Medo da cultura e cultura do medo: José Mojica e John Carpenter aproximados por Exorcismo negro (1974) e Halloween (1978)

Os contos de terror libertam sua imaginação libertando a sua realidade e consequentemente os seus sonhos.


Numa coletiva de imprensa, trajado com as unhas tradicionais de Zé do Caixão, José Mojica Marins afirma categoricamente: “o Zé do Caixão não existe”. E assim, somos levados a assistir Marins passar as festas de fim de ano no berço do seu célebre personagem: numa casa de campo com uma família bem tradicional. Exorcismo Negro transforma Marins em um personagem obrigado a lidar com sua criação. Ao longo da trama, eventos estranhos tomam conta da casa, decorada com símbolos religiosos, e conforme essa presença espiritual, estranha, demoníaca se apossa da casa e da família na volta de Mojica, fica claro que todo o mal é endógeno a estrutura da casa, escondido nos porões da família.

O filme é o retorno do Zé do Caixão ao cinema depois de um período de quatro anos em que Marins parecia ter abandonado o célebre personagem. A presença ausente de Zé desde a primeira cena reflete também sobre a condição do autor, atrelada a sua criação, o levando a todo lugar que vai, não importa quão pacato. Zé do Caixão é ao mesmo tempo causa e consequência dos eventos fantasmagóricos em O Exorcismo Negro porque uma vez que coisas estranhas começam a acontecer com a presença de Marins no recinto, a sombra da morte se projeta sobre o diretor.

Os anos 70, do crescimento da classe média, da moralização da sociedade brasileira, das pautas de costumes, da derrota definitiva do comunismo no país, consolidam a hegemonia da família e da religião na cultura brasileira, empurrando todo o resto para o campo da contracultura, lugar que vai ser ocupado pelos hippies tropicalistas, por boa parte do cinema, pela cultura de rua, de samba e de carnaval, um espaço próprio que passa ao largo da sociedade brasileira. O cinema de Marins não anda na contracultura, o diretor se interessou muito mais pelas margens da cultura. Zé do Caixão é a indigestão da imposição moral da classe média brasileira.

O personagem existe na tensão entre o que é visível e o que é contraditório na estrutura familiar tradicional. Ele é o que está fora da foto, o medo de toda tensão sexual e toda maldade e opressão que condicionam essa organização patriarcal e limitam as possibilidades de ser e existir das pessoas. Em O Exorcismo Negro, José Mojica se confronta com esse mundo que projeta o Zé do Caixão.

Já Michael Myers é ao mesmo tempo similar e antagônico ao personagem de Mojica. O monstro seminal criado por John Carpenter em Halloween (1978) é mais do que os dejetos da cultura moral capitalista. É a síntese do medo criado pelas contradições sociais econômicas desse sistema. O medo daquilo que se desvia da norma e portanto ameaça a existência fortemente idealista do subúrbio americano, construído na ideia de que a qualquer momento esse mundo pode ser destruído, a não ser que seja defendido. Esse conceito um pouco amplo e impreciso que se chama normalmente de cultura do medo nos permite olhar para Halloween de uma maneira abrangente. Myers é um filho da imoralidade, por isso mata sua irmã no ato sexual durante a primeira cena do longa, aliás, não é Myers que a mata, somos nós, sociedade, pelo menos isso que Carpenter quer dizer filmando o ponto de vista do menino para os assassinatos.

O status monstruoso que Myers ganha no imaginário social do subúrbio da classe média o transforma no inimigo ideal da cultura do medo. Ele assombra as casas, caça as suas vítimas, é imortal, invencível e se reproduz a cada vez que seu mito é contado. Essa é a principal semelhança de Myers e Zé do Caixão, o medo que se apodera das mentes da classe média é o que os faz imortais, pelo menos enquanto as pessoas tiverem medo. Mas se Myers representa a própria cultura do medo, esse instrumento de controle e defesa dos privilégios e do estilo de vida suburbano, Zé do Caixão é pior que isso, ele é todos os impulsos mais proibidos e pecaminosos que existem. O ritual que encerra O Exorcismo Negro é cheio de nudez, símbolos satânicos, sexo, tortura, bebida, é um desafio a tudo, e Zé do Caixão explica que o seu ritual não respeita nem os costumes nem os tempos do mundo. 

Nos dois filmes a vitória final sobre os vilões não é o suficiente para livrar o mundo do mal, pois Laurie e Marins seguem habitando o território que cria a existência de cada um dos seus destruidores. Zé do caixão de dentro da cultura e Myers como consequência dela são intermináveis enquanto as estruturas morais permanecerem. E é isso que Marins nos mostra no olhar da menina escondendo Zé do Caixão ao final do filme sob o ritmo de “Bate o sino de Belém” e dos gritos das pessoas sofrendo no inferno.

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