Uma atmosfera que se vende por si própria, e não como parte integral dos acontecimentos do filme.
VÉSPERA DE HALLOWEEN
A partir disso, e antes do que vem depois, é importante contextualizar o próprio título desta edição.
Halloween (1978) foi um divisor de águas no cinema de horror norte-americano, e não apenas por sua influência nos filmes feitos a partir de então. A popularização do slasher viu títulos e mais títulos se somarem, e uma pletora de personagens (Freddy Krueger, Jason, O Grito) entrarem para o imaginário popular, mas foi mesmo o impacto que causou na espectatorialidade do cinema de horror que promoveu uma reconfiguração deste imaginário.
Nestes últimos 40 anos, os clichês mais repetidos são relacionáveis às principais características não do horror em si, mas dos slasher: as situações absurdas, as ligações noturnas, os vilões imortais, a matança, as final girls.
E logo esse aspecto histórico se torna também um aspecto cultural, essencial na assimilação e aceitação do pós-horror como gênero comercial e artístico. Acostumados com um suposto cinema, assim que um grupo de filmes vem quebrar suas supostas convenções, a história nos ensina que a tendência é de fascínio por parte das audiências. Unimos isso à necessidade da era da democracia digital de expressar opiniões marcantes, e os filmes da A24 se tornam os melhores filmes de horror da história porque - VOLTEMOS AO INÍCIO DO TEXTO.
Mas o que reside para trás (e, se olhar bem, durante) deste quase meio século, desde o lançamento do monumental filme de John Carpenter, são filmes que se adequariam à nova categorização, ao menos quando falamos nos temas que abordam. Existiria, então, um pré-horror?
Meu palpite é que, do ponto de vista de aproximar estes filmes a fim de categorizá-los em um grupo, não, não existe. Mas, de volta ao assunto da espectatorialidade, da percepção pública e crítica, e dos filmes que quebram a bolha do gênero e da cinefilia, é possível dizer que sim. O horror sempre foi e seguirá sendo um dos gêneros mais criativos do cinema mas talvez, antes de Halloween se tornar a norma, a norma era mais variada e eclética. Hollywood tinha menos controle da popularidade mundial do gênero - controle esse que só foi desafiado pelo Japão nos anos 90, desde então.
Agora, para desbancar os conceitos desenvolvidos na caverna de Platão, falemos do que está nas telas, pois uma das bases do pós-horror reside na suposta elevação, da maior importância que se dá para filmes que usam o gênero para comentar aspectos sociais e psicológicos. E aqui poderíamos voltar ao Expressionismo Alemão, e seus Estudantes de Praga (1913) e Doutor Caligari (1920), ou a Victor Sjostrom e sua Carruagem Fantasma (1921) ou a Carl T. Dreyer e seu Vampyr (1932). Mas estamos falando da véspera, do horror como era antes deste se tornar o que se tornou para que o pós-horror pudesse ser batizado.
O MITO DA ORIGINALIDADE
Comecemos com Ari Aster, talvez o nome mais atrelado ao termo cunhado por Steve Rose e seus filmes Hereditário (2018) e Midsommar (2019). Uma rápida, rápida pesquisa é o suficiente para encontrar as teorias de porque um é o filme de terror perfeito, e outro é um dos filmes mais em contato com uma suposta nova onda hippie (ou, atualizando, indie).
Em artigo nesta edição, falo sobre Midsommar contraposto a O Homem de Palha (1973), do britânico Robin Hardy, então neste vamos ficar com Hereditário que, de acordo com o próprio Ari Aster, tenta se alocar para o “sub-gênero”, e foi pensado como um drama familiar.
No longa, após a morte da mãe, Annie descobre o envolvimento da matriarca da família com cultos satanistas e como ela e os filhos estariam ligados a uma corrente de eventos inevitáveis. O assunto não é novidade, por óbvio, e o que torna o filme membro da nova leva (não chamemos de onda) é como a deterioração psicológica da personagem vivida por Toni Collette é relacionada com a tragédia familiar. Ao invés de sustos e suspense, o que Aster cria é um tom lúgubre, que recai em ações cotidianas da família (tema representado na profissão da protagonista, uma artista de miniaturas) e que engole até mesmo o aspecto gráfico e corporal do filme.
Voltemos então para Inverno de Sangue em Veneza (1973), de Nicolas Roeg (e pulemos o mais óbvio O Exorcista, do mesmo ano), filme de drama matrimonial disfarçado de horror, e que coloca as instabilidades psicológicas do casal ante um suposto legado sobrenatural velado na cidade imersa em águas. Em como a morte de sua filha influencia na maneira que estes vem o mundo - ou seja, na maneira que o filme é apresentado. Roeg utiliza a geografia e arquitetura de Veneza, uma cidade histórica e culturalmente rica mas degradada e com um tom natural de umidade e putrefação, como modo de integrar os aspectos góticos que compõem o tom do filme. Por mais que o horror seja abordado de maneira ilusória e experimental, há uma dialogação intrínseca com o gênero.
Já Ari Aster nunca pratica essa conversa. Por mais que tenham, ambos os filmes mencionados, esse apelo gráfico (a cena do poste e a do suicídio, por exemplo), o diretor parece filmar no limiar para que seus filmes nunca sejam "só" exemplares do gênero. Como se, antes de chegar no horror, houvesse uma camada de “drama psicológico”, ou “colisão cultural”, no caso de Midsommar. Diferentemente de O Homem de Palha, que na sua forma, na maneira como apresenta seu mundo, se aproxima da comédia, e do filme de Roeg que se aproxima do drama e do romance.
A grande questão é que, sem essa necessidade de se provar um "filme sério", os filmes podiam só ser.
Pensemos então em A Bruxa, de Robert Eggers, e mesmo em seu O Farol (2019). Filmes onde o cineasta trabalha com a ideia da ambientação, em ambientar tanto os seus filmes que estes se tornam abstratos em seus significados mais diretos. E lembremos novamente do filme de Dreyer, sobre um estudante de ocultismo que encontra traços de vampirismo em uma vila isolada. Longa que, feito com som mas tratado como um filme mudo, é também construído em torno de sua atmosfera, e atinge níveis de abstração até incomuns para a filmografia do dinamarquês (ao menos em relação à narrativa, pois pode ser discutido que todos os filmes de Dreyer trabalham com a ideia de abstração)
Mas, para ficar no nosso recorte, vamos parar em Todas as Cores do Medo (1972), do Italiano Sergio Martino. No filme, após sofrer um acidente de carro que resulta em um aborto, Jane encontra alento em sua nova vizinha, Mary, que a leva para um evento de seu culto. Martino também circula em torno da figura do sobrenatural, também ambienta seu filme em uma atmosfera carregada nas cores rebuscadas e granuladas do celuloide, mas também não se impede de apelar para resoluções mais gráficas e diretas, iniciando o filme com nudez (o que, hoje, seria considerado apelação) e mostrando a ação prática do culto.
Outra incidência do pós-horror é como este usa o gênero para comentar aspectos sociais. Um filme como Corra! só poderia ser feito em 2017, mas não se pode esquecer que Hitchcock já fazia comentários ácidos sobre a configuração demográfica dos Estados Unidos desde Um Barco e Nove Destinos (1939), Jacques Torneur já falava sobre xenofobia e colonização em Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943), e de que George Romero trouxe esta mesma configuração para A Noite Dos Mortos Vivos (1968).
O que não falta ao horror, como gênero, é variedade. É discutível, inclusive, que talvez seja o único grande gênero norte-americano que não se tornou um comentário em si mesmo, graças às constantes transformações pela qual passa. O pós-horror, muito longe de ser uma “elevação”, é mais uma delas.
O Horror Contemporâneo e Contracultural de Tobe Hooper
Com O Massacre da Serra Elétrica, Hooper reflete um estado de espírito e visualiza novas possibilidades para um gênero em constante reinvenção
Lembro da primeira vez que vi O Massacre da Serra Elétrica (1974). Tinha 15 anos e adorava filmes de terror, mas na época estava mais acostumada a assistir os blockbusters. Com isso, acabei vendo a linha do tempo do gênero de trás pra frente e minhas únicas experiências com filmes slasher foram Chucky, Sexta-Feira 13 e A Hora do Pesadelo.
Comecei a ver, e de início achei tudo exageradamente tosco (vale destacar que eu era adolescente). Os diálogos sem pé nem cabeça juntamente com a ideia vazia de viajar ao Texas para ver o túmulo do avô com um grupo de amigos era algo que não me desceu durante os primeiros trinta minutos.
E então, se iniciou a carnificina. Fiquei paralisada. E nem sei se é a palavra certa pra isso, mas foi como me senti. Após o filme, sentei e repassei em minha mente como todas as formas da obra se encaixavam com os clássicos dos anos 80 que eu adorava. Foi como estudar história.
É fato que O Massacre da Serra Elétrica marcou época com as inovações surgidas do baixo orçamento. Logo, também é verdade que o longa foi imprescindível para a nova fase do horror no cinema, uma fase mais gráfica e sanguinária que, nas mãos de Tobe Hooper, parecia um projeto de contra cultura.
Há quem veja o vilão e sua família como uma sátira ao governo dos Estados Unidos, o perigo mascarado fazendo coisas inimagináveis tanto abertamente quanto às escondidas. Os anos 70 no país foram marcados por crises políticas, sociais e culturais. A Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate minaram a confiança do público nas instituições, e o cinema não ficou imune a esses eventos. Com o fim dos anos 60 e a crise de otimismo da potência norte-americana, o horror voltou a explorar de maneira mais profunda os medos coletivos. Os filmes passaram a canalizar os receios reais que permeavam a sociedade, trocando os monstros fantasiosos pelos horrores mais próximos da realidade, como a violência e a desordem social.
Portanto, a desconstrução do "sonho americano" fez filmes como A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e O Exorcista (1973) mostrarem um público cada vez mais disposto a encarar narrativas ousadas e perturbadoras, em que o sobrenatural se mesclava com o realismo cru, criando um novo tipo de terror psicológico e visceral que, hoje, chamam de pós-horror.
É nesse contexto que O Massacre da Serra Elétrica emerge como um reflexo da alienação e da desesperança da época. Tobe Hooper utiliza um cenário rural desolado para simbolizar a ruptura entre o mundo urbano moderno e um interior esquecido e brutal. Assim, o filme retrata com clareza as falhas de uma sociedade à beira do colapso. Leatherface é assustador por ser humano — um produto de uma sociedade distorcida e falha.
O experimentalismo de Tobe Hooper em meio às fórmulas da época
Com um orçamento apertado, Hooper evitou muitos artifícios mais tradicionais do gênero. O uso de câmeras tremidas e a escolha de cores opacas e “sujas” intensificam a sensação de desconforto da realidade. Além disso, com a ausência de uma trilha sonora convencional, Tobe Hooper procurou alternar cenas de horror psicológico, gore e semelhantes criando um ambiente visual e sonoro imersivo, com sons do ambiente e a angustiante motosserra (e não serra elétrica).
E essa impressão da falta de sofisticação técnica acabou se tornando uma das grandes forças do filme, aproximando-o de um estilo quase documental, que sugere que os eventos narrados poderiam ser reais - o filme certamente é um dos precursores do found footage.
Essa estética de filme independente da época também refletia um desejo crescente de desafiar as normas da produção cinematográfica já predominantes. O que ajudou a abrir espaço para uma maior liberdade criativa e encorajou outros diretores a explorarem estilos próprios e ousados dentro do gênero.
Enquanto o filme de Hooper explorava o horror físico e brutal, outros filmes da época, como O Exorcista (1973 ) e Carrie (1976), mergulhavam no horror sobrenatural e religioso. Essa pluralidade de abordagens reflete como o cinema de terror dos anos de 1970 era uma verdadeira arena de experimentação. Diretores como Hooper aproveitaram esse momento para quebrar convenções e explorar novas formas de perturbar e envolver a sociedade diante de todo aquele caos. Não havia um único "jeito certo" de contar histórias de horror, e ainda não há.
Entrevista | William Friedkin (Deadline)
O PATRONO DO PRÉ-HORROR
Relembrando os contos de desafiar a morte de William Friedkin nos anos 70
Notas do tradutor (Marco Leal):
Conduzida pelo co-editor chefe do site Deadline, Mike Fleming Jr., e publicada em 6º de agosto de 2015, esta entrevista foi traduzida diretamente do site da Deadline (que pode ser conferida na íntegra aqui). Foram mantidas apenas as perguntas e respostas entre o entrevistador e o entrevistado, com a introdução original sendo excluída desta tradução. Assim como em outras entrevistas, trechos podem ser cortados da tradução a depender do tradutor.
A entrevista foi repostada com uma nota introdutória do autor com a notícia da morte de Friedkin, em 7 de agosto de 2023 (data do meu aniversário de 27 anos).
É a entrevista mais completa e valiosa desta edição, respondida com atenção especial de Friedkin e abordando uma variedade de tópicos envolvendo o cinema de horror em Hollywood nos anos 70.
DEADLINE: Executivos e cineastas de hoje dizem que reverenciam os anos 70, mas estão sob pressão para criar blockbusters globais formulaicos que carecem de ousadia e autoria. O que tornou aquela era possível que não está presente hoje?
FRIEDKIN: Havia uma série de fatores. Os estúdios eram dirigidos por pessoas que realmente amavam filmes, e muitos deles haviam sido produtores. Provavelmente, o maior fator é que não havia fórmulas. Um estúdio não precisava lançar uma série de filmes que tinham que ser formulaicos, como acontece hoje. Um movimento inteiro naquela época foi impulsionado pelo lançamento de Easy Rider. Os estúdios sentiram que, se alguns cineastas descolados podiam sair, sem um roteiro, com uma equipe pequena e fazer um filme assim com muito poucos recursos, então os diretores deviam saber o que estavam fazendo. Isso beneficiou os caras mais jovens da minha geração. Os estúdios apenas sentiam que talvez tivéssemos alguma fórmula.
DEADLINE: Você teve?
FRIEDKIN: Não tivemos. Fomos principalmente influenciados pelos filmes europeus dos anos 60. A Nova Onda Francesa. O neo-realismo italiano. Kurosawa e outros cineastas japoneses. Fomos inspirados por eles e não estávamos presos a nenhuma fórmula. The French Connection, apesar de todo o seu sucesso, foi uma verdadeira ruptura para um filme de polícia, e foi por isso que levamos dois anos para fazê-lo. Cada estúdio recusou. Muitos deles recusaram duas ou três vezes ao longo de dois anos.
DEADLINE: Por quê?
FRIEDKIN: Eles não entenderam. A cena de perseguição nunca esteve no roteiro. Eu criei essa cena de perseguição, com o produtor Philip D’Antoni. Apenas jogamos ideias. Saímos do meu apartamento, seguimos para o sul de Manhattan e continuamos andando até chegarmos àquela cena de perseguição, deixando a atmosfera da cidade nos guiar. O vapor subindo da rua, o som do metrô rugindo sob nossos pés, o trânsito traiçoeiro nas ruas lotadas. Não tínhamos muito tempo, porque Dick Zanuck, que já havia recusado, nos disse que faria o filme por um milhão e meio de dólares se pudéssemos fazê-lo imediatamente, porque ele sabia que seria demitido. E ele estava certo. Por isso escolhemos Gene Hackman, que não era nossa primeira escolha. Andamos 55 quarteirões e criamos uma perseguição. Ninguém nunca pediu para ver um roteiro. Gastamos trezentos mil dólares a mais do que o orçamento de um milhão e meio, e eles queriam me matar todos os dias por causa disso. Ninguém gastava o tipo de dinheiro que se gasta hoje. Havia grupos de caras dirigindo os estúdios que tinham medo de estar desconectados, e cineastas jovens com ideias novas que se pareciam mais com o que é o cinema independente hoje do que com o que se encaixava no clássico filme de Hollywood, que eram os musicais dos anos 40 e 50, como Cantando na Chuva. O que prevalece no cinema americano hoje e que não existia então é que, se um filme faz sucesso e parece representar uma fórmula, ele será repetido várias e várias vezes, com mais e mais imagens geradas por computador. Não consigo pensar em nenhum filme de super-herói que existisse nos anos 70. Nenhum vem à mente. Sem fórmulas e o início foi o medo que aqueles executivos tinham, causado por Easy Rider, no coração dos caras que dirigiam os estúdios naquela época.
DEADLINE: Você estava ciente de que estava trabalhando em um momento especial para o cinema? Qual foi a melhor coisa sobre trabalhar em filmes naquela época, com tanta liberdade?
FRIEDKIN: Não estávamos cientes de que era uma era de ouro. Assim como aqueles executivos, víamos a era de ouro de Hollywood como sendo nos anos 40, mas reconhecíamos que uma era de ouro havia acabado de acontecer no cinema da Nova Onda com os neo-realistas na França e na Itália. A conversa entre nós naquela época era sobre qual trabalho sobreviveria, Godard ou Fellini? Nenhum de nós sabia as bilheteiras dos nossos filmes. Todos nós tínhamos porcentagens de lucro, mas isso não era o que nos motivava. Eu era muito próximo e ainda sou de Francis Coppola e outros. Nossas conversas eram sobre a arte do cinema que nos precedeu; o film noir americano dos anos 40 e 50. Nossas influências eram Os Brutos Também Amam e Fogo da Ambição, filmes que seriam impossíveis de serem feitos hoje. Tanto Coppola quanto eu fomos ameaçados várias vezes de sermos demitidos de nossos filmes porque os estúdios não gostavam ou não entendiam nossos dailies. Eles não gostavam dos dailies de O Poderoso Chefão; os caras que dirigiam a Paramount não gostavam do elenco. Eles não queriam Brando, não queriam Pacino. Eu tive a experiência oposta. Depois que Dick Zanuck aprovou The French Connection com a faca sobre seu pescoço, ele não se importava com quem estava no filme. Ele estava pronto para eu realmente escalar Jimmy Breslin como Jimmy Doyle. Você sabe quem é Jimmy Breslin?
DEADLINE: Eu era um repórter jovem no New York Newsday e Breslin escrevia colunas sobre crime e corrupção política.
FRIEDKIN: Eu testei Jimmy Breslin para o papel principal em The French Connection, com a aprovação total de Zanuck. Eu já tinha escalado Roy Scheider e Alan Weeks, o jovem que é perseguido na primeira cena. Jimmy simplesmente não conseguiu, mas ele era o protótipo do cara que eu queria. Primeiro ofereci esse papel a Jackie Gleason, e essa foi a única vez que Zanuck me vetou. Gleason estava disposto a fazer o filme e era a minha ideia para o personagem. Mas Zanuck disse não.
DEADLINE: Por quê?
FRIEDKIN: Gleason tinha feito a maior bomba da história da Fox, um filme mudo sobre um palhaço, chamado Gigot. Eu queria Gleason porque o verdadeiro policial era um cara irlandês robusto que você chamaria de Black Irish, escuro e de mau humor. Esse era o verdadeiro cara, Eddie Egan. Gleason era o mais próximo disso, mas o estúdio não aceitou. Passamos por muitas outras estrelas até que finalmente concordamos relutantemente em escalar Gene Hackman, quando já estávamos sem tempo, e Zanuck continuava ligando para o produtor e para mim dizendo que era melhor definirmos esse filme agora, porque eu serei demitido antes de vocês começarem a filmar. Então, relutantemente, fomos com Gene. Um dos grandes atores da história do cinema americano, que não era minha primeira, segunda ou décima escolha para esse papel. Então, acho que a outra coisa sobre os anos 70 foi que houve uma enorme dose de pura sorte.
DEADLINE: Não é assim que as coisas costumam ser, na maioria das vezes, no mundo do cinema?
FRIEDKIN: Às vezes. Você sabia que recusamos Star Wars naquela época? Eu tinha uma empresa na Paramount, com Coppola e Peter Bogdanovich, chamada The Directors Company. Por causa da relação de Francis com George Lucas, nos ofereceram Star Wars. Era mais do que tínhamos direito de gastar na nossa empresa, mas tanto Peter quanto eu odiamos o roteiro. Nós não víamos isso. Francis viu. Mas nós passamos em Star Wars!
DEADLINE: O revival deve dominar as bilheteiras em dezembro, alimentando o ano de maior arrecadação da história do cinema…
FRIEDKIN: Sim, nós deixamos passar Star Wars. Lucas deu para Francis porque todo mundo tinha recusado. O agente de Lucas, Jeff Berg, finalmente fez a Fox dizer sim. Então, ele pediu um pouco mais de dinheiro para George porque o filme estava demorando e George não tinha recebido uma grande quantia. Em vez de a Fox dar a ele alguns dólares a mais, Berg conseguiu para ele os direitos de remake, os direitos da sequência e todo o merchandise. É assim que o estúdio acreditava em Star Wars. Para deixar claro, nós, cineastas, só nos importávamos com a estética dos filmes, e não com as bilheteiras e o potencial de sequências. Agora, a mídia e todo o resto estão viciados nas arrecadações das bilheteiras. É tudo o que eles se importam.
DEADLINE: Qual é o impacto disso na cultura de fazer bons filmes?
FRIEDKIN: Eu acho que isso prejudica todos os aspectos da indústria cinematográfica, até mesmo a crítica de cinema, que certamente não é o que era nos anos 70. É difícil se empolgar poeticamente com o último filme de super-herói. Naquela época, havia filmes que atraíam o público e não custavam tanto a ponto de nunca conseguirem lucrar. Filmes como Five Easy Pieces e ótimos filmes menores, como as comédias de Bogdanovich e o filme A Conversação, de Coppola, foram feitos com muito pouco dinheiro. Os estúdios não estavam tentando se superar com efeitos especiais e personagens de quadrinhos. Não estou realmente criticando, apenas observando que é diferente. O cinema americano agora é, em grande parte, baseado em franquias de quadrinhos. Eles funcionam como um negócio, então você não pode criticar isso, porque o público se condicionou a esperar por isso. Mas nenhum de nós nos anos 70 achava que estávamos operando em uma era de ouro; todos nós fomos influenciados por Godard, Fellini, Truffaut, Kurosawa.
DEADLINE: Em Sorcerer, você pegou um filme de quase 40 anos e o trouxe de volta para os cinemas internacionais. Por que você desejava tanto uma segunda chance?
FRIEDKIN: Vou fazer um ponto, mas quero deixar claro que meu nome nunca deve ser usado na mesma frase que o de Vincent Van Gogh. Ele foi um dos maiores artistas reconhecidos que já existiram, que pintou por apenas dez anos de sua vida, mas fez mais de 3.000 obras. Nenhuma delas foi vendida durante sua vida. Hoje, você precisa ser um bilionário para comprar um Van Gogh. Por que a qualidade desse trabalho não foi reconhecida na época, como é agora? O que era diferente há 140 anos? O irmão de Van Gogh era seu marchand, ele vendeu muitas pinturas impressionistas e nenhuma de Van Gogh. Eu só me comparo a ele para sugerir que, às vezes, uma obra é reconhecida fora de seu tempo.
DEADLINE: O que foi necessário para conseguir essa reavaliação?
FRIEDKIN: Foi uma longa luta. Eu tive que ir ao tribunal apenas para descobrir quem o possuía. Você nunca vai ganhar muito dinheiro fazendo algo assim, mas a Warner Bros. incentivou esse revival ao lançá-lo em BluRay e DVD, o que fez com que vários distribuidores ao redor do mundo começassem a exibi-lo em cinemas, desde Istambul até Seul. Quando Sorcerer foi lançado, ele nunca teve uma distribuição na Europa porque foi um fracasso tão grande nos Estados Unidos, tanto criticamente quanto nas bilheteiras. E isso foi no início daquela época em que a bilheteira importava. Star Wars tinha acabado de mudar tudo; o filme blockbuster se tornou a dieta preferida dos estúdios.
DEADLINE: Star Wars, o filme que você recusou, foi lançado junto com o seu. Parecia que tudo mudou ali.
FRIEDKIN: Star Wars tomou todas as salas de cinema e o público. Estava no lugar certo na hora certa, e Sorcerer estava no lugar errado na hora errada. Star Wars é uma grande aventura para todas as gerações e mudou o zeitgeist do cinema americano. Aquele cenário mudou. Provavelmente, o fim daquela Era de Ouro dos anos 70 foi Heaven’s Gate, feito por um cara muito respeitado como um autor. Eu nunca me considerei um autor, mas sim um diretor que trabalhava e amava o processo, assim como meus contemporâneos. Não tínhamos a intenção de fazer filmes que o público não veria porque eram difíceis demais; apenas fizemos filmes nos quais acreditávamos. John Cassavetes foi o mais verdadeiro dos cineastas independentes americanos. Ele não tinha ninguém para apoiá-lo. Toda vez que queria fazer um filme, tinha que hipotecar sua casa e aceitar trabalhos de atuação para financiar esses pequenos filmes que recebiam ótimas críticas, mas tinham públicos pequenos. Mas isso não incomodava ninguém. As pessoas sabiam que Cassavetes era um grande cineasta, mesmo que não estivesse trabalhando em A Noviça Rebelde; suas ambições artísticas eram muito maiores do que os lançamentos comerciais da época, então você sabia que ele nunca teria um grande público. Mas o público que ele tinha apreciava seus filmes e isso era o suficiente para que algum estúdio os lançasse. Hoje? Nem pensar.
DEADLINE: Sorcerer tinha Roy Scheider no elenco, que já havia feito Tubarão e The French Connection, mas ele não era o grande nome. Por que você não ficou com Steve McQueen, a maior estrela da época? Como foi essa dança?
FRIEDKIN: Nós éramos amigos, e ele era um grande fã de The French Connection. Walon Green escreveu o roteiro de Sorcerer pensando em Steve McQueen para o papel de Scheider. Nós enviamos o roteiro para Steve, e ele me ligou dizendo: "Este é o melhor roteiro que já li. Eu adoro este filme." Depois, ele disse: "Tem algumas coisas que preciso que você faça por mim. Sei que você quer ir para uma selva e filmar, mas não posso fazer isso porque acabei de me casar com Ali McGraw e ela tem uma carreira. Você pode escrever um papel para ela, assim ela pode estar comigo enquanto estou filmando?" Eu disse: "Steve, você acabou de me dizer que era o melhor roteiro que já leu. Não há um papel importante para uma mulher." Ele respondeu: "Tudo bem, entendi. Então, por que você não a torna co-produtora?" Eu disse: "Steve, não vou fazer isso, não acredito nesse tipo de coisa. E definitivamente não quero usar sua esposa como isca e chamá-la de produtora, porque ela não vai ser produtora do filme." Então ele disse: "Tudo bem, entendi, então vamos fazer tudo na América." Eu respondi: "Steve, eu já encontrei os locais e estou comprometido com eles. Não quero fazer isso na América." Por causa dessas três razões, ele decidiu passar.
DEADLINE: Como isso acabou para você?
FRIEDKIN: Vou admitir uma coisa. Se isso tivesse surgido hoje, eu teria feito qualquer coisa que ele quisesse. Eu era tão arrogante naquela época. Achava que era a estrela daquele filme. Então não pensava que um close de Steve McQueen valia mais do que uma tomada da paisagem mais bonita. Um close de McQueen valia mais. Quando McQueen saiu, perdi Marcello Mastroianni e Lino Ventura, que eram grandes estrelas europeias e também eram conhecidos nos Estados Unidos. Só minha arrogância me custou aquele elenco.
DEADLINE: Qual é o valor dos astros de hoje em comparação com quando McQueen, Paul Newman, Robert Redford ou Dustin Hoffman eram os reis?
FRIEDKIN: Eu não acho que esse tipo de coisa exista mais. Eu não conseguiria nomear dez, e talvez tivesse dificuldade para citar cinco atores ou atrizes que garantam bilheteira hoje. Os conceitos são as estrelas. Eu não sei o nome do cara que acabou de interpretar o Superman, mas nos anos 70, o público esperava ansiosamente pelo próximo filme das estrelas, assim como fazia com Cary Grant, James Stewart, Humphrey Bogart, Joan Crawford e Bette Davis. Eu não acho que o sistema de estrelas exista agora. Certos atores e atrizes trabalham em filmes que têm um conceito que o público quer ver, como Ocean’s Eleven. Jerry Weintraub montou um elenco que fez as pessoas quererem ver aquele filme, mesmo que não seja o maior filme já feito.
DEADLINE: Por que o sistema de estrelas morreu?
FRIEDKIN: Os estúdios não os cultivam mais. Todos aqueles caras que mencionei estavam, em sua maioria, sob contrato com o estúdio, dirigidos por produtores que reconheciam potencial, criavam estrelas e escolhiam todo o material para eles. Novamente, a sorte teve seu papel. Humphrey Bogart só conseguiu O Tesouro da Sierra Madre porque George Raft recusou. Bogart é tão incrível no filme, e eu não sei qual foi a bilheteira, nem me importa. É um dos maiores filmes americanos de todos os tempos.
DEADLINE: Sorcerer parecia um filme impossível de ser filmado, desde as locações infernais na selva sul-americana, até as chuvas e acrobacias envolvidas em mover aqueles veículos por pontes precárias feitas de cordas e madeira. Como você se lembra disso?
FRIEDKIN: Sorcerer permanece como uma metáfora para a vida.
DEADLINE: O que você quer dizer?
FRIEDKIN: Para simplificar, você luta e luta e, então, você morre. É isso. Eu via isso como uma metáfora não apenas para os indivíduos no filme, mas para as nações do mundo, então e especialmente hoje. Isso pode ser uma razão pela qual as pessoas se relacionam com isso agora. As nações do mundo são hostis umas às outras, e ainda assim, se não trabalharem juntas e cooperarem, vão se destruir. Essa é a metáfora na história desses quatro caras de lugares diferentes do mundo, que se encontram nessa situação. Eles não gostam uns dos outros, mas se não cooperarem, vão se explodir, literalmente. Acho que estamos à beira dessa catástrofe agora, evitando-a todos os dias. Todos esses países estão sobre caminhões carregados de dinamite volátil. Isso me motivou a fazer o filme, junto com mostrar a exploração dos países da América Latina por grandes corporações americanas como a United Crude e as empresas de petróleo que exploravam os trabalhadores, quando as condições de segurança não significavam nada. Fui profundamente influenciado pelo romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, que escreveu o que agora é conhecido como realismo mágico. Esse é o estilo que adotei para o filme. Realismo mágico. Realismo no sentido de que tudo o que você via nós tínhamos que fazer, e colocarei isso como um dos filmes mais difíceis já filmados, especialmente a cena da ponte. Isso foi ameaçador à vida. Quando o filme acabou, eu peguei malária e fiquei com ela por quatro ou cinco meses. Muitos dos caras que trabalharam naquele filme voltaram com gangrena e outras doenças. Não é algo que eu faria hoje.
DEADLINE: Eu me pergunto se você sente o mesmo sobre alguns de seus outros filmes. Eu reassisti O Exorcista, e aquelas são cenas chocantes para uma menina jovem interpretar. Também assisti O Exorcista, e aquela cena de perseguição de alta velocidade sob a estrutura do metrô. Você olha para trás e considera um milagre que ninguém ficou gravemente ferido?
FRIEDKIN: A resposta para sua pergunta é sim, incluindo Linda Blair em O Exorcista. Sempre houve o risco nos meus filmes, onde alguém poderia ter se machucado ou pior. Eu sempre via o cinema naqueles dias como uma aventura e uma educação, entrando em território desconhecido, tanto literal quanto metaforicamente. Eu era jovem. Foi apenas pela graça de Deus que ninguém se feriu ou morreu nesses filmes. Eu não faria isso hoje. Não faria um filme hoje que pudesse causar uma torção no tornozelo de um esquilo.
DEADLINE: Por que você fez isso naquela época?
FRIEDKIN: Eu era jovem e imprudente, e tive a oportunidade. Essa é uma combinação perigosa — jovem, imprudente, com as chaves do reino, o que eu tinha porque, francamente, achavam que eu era à prova de balas, assim como alguns dos meus colegas na época. Estava errado. O Exorcista foi uma ameaça à sanidade daquela maravilhosa garota de doze anos. Nós fizemos testes com milhares de garotas em todo o país, muitas em vídeo. Eu vi centenas das fitas e, quando a encontrei, foi como um presente dos deuses do cinema. Ela chegou até mim sem recomendação de ninguém. Sua mãe a trouxe quando eu estava procurando garotas de 16 anos que pudessem parecer mais novas. Não consegui encontrar ninguém que pudesse suportar a pressão psicológica de interpretar um papel assim. Linda não tinha experiência em atuação. Ela só tinha feito um pouco de modelagem, mas era uma aluna exemplar em Westport, Connecticut. Ela era extremamente inteligente e centrada. Ela foi a única que conheci para aquele papel que achei que não seria prejudicada pela experiência.
DEADLINE: Como você garante isso, quando aquelas cenas de possessão demoníaca são tão intensas?
FRIEDKIN: Eu transformei tudo em um jogo para ela. Com doze anos, ela não entendia as implicações do que estava fazendo, mas tinha alguma ideia do que a história tratava e confiava totalmente em mim. Eu a tratava como se fosse seu pai substituto. Sua mãe e pai estavam separados na época. Sua mãe estava no set todos os dias e aparece em uma pequena cena. Eu poderia te enviar fotos de nós no set, onde nosso carinho um pelo outro é palpável. Eu realmente amava aquela criança como se fosse minha e a tratei assim.
DEADLINE: O que aconteceu quando havia uma cena de possessão?
FRIEDKIN: Eu transformei tudo em um jogo. E quando eu pedia para ela fazer algo especialmente difícil, que ela achava meio sujo ou não tinha certeza, eu dizia: ok, se você fizer isso, eu te dou um milkshake. Foi feito da maneira que você trataria uma criança. Tinha que ser uma menina de 12 anos, embora eu já tivesse desistido de encontrar uma até que sua mãe a trouxesse sem agendamento. Novamente, é um milagre que ela não tenha se prejudicado. Ela fez muitos mais filmes do que eu; é muito ativa com a PETA e começou sua própria organização para proteger os animais. Ela é uma mulher excelente agora, na casa dos cinquenta. Ela passou por alguns problemas que a maioria dos adolescentes enfrenta, mas saiu bem. Não poderíamos ter feito aquele filme a menos que ela fosse quem ela era.
DEADLINE: A perseguição de carro em O Exorcista ganha um contexto diferente após aquele terrível acidente em Midnight Rider, o filme de Greg Allman que resultou na morte da membro da equipe Sarah Jones. O diretor Randall Miller não tinha permissão para filmar em uma ponte com uma linha de trem ativa e ele está atrás das grades depois que não conseguiram obter uma cama de hospital e se retirar dos trilhos enquanto um trem passava em alta velocidade pela ponte. Como isso fez você refletir sobre seu filme, que terminou em Oscars e glória?
FRIEDKIN: Poderia ter acontecido conosco. Foi apenas pela graça de Deus que não aconteceu. Embora eu tivesse muitas pessoas no set preocupadas com a segurança, desafiamos todas as leis de segurança. Eu não tinha permissão para filmar aquela perseguição, exceto do trem elevado. Eles me deixaram filmar no trem elevado por cerca de três ou quatro horas por dia. Conseguimos filmar das 9:00 da manhã, quando consideravam que o horário de pico havia terminado, até 1:00 da tarde. Para isso, precisávamos de permissão. Mas se eles não me dessem permissão, eu estava preparado para roubar aquelas cenas. Apenas levaria meus atores em um trem elevado diferente todos os dias e continuaria filmando até que nos expulsassem.
DEADLINE: Era uma época diferente, mas os filmes ainda são feitos com padrões relaxados e esses riscos às vezes resultam em cenários catastróficos. Parece que você olha para trás com um grande arrependimento...
FRIEDKIN: Olha, são emoções misturadas para mim, mas o arrependimento definitivamente faz parte disso. O fato de eu ter sido tão insensível e tão... despreocupado, na verdade, com qualquer coisa além de conseguir as tomadas que tinha na minha cabeça. Eu estava cercado por pessoas que concordavam comigo. A única coisa que você compara é a alguém que lidera homens e mulheres em batalha, porque eram batalhas. Eu tinha caras que estavam mais do que dispostos a correr esses riscos comigo. Eu nunca coloquei uma arma na cabeça de ninguém, mas definitivamente quebrei todas as regras, e acho que muitas das regras surgiram por causa do que conseguimos nos livrar em filmes como O Exorcista. Quando fiz a cena de perseguição em Viver e Morrer em L.A., eu tinha permissão para fazer tudo, mas isso também era muito perigoso, exceto que foi tudo executado com dublês. O Exorcista não foi. O Exorcista estava passando por um tráfego real na cidade de Nova York que não sabia o que estávamos fazendo.
DEADLINE: Quão rápido aqueles carros estavam indo?
FRIEDKIN: Em um ponto, 90 milhas por hora, sem nada para anunciar sua chegada. Quando eu não estava filmando nos carros, com uma câmera montada no para-choque, não havia nada para te avisar que havia um veículo se aproximando, exceto que tínhamos uma luz de polícia no topo do carro e uma sirene. Eu realmente tinha isso. Tinha uma sirene de polícia ajustada ao máximo, e era isso. Para conseguir as tomadas mais perigosas em O Exorcista, estava a 90 milhas por hora. Basicamente uma única tomada com três câmeras, das quais eu escolhi as tomadas. Eu opere a câmera naquela cena com um detetive da polícia no chão, caso fôssemos parados pela polícia. O detetive, chamado Randy Jurgenson, ainda está por aí e lembra bem daqueles dias. Fomos parados várias vezes e Randy teve que mostrar seu distintivo e explicar para os policiais da delegacia o que estávamos fazendo. Eu causei o engarrafamento na Ponte do Brooklyn para uma cena. Sem permissão para fazer isso. Enviei um grupo de policiais de folga para a ponte apenas para estacionar, para uma cena em O Exorcista onde Hackman perde o cara que estava seguindo no trânsito.
DEADLINE: O que aconteceu?
FRIEDKIN: Helicópteros da polícia sobrevoaram e desceram, dizendo o que diabos vocês estão fazendo? Eles nos pararam, mas eu tinha caras comigo o tempo todo que estavam na força policial, como os verdadeiros policiais da French Connection. Eles correram até lá com seus distintivos e explicaram para esses caras que ainda estavam bravos porque não sabiam o que estávamos fazendo e não tínhamos permissão para fazer isso. Isso te dá uma ideia do que estava acontecendo nos estúdios naquela época. Eles sabiam o que eu estava fazendo, mas nunca tentaram me parar. Eu não tinha ninguém que viesse e me lesse as regulamentações de segurança. Mas não tem nada a ver com meu gênio; foi apenas pela graça de Deus que alguém não se feriu ou algo pior. Agradeço a Deus por isso, mas não foi por causa de precauções extras ou da minha preocupação com a segurança de mim ou dos outros. Eu tenho que dizer isso. Não posso enrolar.
DEADLINE: Você proporcionou um gostinho dessa febre de blockbusters em que estamos agora, com O Exorcista. Eu lembro das filas ao redor do quarteirão em Manhattan quando estreou. Lembre-nos como era surfar a verdadeira onda de um filme que capturou o zeitgeist, comparado a agora, onde o objetivo é a saturação global e onde você pode fazer um bilhão de dólares em alguns fins de semana.
FRIEDKIN: Agora, eles estreiam em 6000-7000 telas ou mais. O Exorcista estreou em 26 cinemas nos Estados Unidos, por seis meses. Havia tanta demanda que eles tiveram que quebrar contratos para expandi-lo para 50 cinemas em seis meses. As pessoas estavam arrombando as portas. Na Cidade do México, índios mexicanos que nunca tinham ido à cidade desceram e jogaram dinheiro no cinema. Eles não sabiam sobre ficar na fila, então jogavam seu dinheiro para o cinema e era incontrolável.
DEADLINE: Foi uma construção lenta de negócios prolongada?
FRIEDKIN: Não foi uma estratégia da parte da Warner Brothers fazer isso. Eles realmente achavam que seriam processados por causa da classificação. Eles tinham visto os lucros de filmes como O Poderoso Chefão, que precedeu O Exorcista, então sabiam que poderiam atrair grandes audiências. A razão pela qual não abriram mais amplamente foi porque temiam que receberíamos uma classificação X e isso seria um problema, em todo lugar. Não recebemos. Eu consegui uma classificação R para aquele filme, sem cortes. Não tirei uma única cena para conseguir o R.
DEADLINE: Você descreveu em uma homenagem da THR a Jerry Weintraub as dificuldades que passou para conseguir que Cruising tivesse uma classificação R. Como você conseguiu isso com O Exorcista, com cenas que ainda são chocantes hoje?
FRIEDKIN: Naquela época, havia um conselho de classificação muito liberal, altamente sensível e inteligente, liderado pelo cara que criou o código de classificação, Aaron Stern. Ele era um psiquiatra praticante em Nova York, que Jack Valenti procurou para descobrir qual deveria ser o código de cinema. Ele criou toda essa classificação — R, X, M, PG. Ele era novo no cargo quando O Exorcista foi para o Conselho. Ele me ligou depois de assistir ao filme com seu Conselho. Eu não o conhecia; ele me ligou na Warner Brothers e disse: "Senhor Friedkin, acabei de ver seu filme. Vamos dar a ele uma classificação R, sem cortes. Vamos receber muita crítica por isso, e você também, e a Warner Brothers, mas eu acredito que este é um filme brilhante e inteligente e que deve ser amplamente visto." Todos nós achávamos que certamente iríamos receber um X e ter problemas. Algumas cidades exibiram com um X apesar do fato de ter uma classificação R. Foi um X em Washington, onde filmei, e foi um X em Boston.
DEADLINE: Por que a luta pela classificação de Cruising foi muito mais difícil do que a de O Exorcista?
FRIEDKIN: Havia um conselho de classificação diferente, com um conjunto diferente de valores, e posso defini-los como sendo muito mais conservadores. Richard Hefner era muito mais conservador do que seu predecessor Aaron Stern, que era um liberal que não acreditava na censura. Apesar do que o conselho de classificação te diz, eles operam como censores. É uma troca para conseguir uma determinada classificação. Você tem que remover algumas palavras aqui, algumas cenas ali, encurtar isso, eliminar aquilo. Com Aaron Stern, você não precisava fazer nada disso. Stern tinha a percepção e as pessoas em seu Conselho que, basicamente, achavam que as classificações deveriam ser apenas um aviso para os pais sobre o que era o conteúdo. Deixe os pais decidirem se querem levar seus filhos para ver isso, ou não, ou se querem que seus filhos vejam. Ele não via isso como uma tentativa de purificar a população. Ele via o código — e era apoiado por Valenti — como um meio de informar o público sobre o conteúdo. Isso cumpria essa função. Agora, veja, muitas pessoas assistiram O Exorcista que provavelmente não deveriam ter visto. Mas a classificação X não ia impedi-los de qualquer maneira. Quando eu era criança, cresci em Chicago e não tínhamos classificações para os filmes. Havia alguns filmes em Chicago que o escritório do prefeito Daley simplesmente baniu. Eles não podiam entrar, ou se podiam, eram apenas para Adultos. Eu consegui entrar e ver esses filmes junto com meu amigo quando estávamos na escola primária. Um filme como Rope, de Alfred Hitchcock, que era vagamente baseado nos assassinatos de Loeb e Leopold. James Stewart interpretava um professor universitário e dois jovens que levaram sua filosofia nietzschiana a sério. Eles mataram um colega de classe, colocaram o corpo morto em um grande baú no centro da sala e colocaram bebidas e comida sobre ele e fizeram uma festa. Havia apenas doze tomadas no filme todo. Ele filmou um rolo inteiro de filme até acabar em cada uma das cenas, sem edição interna. A câmera se move, mas apenas para seguir os atores. E não há cortes, exceto no final de um rolo, onde ele faz pequenas transições para o próximo rolo. Mas é um filme sobre dois garotos se safando de um assassinato. Era para Adultos em Chicago, mas não impediu a mim ou meu amigo. Agora, com vídeos caseiros, se uma criança quiser assistir a algo com classificação X ou um R forte, é bem provável que ela consiga.
DEADLINE: Dustin Hoffman disse recentemente que os filmes de hoje são terríveis e que toda a qualidade está na televisão. Você concorda?
FRIEDKIN: Não vejo os filmes de hoje como terríveis, embora tenha sido mal interpretado nesse aspecto. Eles são diferentes por causa da nova tecnologia digital e provavelmente nem deveriam ser chamados mais de filmes. Vejo o tipo de cinematografia que existia nos anos 70 ocorrendo na televisão de longa duração, principalmente no cabo e no download digital. Estou falando de séries que desenvolvem personagens e histórias ao longo de oito ou dez episódios. Eu as considero muito mais adequadas para mim como espectador do que o que passa no cinema local. Os Sopranos, a série britânica The Fall, 24, Homeland, House of Cards. Essas são as coisas que me vejo assistindo mais do que cinema. Mas acabei de ver Mr. Holmes e minha esposa e eu estávamos em lágrimas. Há exceções.
DEADLINE: Você está dizendo que a era de ouro do cinema dos anos 70 está acontecendo agora, na TV, onde todos esses roteiristas ousados foram quando os estúdios pararam de contratá-los para dramas de orçamento médio?
FRIEDKIN: Você está certo, e as coisas boas estão sendo feitas na televisão. É lá que estamos fazendo To Live and Die in L.A. Está sendo escrito por Bobby Moresco, que escreveu Crash e ganhou o Oscar com Menina de Ouro. Deus queira que eu dirija todos os episódios e tente capturar a essência do filme. Estou muito interessado em televisão de longa duração, tanto como diretor quanto como espectador.
DEADLINE: Você teve uma trajetória bastante rápida, mas os estúdios agora costumam pegar cineastas promissores de filmes de baixo orçamento e jogá-los na água funda em blockbusters. Veja Colin Trevorrow, que saiu de Safety Not Guaranteed, um filme de baixo orçamento, e depois dirigiu Jurassic World, e agora está na fila para dirigir um dos filmes de Star Wars. Alguns desses artistas são consumidos e expelidos. O que você diria a esses caras que estão fazendo esses grandes saltos?
FRIEDKIN: Tivemos trajetórias semelhantes, exceto que não havia televisão de longa duração para nos apoiar ou para onde ir na época, mas os caras da minha geração avançaram rapidamente de filmes medianos para a oportunidade de fazer filmes cada vez melhores. Tivemos acesso a materiais melhores e, às vezes, tivemos sorte. Eu não fui a primeira escolha da Warner Brothers para fazer O Exorcista. O filme foi recusado por Stanley Kubrick, Arthur Penn e Mike Nichols. Eu estava bem abaixo na lista deles, mas me contrataram com alguns filmes no meu nome quando O French Connection saiu e foi um sucesso imediato. Muitos desses jovens que começaram fazendo vídeos caseiros ou coisas da MTV tiveram seu trabalho notado pelo estilo e talento e se movem rapidamente pelas mesmas razões que nós nos anos 70. Algum cara do estúdio vê algum talento ali. Não se trata de experiência; trata-se de percepção do talento, não diferente de quando a RKO deu o contrato a Orson Welles.
Orson Welles nunca tinha feito um filme e deram a esse cara as chaves do estúdio para fazer o que quisesse. E ele criou, sem dúvida, o melhor filme americano de todos os tempos, seguido por uma queda acentuada. Eu não poderia realmente aconselhar esses jovens que estão conseguindo esses grandes trabalhos de filme, a não ser dizer que você deve aproveitar essas oportunidades quando puder. Esses jovens têm uma oportunidade maior do que a minha geração jamais teve. Eles podem entrar em uma pequena loja eletrônica, comprar uma câmera digital ou um celular, filmar algo, editar no computador e postar em um site como o YouTube. Às vezes, esses filmes caseiros são vistos por milhões; a rede social é o maior disseminador de informações de todos os tempos. Esses caras fazem seus próprios filmes e, se tiverem talento, haverá alguém que se arriscará com eles. Nós tivemos que trabalhar nosso caminho até lá. Meu primeiro trabalho foi no setor de correspondência de uma estação de televisão em Chicago. Os grandes diretores dos anos 70, caras como Sidney Lumet, John Frankenheimer e Franklin Schaffner, começaram como garçons quando a televisão ao vivo era gravada em Nova York, ou na sala de correspondência. Não havia escolas ensinando técnica na época. Você subia pelas fileiras e aprendia observando os caras que vieram antes de você fazer isso. Se você tivesse talento, isso apareceria. A melhor televisão que já vi foi feita ao vivo no Playhouse 90 por John Frankenheimer. Nunca houve nada igual. Às vezes, eles faziam isso com oito a doze câmeras ao vivo e se moviam de estúdio para estúdio, enquanto o show estava no ar. A qualidade é equivalente aos dramas de TV de hoje, mas quase não há memória disso porque as únicas gravações eram em Kinescope desfocado. Não havia fitas desses shows. Eles existiam na mente de pessoas como eu, que foram influenciadas por eles.
DEADLINE: Você escreveu recentemente sobre o que você e Jerry Weintraub tiveram que fazer para conseguir uma classificação R para Cruising. Dada a crescente tolerância, como isso se sustenta? Havia a percepção na época de que o filme retratava um estilo de vida abominável.
FRIEDKIN: Certamente essa não era a nossa intenção. Nossa única intenção, como escrevi naquele contrato, era ver isso como um mistério de assassinato ambientado em um cenário exótico de S&M que não havia sido mostrado em um filme mainstream. O filme não tinha a intenção de fazer um comentário geral sobre a vida gay. Se eu fosse fazer esse filme hoje, seria difícil porque não acredito que aqueles lugares existam mais por causa da AIDS. Muitas dessas mortes misteriosas que ocorriam nas boates na época acabaram sendo causadas pelo HIV, mas não havia um nome na época para os caras que estavam ficando doentes e morrendo. Então, esse é um dos poucos filmes que eu não conseguiria fazer hoje. Eu filmei nessas boates com pessoas que eram membros daquelas comunidades e participaram livremente. Em termos do que eu fiz na época, eu apoio totalmente. Sei que muitas pessoas ficaram ofendidas e sei por quê, porque estávamos apenas nas fases iniciais da libertação gay e o movimento gay estava começando a dar seus primeiros passos para fora do armário, e Cruising não foi o melhor passo à frente para o progresso que os gays haviam feito na sociedade em direção à aceitação. Muitas pessoas o perceberam como um comentário sobre toda a vida gay, o que não era o caso.
DEADLINE: Qual foi a lição mais difícil que você aprendeu em sua carreira cinematográfica?
FRIEDKIN: Que um close de Steve McQueen vale mais do que a melhor paisagem que você poderia fotografar.
DEADLINE: Dê sua visão para transformar The Winter Of Frankie Machine em um filme. Este é um ótimo livro do autor de The Cartel, Don Winslow, que uma vez teve Martin Scorsese pronto para dirigir Robert De Niro e Michael Mann preparado para fazê-lo. Como você vê isso?
FRIEDKIN: Um grande personagem, 62 anos, que está basicamente na praia e volta para fazer mais um trabalho em Detroit. Vejo isso como um thriller bem apertado com um ótimo personagem. Não é um filme de grande orçamento. Tem todo o poder de um romance curto de Hemingway, muito compacto e completo. Tem que ser escrito para alguém que possa fazer isso sem parecer que está atuando. Estamos nas fases iniciais. Recebi a ligação há duas semanas do Shane Salerno com uma nota do Don Winslow me perguntando.
DEADLINE: Você sabe quem realmente faria o papel principal do assassino aposentado?
FRIEDKIN: Quem?
DEADLINE: Steve McQueen.
FRIEDKIN: [Risos]. Você acertou em cheio. O outro? Paul Newman, o do The Verdict. Há outros, não necessariamente estrelas de cinema, mas atores. Walton Goggins é um cara em quem você poderia acreditar nesse papel. Ele pode não ter 60; mas ele tem experiência, isso se reflete em seu rosto. McConaughey, que foi para um lugar diferente em Killer Joe, ele poderia fazer isso. Se ele quisesse, eu diria sim em um segundo.