Medo da cultura e cultura do medo: José Mojica e John Carpenter aproximados por Exorcismo negro (1974) e Halloween (1978)
Os contos de terror libertam sua imaginação libertando a sua realidade e consequentemente os seus sonhos.
Numa coletiva de imprensa, trajado com as unhas tradicionais de Zé do Caixão, José Mojica Marins afirma categoricamente: “o Zé do Caixão não existe”. E assim, somos levados a assistir Marins passar as festas de fim de ano no berço do seu célebre personagem: numa casa de campo com uma família bem tradicional. Exorcismo Negro transforma Marins em um personagem obrigado a lidar com sua criação. Ao longo da trama, eventos estranhos tomam conta da casa, decorada com símbolos religiosos, e conforme essa presença espiritual, estranha, demoníaca se apossa da casa e da família na volta de Mojica, fica claro que todo o mal é endógeno a estrutura da casa, escondido nos porões da família.
O filme é o retorno do Zé do Caixão ao cinema depois de um período de quatro anos em que Marins parecia ter abandonado o célebre personagem. A presença ausente de Zé desde a primeira cena reflete também sobre a condição do autor, atrelada a sua criação, o levando a todo lugar que vai, não importa quão pacato. Zé do Caixão é ao mesmo tempo causa e consequência dos eventos fantasmagóricos em O Exorcismo Negro porque uma vez que coisas estranhas começam a acontecer com a presença de Marins no recinto, a sombra da morte se projeta sobre o diretor.
Os anos 70, do crescimento da classe média, da moralização da sociedade brasileira, das pautas de costumes, da derrota definitiva do comunismo no país, consolidam a hegemonia da família e da religião na cultura brasileira, empurrando todo o resto para o campo da contracultura, lugar que vai ser ocupado pelos hippies tropicalistas, por boa parte do cinema, pela cultura de rua, de samba e de carnaval, um espaço próprio que passa ao largo da sociedade brasileira. O cinema de Marins não anda na contracultura, o diretor se interessou muito mais pelas margens da cultura. Zé do Caixão é a indigestão da imposição moral da classe média brasileira.
O personagem existe na tensão entre o que é visível e o que é contraditório na estrutura familiar tradicional. Ele é o que está fora da foto, o medo de toda tensão sexual e toda maldade e opressão que condicionam essa organização patriarcal e limitam as possibilidades de ser e existir das pessoas. Em O Exorcismo Negro, José Mojica se confronta com esse mundo que projeta o Zé do Caixão.
Já Michael Myers é ao mesmo tempo similar e antagônico ao personagem de Mojica. O monstro seminal criado por John Carpenter em Halloween (1978) é mais do que os dejetos da cultura moral capitalista. É a síntese do medo criado pelas contradições sociais econômicas desse sistema. O medo daquilo que se desvia da norma e portanto ameaça a existência fortemente idealista do subúrbio americano, construído na ideia de que a qualquer momento esse mundo pode ser destruído, a não ser que seja defendido. Esse conceito um pouco amplo e impreciso que se chama normalmente de cultura do medo nos permite olhar para Halloween de uma maneira abrangente. Myers é um filho da imoralidade, por isso mata sua irmã no ato sexual durante a primeira cena do longa, aliás, não é Myers que a mata, somos nós, sociedade, pelo menos isso que Carpenter quer dizer filmando o ponto de vista do menino para os assassinatos.
O status monstruoso que Myers ganha no imaginário social do subúrbio da classe média o transforma no inimigo ideal da cultura do medo. Ele assombra as casas, caça as suas vítimas, é imortal, invencível e se reproduz a cada vez que seu mito é contado. Essa é a principal semelhança de Myers e Zé do Caixão, o medo que se apodera das mentes da classe média é o que os faz imortais, pelo menos enquanto as pessoas tiverem medo. Mas se Myers representa a própria cultura do medo, esse instrumento de controle e defesa dos privilégios e do estilo de vida suburbano, Zé do Caixão é pior que isso, ele é todos os impulsos mais proibidos e pecaminosos que existem. O ritual que encerra O Exorcismo Negro é cheio de nudez, símbolos satânicos, sexo, tortura, bebida, é um desafio a tudo, e Zé do Caixão explica que o seu ritual não respeita nem os costumes nem os tempos do mundo.
Nos dois filmes a vitória final sobre os vilões não é o suficiente para livrar o mundo do mal, pois Laurie e Marins seguem habitando o território que cria a existência de cada um dos seus destruidores. Zé do caixão de dentro da cultura e Myers como consequência dela são intermináveis enquanto as estruturas morais permanecerem. E é isso que Marins nos mostra no olhar da menina escondendo Zé do Caixão ao final do filme sob o ritmo de “Bate o sino de Belém” e dos gritos das pessoas sofrendo no inferno.
Entre o Puro e o Perverso | O Giallo de Lucio Fulci
O cinema italiano é uma das mais ricas fontes da sétima arte, com sua extensíssima gama de criadores que impulsionaram os limites do cinema, prática sob risco de extinção.
São os italianos que colocam os pés do cinema no chão com o neorealismo, mas também o destroem e reconstroem com o magnífico terror italiano. O cinema de terror, embora muito anterior ao boom italiano, é, de certa forma, revolucionado a partir dos anos 60, com o surgimento de diretores que, com distintas visões, renovam e reinventam os sentidos e sensações atrelados a filmes de terror. Três dos grandes pioneiros dessa revolução são Mario Bava, Dario Argento e Lucio Fulci: uma trindade que se opõe e se complementa.
Fulci, o autor em foco neste texto, começou sua jornada cinematográfica ainda nos anos 50, com seus primeiros trabalhos como diretor assistente, escritor, e até mesmo diretor ao fim da década. Nos anos 60, dirigiu dezenas de filmes de todos os gêneros que à época estavam em “alta” para com o seu público nacional: commedia all’italiana, spaghetti western (bang-bang à italiana), musicarello... mas foi somente na passagem da década de 60 para a de 70 que Fulci começou a realizar os trabalhos que desabrocharam a sua genialidade, por meio do terror e do suspense.
Há quem diga que o auge de Fulci como diretor foi no início dos anos 70, e há, outrossim, defensores de que o italiano alcança o pináculo da sua filmografia entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Não importa. Desde o primeiro momento em que Fulci começa a trabalhar com o suspense e o terror, os gêneros em questão passam a ser modificados para sempre. Como a temática dessa edição é referente aos filmes que antecederam Halloween (1978), esse texto focará sua análise na primeira era dourada do fulcismo.
O que diferencia Fulci dos outros mestres da tríade mencionada no início do texto é o seu total desmame de um cinema de terror convencional, em uma eterna, bagunçada procura pelo transcendental. Enquanto Dario Argento era um meticuloso formalista e Mario Bava um maestro da ecleticidade, Fulci desbrava o terror pelas suas entranhas, na depravação, no impossível, na construção de um terror fundado na eternidade, numa admiração pelo terror baseada numa fusão de corpo e tempo.
Mas toda essa teoria fulciana do terror não nasce de uma só obra, é uma construção que, de certa forma, se inicia com Uma Sobre a Outra (1969). Em seu primeiro giallo, Fulci constrói uma narrativa que homenageia Vertigo (1958), mas sustentada em decadência e tesão no estilo eurosleaze. Não é um filme de terror, mas sim de suspense, e um dos filmes paradigmáticos da era inicial dos gialli (anos 60). O gênero, que basicamente teve Mario Bava como pioneiro ainda na mesma década, deixa de ser tratado como exuberante, mas de uma forma crua – uma tendência que se repetirá em trabalhos futuros – e, embora não deixe de operar com sensualidade, isso é feito com uma lente da depravação e com um certo olhar mais naturalista. É uma prévia do que virá no futuro: Fulci como um pai do terror italiano na rota do exploitation.
Os dois gialli que seguiram são considerados como dois dos mais importantes do cinema italiano: Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher (1971) e O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos (1972). O primeiro filme, estrelado pela brasileira Florinda Bolkan, intensifica o olhar indecente já iniciado em obras anteriores tais quais o Unna sull’atra. É um filme no qual Lucio parece brincar com as possibilidades de perspectivas e da psicossexualidade, através de escolhas hipnóticas, oníricas, trêmulas, distorcidas e até mesmo lobotomizadas. É um filme que dialoga muito com a obra do seu contemporâneo Sergio Martino – que, na verdade, trabalha um pouco melhor com esse método específico. Dentre os gialli de Fulci trazidos aqui no texto, é possivelmente o menos bem sucedido, mas um que representa bem a abordagem fulciana para com o cinema: pé no acelerador, sem se contentar com miséria de ideias.
Se o Uma Lagartixa… não é desprovido de defeitos, o Segredo do Bosque…, lançado um ano depois, já está bem mais próximo de uma concepção imaculada. É um filme seminal no âmbito dos gialli e, também, do cinema de terror italiano num geral. Nessa obra, Fulci traz um dos gialli mais perversos de todos os tempos. E perversidade é, na verdade, uma característica comum do gênero, mas o diretor não traz a característica de forma gratuita, mas sim construída em pilares essenciais ao terror. O filme se sustenta no oculto, no medo do desconhecido e no preconceito, para defender sua tese da exist}encia um mal que é fruto do determinismo. É um filme essencialíssimo não só porque é um dos gialli mais complexo a serem concebidos, ou porque Bolkan e Bouchet realizam duas das mais memoráveis performances do gênero, mas também porque abre – ou escancara – as portas de uma temática que será fortemente abordada na filmografia do diretor: a busca pela definição da maldade.
Em seu último filme de suspense – com elementos de terror – pré-1978, e antes de dar início à sua ótima fase de cinema de terror “clássico” (incluindo a trilogia Gates of Hell), Fulci lança Premonição (1977). É um filme no qual ele abre mão das suas sensibilidades depravadas e se dedica totalmente à complexidade da procura e da descoberta do mal. Trabalha com as percepções da existência do mal, tanto de uma maneira psíquica – ou mental –, quanto física. Trata-se de uma obra que ainda tem os “pés no chão” quanto à temática, pois ainda é, acima de tudo, um giallo, então apenas flerta com o transcendental, esse que será abordado de forma mais aprofundada posteriormente, a partir do irretocável Zombi 2 (1979), filme a ser discutido em outra data.
O que há de se concluir é que Fulci sempre foi incansável com suas obras. Sua influência existe porque o diretor nunca deixou de ousar entender o que realmente permeava os gêneros com que trabalhou. E isso fica explícito na progressão da profundidade dos temas que ele aborda nesses filmes de gênero. Hoje em dia, a maioria dos filmes de terror “do mês” se preocupam com um “conceito” ou com “dar medo”, sendo que, no cinema italiano, muito bem representado por Fulci – e outras lendas –, a preocupação sempre foi em entender o terror, cria-lo, moldá-lo, destruí-lo e reconstruí-lo. E o fulcismo é justamente sobre compreender a essência do terror, o mal.
Barão Sanguinário | Horror em Construção
Como um filme esnobado de Mario Bava nos ajuda a traçar a rota de um gênero revolucionário
O terror é provavelmente o gênero mais famoso da sétima arte e sempre foi marcado, desde os primórdios do cinema, por suas inovadoras experimentações visuais, narrativas e tecnológicas. E mais especificamente a partir do final da década de 60, essas experimentações começaram a se desenhar em um verdadeiro ápice de nomes icônicos: é inevitável não ir de encontro uma vez na vida a John Carpenter, George A. Romero ou Roger Corman, além de marcos históricos como O Exorcista (1973) e, óbvio, Halloween (1978).
O giallo, gênero-movimento-gênese italiano, representa dentro da evolução do terror no cinema não somente um prelúdio a estes anos áureos do Slasher quanto sucesso comercial, mas também um marco de consolidação das extensões plásticas do gênero e de uma total proliferação estética desses maneirismos. No giallo, a (des)construção da imagem é representação absoluta da experiência fílmica, e esses mecanismos formais não apontam um interesse em se aprofundar numa lógica argumentativa da estética, e sim se aproveitar de uma superfície plana como uma tela em branco, usada para criar e cativar o espectador.
Assim, ainda que redigimos importantes comentários políticos e sociais sobre o filme, analisemos metáforas freudianas e tecemos grandes estudos filosóficos entre a relação dos personagens, o sentido do giallo nos filmes de Lucio Fulci, Dario Argento e Mario Bava, alguns dos nomes mais famosos do ramo, é encontrado não no texto, mas sim na hipérbole visual de uma imagem literal - uma literalidade bárbara, sensual e fantasista - que não se esquiva de sua origem espalhafatosa e ordinária vinda das revistas pulp, romances policiais de capa amarela responsáveis por inspirar o movimento.
Dentre suas principais características gerais, podemos identificar duas marcas de herança indissociáveis no terror: a primeira marca, inspirada na estrutura televisiva, consiste no clássico “whodunnit” onde o suspense motriz da história centra-se em revelar quem é o assassino. A segunda é uma forte presença simbólica no visual do assassino e na cena de assassinato, contendo nuances tão fotogênicos e imaginativos como a de um artista e sua arte: assim, tal qual uma em uma instalação, visionamos uma manifestação artística em um jogo efêmero de vida e morte, onde o corpo e o espaço são destrinchados e unificados pelo instrumento do crime, tudo performado no cenário pela vítima e pelo autor.
Mas essas heranças, de tanto serem reproduzidas, homenageadas e copiadas ao longo das décadas, foram se tornando progressivamente mais banais ao espectador, passando a ser reduzidas a um mero pastiche de cores que apenas espetaculariza acriticamente a forma do giallo. Há um certo desconforto de um olhar viciado para com estes filmes do passado que poder ser explicado por esse falso déjà vu nas referências modernas, mas também pelo impacto da transformação do gênero dos anos 2000 para cá, que passou a responder em sua maioria a uma lógica de obsessão pela matéria filmada, onde uma tácita forma tem sua função limitada a construir o universo narrativo na frente da câmera da forma mais credível possível - Sob certa ótica, o que é o found footage, se não o uso da captação mais próxima do amador possível para encontrar a expressão total deste mundo real? O que ele é, se não a expressão ao extremo do subjetivo e do assunto olhado?
E mais: apesar de toda essa insistência em prover verdade, fugimos do mundo sensível para nos escondermos no falso plano do mundo inteligível, imutável e etéreo, que pule os signos e convenções do gênero com o cristalino digital, que fortalecido pela sua narrativa, se refugia para longe da imagem em sentidos extra-diegéticos, falsas metáforas e comentários metalinguísticos. Ainda claro, como todo bom pecador, recorre aos bárbaros recursos gráficos e explícitos, mas tenta educá-los ao reproduzi-los da maneira mais verossímil possível, ao invés de, por exemplo, tentar conectar o espaço e o corpo de forma expressiva.
Tudo isso nos conduziu à supressão dos maneirismos típicos e autorais do passado, ainda que felizmente tenha ressurgido por meio de casos como Pulse (2001) de Kiyoshi Kurosawa ou A Visita (2015) de M. Night Shyamalan, no geral nos levou a uma solenidade reprodutora das convenções de gênero: os infinitos remakes e sequências absurdas, dramas psicológicos que ficam totalmente presos as imagens "metafóricas" desinteressantes, ou pífias tentativas de construir a fisicalidade da ação no terror, e até a oposição em compreender - não sei se por má vontade ou falta de capacidade - o lado caricato e erótico do terror em suas “homenagens”.
Em razão disto, retorno a este pretérito como um romântico e abro meu coração ao Giallo, que mesmo em seus filmes menos famosos e complexos, como esse que falarei a seguir, Baron Blood (1972), de Mario Bava, demonstra ser capaz de conceber realidade através do poder da imagem sem se acovardar de suas escolhas estéticas por mais absurdas que estas possam aparecer, se tornando verdadeiras marcas de um estilo passado que jamais poderá ser replicado. Um molde de manufatura que abraça artesanalmente sua artificialidade, seu lado defeituoso, artístico e humano, unindo o mistério curto e imediato da literatura policial a um visual arrebatador que, em cada detalhe cenográfico, cada cena de morte e cada trucagem realizada, revela um sadismo do autor de mostrar o grotesco como belo sem mudar sua natureza. No Giallo, não há fetiche pela imagem, mas pelo próprio assassinato. E a imagem só é como é por materializar este prazer de matar.
O Tempo e o Espaço Social como Mística do Terror
Na história, acompanhamos o jovem Peter Kleist (Antonio Cantafora), que após terminar seus estudos, quer se reconectar com o passado ancestral de sua família viajando para Áustria em busca de seu tio Dr. Karl Hummel (Massimo Girotti). Lá, ele vai ao encontro ao mito do perverso Barão Otto Von Kleist, um nobre do século XVI conhecido por métodos sádicos de tortura e empalar seus opositores nas torres de seu castelo, que agora decadente, está sendo reformado para se tornar um hotel. Fascinado pelo ocultismo, Peter juntamente com a estudante de arquitetura responsável pela preservação do castelo, Eva Arnold (Eike Sommer), entram em um ritual de bruxaria através de um antigo pergaminho de seu avô que trará novamente o Barão à vida.
Esse cenário de masmorras arcaicas e amaldiçoadas, herdadas a outros personagens é bastante familiar àqueles mais conhecedores da filmografia do diretor. A abastada família isolada de O Chicote e o Corpo (1963), o luxuoso ambiente da moda em Seis Mulheres Para o Assassino (1964) e a mansão quase abandonada em Lisa e o Diabo (1973) revelam uma constante espacial nos filmes de Mario Bava, que cerca estes espaços aristocráticos para torná-los parte de seu espetáculo de morte e decadência. Existem muitas camadas que podem explicar a razão desta escolha recorrente, a mais evidente é, claro, a riqueza visual das estruturas góticas com seus adornos pontiagudos, imponentes linhas oblíquas e a solidez de sombras pedregosas.
Mas além dessa abundância cenográfica, o que torna os cenários do filme de Bava especialmente únicos é a maneira como exercem uma função de estilo partindo de uma estrutura social. Estes cenários da alta classe, muitas vezes relacionados há tempos remotos, se afastam da realidade cotidiana, numa espécie de idealização mística da riqueza, e passam a estar em um mundo particular distorcido, um espaço de surrealidade na fronteira entre o mágico e o racional. E com este anacrônico ressurgimento, os seguintes dogmas relacionados reaparecem: não somente a recorrente presença de personagens submetidos a escalas hierárquicas dentro da narrativa, como criados, mordomos, pessoas designadas com títulos de nobreza ou mesmo aqueles com posses milionárias, mas também de uma estrutura serviçal que, a todo custo, deve saciar as vontades, desejos e ambições dos poderosos soberanos - que no caso, é o Barão Sangrento. Assim, Bava não só evoca o cenário quando esteta, mas também suas relações de poder internas.
Um detalhe que particularmente acho extremamente interessante, é como somos introduzidos a essa nova realidade de forma quase onírica, o plano ou a sequência de abertura sempre tem uma noção de deslocamento, seduzindo nossa curiosidade progressivamente até entramos de fato nesse novo mundo, tal como Alice entrou no País das Maravilhas caindo na toca do coelho. Na outra vida em Lisa e o Diabo, a narrativa inicia verdadeiramente apenas quando a personagem principal se perde durante uma visita a uma antiga cidade. E em Barão Sanguinário, acompanhamos a entrada decrescente de Peter do aeroporto até o passado medieval através da sua carruagem automobilizada.
Contudo, mesmo nos transpondo a este novo mundo passado, permanecem na história resquícios anacrônicos que não compactuam com essa nova realidade estabelecida, quase um lembrete que, com uma certa ironia sádica, faz com que essa falta de sincronia desafie nossa percepção. Há uma evocação do visual e do cenário do ocultismo medieval assim como há em Black Sunday (1960), mas aqui é chocado com elementos da modernidade, como por exemplo o vistoso guarda-roupa setentista italiano que veste nossos personagens: as padronagens combinadas, coloridas texturas aveludadas, golas altas de lã, vestidos decotados estampados e saias curtas no meio desse mundo feudal de um déspota sanguinário.
Uma curta cena do filme ilustra perfeitamente esse diálogo divertido de dissonâncias temporais. Enquanto acompanhamos o prefeito da cidade se deslocar no cavernoso castelo, essa aura antiga é interrompida pela invasão do chamativo vermelho da logo da Coca-Cola em uma máquina de refrigerantes. O prefeito para exatamente no meio do enquadramento para colocar as moedas na entrada, habitando um hiato entre mundos, onde à esquerda há a máquina e à direita há as paredes adornadas do castelo, justamente o lado do qual o Barão surge para o estrangular. Ele agarra o homem e o puxa para si com violência, obrigando a câmera a acompanhar a cena, jogando a máquina para fora de campo bruscamente.
O prefeito termina tendo seu pescoço quebrado e seu corpo enforcado exibido na escadaria, e todo esse conjunto de acontecimentos nos transmite não só o nível de crueldade do Barão para concretizar seus interesses para obter o domínio da moradia, mas também uma certa tentativa de obter vingança ao presente, a morte como punição para aquele que trouxe a presença do oposto moderno ao seu santuário.
Encantados pelo Mórbido sob a ótica do Voyeur
A presença deste encantamento, desse fascínio pelo exótico mórbido, pode ser explicada através da anatomia dos filmes de Bava. Dentre muitas escolhas de estilo magnéticas, a não tão comentada composição iguala objetos de diferentes escalas em um mesmo nível de profundidade: adornos, estátuas, móveis e pequenos objetos se aproximam dos rostos, bustos e corpos filmados, criando esse quebra-cabeça perfeitamente encaixado da simbologia gótica.
Esse jogo de texturas e elementos na tela são visionados também como forma de salientar essa hiperocupação, com grandes angulares que dobram a imagem ou planos mais alongados com uma alta profundidade de campo. E com toda essa presença elementar excessiva do cenário, seria um desperdício vê-lo sendo engolido por sombras em prol de impacto alusivo, mas, ao usar do efeito contrário, privilegiando a própria luz através de feixes coloridos e diretos, cria uma atmosfera tão equivalente quanto. Sua luz dura não só esculpe os corpos, pinta os tons e traz vida - ou, como de costume, morte - ao movimento, mas também estabelece zonas de contraste bem definidas da quais as áreas mais sombrias jamais desaparecem totalmente na penumbra, permanecendo sorrateiras na fotografia da qual, em uma visão quase infantil, notamos a presença da indefinição.
Em um memorável momento da história, temos um quadro belíssimo de Eva tentando escapar das garras do Barão, em uma imagem acentuada pelo contraluz e pelas silhuetas na neblina da noite. E, ao longo da sequência, ele cria toda uma sensação de desorientação psicológica e física, como se estivéssemos em um labirinto e percorrêssemos a mesma rua esfumaçada de paredes oblíquas e claustrofóbicas repetidas vezes.
Esse instrumento da repetição, tal como na comédia por exemplo, é necessária uma estruturação de previsibilidade antes da punchline, o prelúdio ao terror também é uma constituinte fulcral dessa construção. O roteiro sempre encontra uma forma de retornar narrativamente a ações ou espaços, como o castelo ou as cenas de assassinato consecutivas, mas maior do que uma mera lógica textual, Bava desenvolveu uma linguagem de repetição particular para ilustrar medo e desespero em seus filmes. Em uma mesma imagem, comunica o terror através do zoom e do duplo zoom, muitas vezes seguidos e em diferentes velocidades, abrindo e fechando as escalas.
Num jumpscare de aparição do Barão, um mesmo crash zoom vertiginoso em sua face é repetido 4 vezes na montagem. E afinal, por qual motivo não deveríamos mostrá-lo novamente? Por que não deixar o público enojado, mais uma vez, virar o rosto na direção contrária do mutilado Barão? Por que não repetir aquilo que nos dá prazer? Uma, duas, três, até quatro vezes, a quantidade que acharmos que for necessário. O voyeurismo intrínseco em sua filmografia é expresso também por essa estranha sensação de que Bava está nos espiando escondido enquanto aguarda nossa reação, rindo enquanto nos provoca com sua arte.
E assim como ensina Hitchcock, o mestre do suspense, onde aquele que tem prazer em olhar passa a ser o objeto olhado, Mario Bava é tarado o suficiente para revelar sua presença, saindo de seu esconderijo do espaço criador e se exibindo para nós, espectadores. São essas as marcas de autoria que a todo momento nos relembram da presença da câmera e da ação conflitante que exerce quando visiona o mundo criado.
Uma das características estéticas mais abordadas não somente no cinema do Bava, mas no Giallo, em geral, é como o assassino carrega um valor estilístico particular no seu visual e na forma como executa as cenas de assassinato, criando assim uma personalidade que guia o filme sob seu olhar. Assim, a decupagem desassocia a visão do espectador com a experiência do protagonista, nos aproximando mais do olhar do assassino do que do medo da morte das vítimas. Em vários momentos do filme, o monstro é filmado seguido de algum ângulo, preservando a posição relativa do outro personagem em cena, enquanto o contra-plano assume a perspectiva do olhar do Barão, criando um filme mais de reações horrorizadas em direção a câmera que a mera demonstração de eventos sob ótica dos personagens inseridos ali.
A cena de morte da primeira vítima do Barão, um doutor que inocentemente tenta o socorrer, é construída de uma forma que comprova essa escolha estilística dos olhares. A cena inicia com o Barão recém-invocado observando o homem pela janela, da qual assumimos o seu ponto de vista de fora da casa. E quando entra em seu consultório, todo o desenrolar da cena é constituído ou com a perspectiva assumida de sua visão, ou com ele de costas para câmera onde vemos a reação do médico, que será degolado com um Over the Shoulder pouco funcional que apenas realça a proximidade de cúmplice da câmera ao monstro. Em Bava não trememos de medo encarando o mal, e sim personificamos o seu olhar, observando escondidos junto às intenções secretas e mortíferas.
As vísceras expostas de Bava
Barão Sanguinário nos permite conhecer o diretor em suas múltiplas facetas: seu lado gráfico, psicológico, exagerado e apaixonado pela arte. E ainda que, a partir da metade do filme, desacelere e não seja capaz de ter o mesmo charme do início, finaliza tudo com uma irônica maestria. Anterior à resolução, nos é exibido na câmara de tortura a presença de um sistema de som que projeta gritos destinados a criar um ambiente de imaginação para os turistas, e depois que as vítimas do Barão ressurgem por feitiçaria para se vingar, os gritos de tortura se tornam reais. Mas ainda assim a cena não interrompe o fluxo de imaginação do espectador, pelo contrário, o instiga ao não expor imagens diretas, trabalhando com planos exteriores e interiores da construção nos quais os gritos ecoam, assim como os dizeres macabros do vilão que assinalou seu destino. “Na época do Barão, esses gritos eram autênticos. Os nossos, quem sabe… divertido não?
Para finalizar, nós, espectadores, muitas vezes acreditamos, pela forma com que entramos em um estado de submersão e envolvimento com a história, que o terror é sublime e que ele só funciona quando estamos totalmente ausentes e inconscientes de sua realização. Mas, eu também acredito que um filme de terror que assuma essa ação criadora pode ser tão envolvente quanto, afinal, o terror consiste justamente em assumir perspectivas subjetivas e individuais frente a um fato maior. Logo, quer seja a visão limitada de seus personagens ou de valores que transcendam o corpo e o espaço, todos no fim são pontos de vista incapazes de revelar e alcançar tudo. São imparciais, errantes e viciados, mas funcionam por estar em um constante movimento - de fuga, de perseguição e de deslocamento para saciar seus desejos e objetivos -, em constante construção.
E é justamente essas vísceras abertas e expostas que vemos no cinema de Mario Bava: Cada recorte da montagem não segue só uma linearidade lógica, mas sim de cortes que interrompem e pontuam a cena de acordo com ritmo e intenção, como vírgulas em uma prosa sombria que intercede essas imagens extremamente pictóricas. Em sua gramática, os velocíssimos zooms são os dois-pontos que anunciam a chegada do macabro, e as panorâmicas e travellings são como os olhares agitados percorrendo as estrofes. Os efeitos práticos que soam datados aos inspetores de plantão, as atuações fragilizadas na dublagem e o roteiro que facilmente cai para o caricato, todas são características que soam como defeitos de uma obra inacabada - mas aqui são sinônimos de uma obra em constante movimento, como uma antiga maldição que se renova, afinal jamais será perdoada.
Véspera de Halloween | O Pré Horror
Um velho tipo de medo
Como os filmes do pós horror nada mais são que parte do ciclo do gênero
É curioso imaginar que, em um mundo que cada vez menos a leitura e o estudo são encorajados, um artigo publicado em um jornal digital possa ser tão influente como o de Steve Rose.
Intitulado como os filmes de pós-horror estão tomando conta do cinema (e traduzido nesta edição da revista Outra Hora) o texto de 2017 tinha o intuito de propor uma nova categorização para uma série de filmes lançados no grande circuito na década de 2010: Babadook (2014), Corrente do Mal (2014), A Bruxa (2015), Ao Cair da Noite (2017), Corra! (2017), entre outros. Em comum entre todos estes filmes há uma rejeição pelo jumpscare, uma aproximação do drama, e a associação dos aspectos sobrenaturais com questões psicológicas e sociais.
Na maior parte do tempo, discordo do que diz o crítico brasileiro Philippe Leão, de que na pós-modernidade é impossível movimentos cinematográficos se formarem. Ao menos no que tange o agrupamento dos filmes, pois podem não ser movimentos com ementas e manifestos, mas é sempre possível reconhecer características que, em determinado recorte, parecem seguir uma busca coletiva. Goste ou não do termo, há algo assim com o pós-horror, tanto na questão estética como na aparente pose que surge de diretores que sugerem estar fazendo algo além do horror em entrevistas esnobes e auto-indulgentes.
O que acarreta nas maiores críticas feitas ao texto de Steve Rose, de que essa pose seria - e é - desrespeitosa com a própria história do gênero, um dos mais antigos, ricos e essenciais na história do cinema. Sempre fico atônito quando entra em pauta o fato de o horror (e, curiosamente, acho que só no Brasil que falamos mais "terror” que “horror”), e o gênero como um todo, não ser reconhecido na temporada de premiações norte-americana, justo um dos países que mais depende do gênero na concepção de sua identidade cinematográfica. Mais ainda quando sugerem que essa ignorância é relacionada com a idade dos votantes, sendo que Hitchcock já "sofria" com essa relutância muito antes do mais velho membro da academia ainda vivo, estar vivo.
Mas evitando divagações, pois o escopo da conversa é grande, este texto mira em dois filmes que exemplificam como, mesmo existindo (e acredito que, de fato, exista), o pós-horror nada mais é que uma tendência cíclica, na mais jovem e circular das artes.
O ACADEMICISMO DA A24
Antes disso, uma pequena parada, pois a verdade é que o termo pegou, e parece que a maior beneficiada foi a A24, produtora que se tornou análoga a esta nova tendência e que parece ter acoplado outras características que vinham se formando em anos anteriores.
Em 2007 o professor Luiz Carlos de Oliveira Jr. publicou um artigo na revista Contracampo onde comenta sobre, entre outras coisas, o academicismo da época, onde diretores estariam "imitando" os modos de cineastas como Apichatpong Weerasethakul e Hou Hsiao-hsien, mas que falta a estes diretores uma maior compreensão "filosófica" dos cineastas. O que sobra da estética deles, diz Oliveira Jr., é uma linguagem domesticada, inofensiva e acadêmica.
E é possível perceber parte deste legado estético, se é que é possível chamar de legado, em diversos filmes da A24, com alguns dos comentários feitos naquele artigo ainda ressoando no cinema de hoje.
À primeira vista, o último comentário, de que se dá mais atenção ao corpo que à psicologia, não seria condizente com os horrores de teor psicológicos associados ao termo, mas Oliveira Jr. aqui fala menos sobre os temas e mais sobre a forma, algo que pode ser melhor elucidado no comentário seguinte:
O pós-horror surge, portanto, como uma evolução natural do horror caso este entrasse em contato com o academicismo descrito neste texto, e observado ao longo do século 21. O que separa, formalmente, um drama social como Moonlight (2016) de um horror como A Bruxa? A fotografia digital, límpida e de cores lavadas, os olhares e diálogos fugidios, a relutância em verbalizar ações e pensamentos, uma suposta dramatização do cotidiano, que procura encontrar o que de mais doloroso e velado existe no tecido que rege a vida, e não necessariamente em seus acontecimentos.
O mesmo pode ser observado em Ao Cair da Noite, filme que nunca deixa claro ou encara de maneira frontal o seu aspecto sobrenatural, apostando na ambientação e tensão atmosférica criada por esse desconhecido. Mas é uma tensão ao contrário da vista em, por exemplo, O Enigma de Outro Mundo (1982), pois ela reside na internalização dos personagens e em uma suposta animosidade que cresce entre eles, mas que nunca aflora.
De certo modo, é como se os diretores se recusassem a abraçar a iconografia do gênero de frente, deixando seus conflitos e confrontos ou velados ou mesmo de fora do que assistimos em tela. Uma atmosfera que se vende por si própria, e não como parte integral dos acontecimentos do filme.
VÉSPERA DE HALLOWEEN
A partir disso, e antes do que vem depois, é importante contextualizar o próprio título desta edição.
Halloween (1978) foi um divisor de águas no cinema de horror norte-americano, e não apenas por sua influência nos filmes feitos a partir de então. A popularização do slasher viu títulos e mais títulos se somarem, e uma pletora de personagens (Freddy Krueger, Jason, O Grito) entrarem para o imaginário popular, mas foi mesmo o impacto que causou na espectatorialidade do cinema de horror que promoveu uma reconfiguração deste imaginário.
Nestes últimos 40 anos, os clichês mais repetidos são relacionáveis às principais características não do horror em si, mas dos slasher: as situações absurdas, as ligações noturnas, os vilões imortais, a matança, as final girls.
E logo esse aspecto histórico se torna também um aspecto cultural, essencial na assimilação e aceitação do pós-horror como gênero comercial e artístico. Acostumados com um suposto cinema, assim que um grupo de filmes vem quebrar suas supostas convenções, a história nos ensina que a tendência é de fascínio por parte das audiências. Unimos isso à necessidade da era da democracia digital de expressar opiniões marcantes, e os filmes da A24 se tornam os melhores filmes de horror da história porque - VOLTEMOS AO INÍCIO DO TEXTO.
Mas o que reside para trás (e, se olhar bem, durante) deste quase meio século, desde o lançamento do monumental filme de John Carpenter, são filmes que se adequariam à nova categorização, ao menos quando falamos nos temas que abordam. Existiria, então, um pré-horror?
Meu palpite é que, do ponto de vista de aproximar estes filmes a fim de categorizá-los em um grupo, não, não existe. Mas, de volta ao assunto da espectatorialidade, da percepção pública e crítica, e dos filmes que quebram a bolha do gênero e da cinefilia, é possível dizer que sim. O horror sempre foi e seguirá sendo um dos gêneros mais criativos do cinema mas talvez, antes de Halloween se tornar a norma, a norma era mais variada e eclética. Hollywood tinha menos controle da popularidade mundial do gênero - controle esse que só foi desafiado pelo Japão nos anos 90, desde então.
Agora, para desbancar os conceitos desenvolvidos na caverna de Platão, falemos do que está nas telas, pois uma das bases do pós-horror reside na suposta elevação, da maior importância que se dá para filmes que usam o gênero para comentar aspectos sociais e psicológicos. E aqui poderíamos voltar ao Expressionismo Alemão, e seus Estudantes de Praga (1913) e Doutor Caligari (1920), ou a Victor Sjostrom e sua Carruagem Fantasma (1921) ou a Carl T. Dreyer e seu Vampyr (1932). Mas estamos falando da véspera, do horror como era antes deste se tornar o que se tornou para que o pós-horror pudesse ser batizado.
O MITO DA ORIGINALIDADE
Comecemos com Ari Aster, talvez o nome mais atrelado ao termo cunhado por Steve Rose e seus filmes Hereditário (2018) e Midsommar (2019). Uma rápida, rápida pesquisa é o suficiente para encontrar as teorias de porque um é o filme de terror perfeito, e outro é um dos filmes mais em contato com uma suposta nova onda hippie (ou, atualizando, indie).
Em artigo nesta edição, falo sobre Midsommar contraposto a O Homem de Palha (1973), do britânico Robin Hardy, então neste vamos ficar com Hereditário que, de acordo com o próprio Ari Aster, tenta se alocar para o “sub-gênero”, e foi pensado como um drama familiar.
No longa, após a morte da mãe, Annie descobre o envolvimento da matriarca da família com cultos satanistas e como ela e os filhos estariam ligados a uma corrente de eventos inevitáveis. O assunto não é novidade, por óbvio, e o que torna o filme membro da nova leva (não chamemos de onda) é como a deterioração psicológica da personagem vivida por Toni Collette é relacionada com a tragédia familiar. Ao invés de sustos e suspense, o que Aster cria é um tom lúgubre, que recai em ações cotidianas da família (tema representado na profissão da protagonista, uma artista de miniaturas) e que engole até mesmo o aspecto gráfico e corporal do filme.
Voltemos então para Inverno de Sangue em Veneza (1973), de Nicolas Roeg (e pulemos o mais óbvio O Exorcista, do mesmo ano), filme de drama matrimonial disfarçado de horror, e que coloca as instabilidades psicológicas do casal ante um suposto legado sobrenatural velado na cidade imersa em águas. Em como a morte de sua filha influencia na maneira que estes vem o mundo - ou seja, na maneira que o filme é apresentado. Roeg utiliza a geografia e arquitetura de Veneza, uma cidade histórica e culturalmente rica mas degradada e com um tom natural de umidade e putrefação, como modo de integrar os aspectos góticos que compõem o tom do filme. Por mais que o horror seja abordado de maneira ilusória e experimental, há uma dialogação intrínseca com o gênero.
Já Ari Aster nunca pratica essa conversa. Por mais que tenham, ambos os filmes mencionados, esse apelo gráfico (a cena do poste e a do suicídio, por exemplo), o diretor parece filmar no limiar para que seus filmes nunca sejam "só" exemplares do gênero. Como se, antes de chegar no horror, houvesse uma camada de “drama psicológico”, ou “colisão cultural”, no caso de Midsommar. Diferentemente de O Homem de Palha, que na sua forma, na maneira como apresenta seu mundo, se aproxima da comédia, e do filme de Roeg que se aproxima do drama e do romance.
A grande questão é que, sem essa necessidade de se provar um "filme sério", os filmes podiam só ser.
Pensemos então em A Bruxa, de Robert Eggers, e mesmo em seu O Farol (2019). Filmes onde o cineasta trabalha com a ideia da ambientação, em ambientar tanto os seus filmes que estes se tornam abstratos em seus significados mais diretos. E lembremos novamente do filme de Dreyer, sobre um estudante de ocultismo que encontra traços de vampirismo em uma vila isolada. Longa que, feito com som mas tratado como um filme mudo, é também construído em torno de sua atmosfera, e atinge níveis de abstração até incomuns para a filmografia do dinamarquês (ao menos em relação à narrativa, pois pode ser discutido que todos os filmes de Dreyer trabalham com a ideia de abstração)
Mas, para ficar no nosso recorte, vamos parar em Todas as Cores do Medo (1972), do Italiano Sergio Martino. No filme, após sofrer um acidente de carro que resulta em um aborto, Jane encontra alento em sua nova vizinha, Mary, que a leva para um evento de seu culto. Martino também circula em torno da figura do sobrenatural, também ambienta seu filme em uma atmosfera carregada nas cores rebuscadas e granuladas do celuloide, mas também não se impede de apelar para resoluções mais gráficas e diretas, iniciando o filme com nudez (o que, hoje, seria considerado apelação) e mostrando a ação prática do culto.
Outra incidência do pós-horror é como este usa o gênero para comentar aspectos sociais. Um filme como Corra! só poderia ser feito em 2017, mas não se pode esquecer que Hitchcock já fazia comentários ácidos sobre a configuração demográfica dos Estados Unidos desde Um Barco e Nove Destinos (1939), Jacques Torneur já falava sobre xenofobia e colonização em Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943), e de que George Romero trouxe esta mesma configuração para A Noite Dos Mortos Vivos (1968).
O que não falta ao horror, como gênero, é variedade. É discutível, inclusive, que talvez seja o único grande gênero norte-americano que não se tornou um comentário em si mesmo, graças às constantes transformações pela qual passa. O pós-horror, muito longe de ser uma “elevação”, é mais uma delas.
O Horror Contemporâneo e Contracultural de Tobe Hooper
Com O Massacre da Serra Elétrica, Hooper reflete um estado de espírito e visualiza novas possibilidades para um gênero em constante reinvenção
Lembro da primeira vez que vi O Massacre da Serra Elétrica (1974). Tinha 15 anos e adorava filmes de terror, mas na época estava mais acostumada a assistir os blockbusters. Com isso, acabei vendo a linha do tempo do gênero de trás pra frente e minhas únicas experiências com filmes slasher foram Chucky, Sexta-Feira 13 e A Hora do Pesadelo.
Comecei a ver, e de início achei tudo exageradamente tosco (vale destacar que eu era adolescente). Os diálogos sem pé nem cabeça juntamente com a ideia vazia de viajar ao Texas para ver o túmulo do avô com um grupo de amigos era algo que não me desceu durante os primeiros trinta minutos.
E então, se iniciou a carnificina. Fiquei paralisada. E nem sei se é a palavra certa pra isso, mas foi como me senti. Após o filme, sentei e repassei em minha mente como todas as formas da obra se encaixavam com os clássicos dos anos 80 que eu adorava. Foi como estudar história.
É fato que O Massacre da Serra Elétrica marcou época com as inovações surgidas do baixo orçamento. Logo, também é verdade que o longa foi imprescindível para a nova fase do horror no cinema, uma fase mais gráfica e sanguinária que, nas mãos de Tobe Hooper, parecia um projeto de contra cultura.
Há quem veja o vilão e sua família como uma sátira ao governo dos Estados Unidos, o perigo mascarado fazendo coisas inimagináveis tanto abertamente quanto às escondidas. Os anos 70 no país foram marcados por crises políticas, sociais e culturais. A Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate minaram a confiança do público nas instituições, e o cinema não ficou imune a esses eventos. Com o fim dos anos 60 e a crise de otimismo da potência norte-americana, o horror voltou a explorar de maneira mais profunda os medos coletivos. Os filmes passaram a canalizar os receios reais que permeavam a sociedade, trocando os monstros fantasiosos pelos horrores mais próximos da realidade, como a violência e a desordem social.
Portanto, a desconstrução do "sonho americano" fez filmes como A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e O Exorcista (1973) mostrarem um público cada vez mais disposto a encarar narrativas ousadas e perturbadoras, em que o sobrenatural se mesclava com o realismo cru, criando um novo tipo de terror psicológico e visceral que, hoje, chamam de pós-horror.
É nesse contexto que O Massacre da Serra Elétrica emerge como um reflexo da alienação e da desesperança da época. Tobe Hooper utiliza um cenário rural desolado para simbolizar a ruptura entre o mundo urbano moderno e um interior esquecido e brutal. Assim, o filme retrata com clareza as falhas de uma sociedade à beira do colapso. Leatherface é assustador por ser humano — um produto de uma sociedade distorcida e falha.
O experimentalismo de Tobe Hooper em meio às fórmulas da época
Com um orçamento apertado, Hooper evitou muitos artifícios mais tradicionais do gênero. O uso de câmeras tremidas e a escolha de cores opacas e “sujas” intensificam a sensação de desconforto da realidade. Além disso, com a ausência de uma trilha sonora convencional, Tobe Hooper procurou alternar cenas de horror psicológico, gore e semelhantes criando um ambiente visual e sonoro imersivo, com sons do ambiente e a angustiante motosserra (e não serra elétrica).
E essa impressão da falta de sofisticação técnica acabou se tornando uma das grandes forças do filme, aproximando-o de um estilo quase documental, que sugere que os eventos narrados poderiam ser reais - o filme certamente é um dos precursores do found footage.
Essa estética de filme independente da época também refletia um desejo crescente de desafiar as normas da produção cinematográfica já predominantes. O que ajudou a abrir espaço para uma maior liberdade criativa e encorajou outros diretores a explorarem estilos próprios e ousados dentro do gênero.
Enquanto o filme de Hooper explorava o horror físico e brutal, outros filmes da época, como O Exorcista (1973 ) e Carrie (1976), mergulhavam no horror sobrenatural e religioso. Essa pluralidade de abordagens reflete como o cinema de terror dos anos de 1970 era uma verdadeira arena de experimentação. Diretores como Hooper aproveitaram esse momento para quebrar convenções e explorar novas formas de perturbar e envolver a sociedade diante de todo aquele caos. Não havia um único "jeito certo" de contar histórias de horror, e ainda não há.