Entre o Puro e o Perverso | O Giallo de Lucio Fulci

O cinema italiano é uma das mais ricas fontes da sétima arte, com sua extensíssima gama de criadores que impulsionaram os limites do cinema, prática sob risco de extinção.

São os italianos que colocam os pés do cinema no chão com o neorealismo, mas também o destroem e reconstroem com o magnífico terror italiano. O cinema de terror, embora muito anterior ao boom italiano, é, de certa forma, revolucionado a partir dos anos 60, com o surgimento de diretores que, com distintas visões, renovam e reinventam os sentidos e sensações atrelados a filmes de terror. Três dos grandes pioneiros dessa revolução são Mario Bava, Dario Argento e Lucio Fulci: uma trindade que se opõe e se complementa.

Fulci, o autor em foco neste texto, começou sua jornada cinematográfica ainda nos anos 50, com seus primeiros trabalhos como diretor assistente, escritor, e até mesmo diretor ao fim da década. Nos anos 60, dirigiu dezenas de filmes de todos os gêneros que à época estavam em “alta” para com o seu público nacional: commedia all’italiana, spaghetti western (bang-bang à italiana), musicarello... mas foi somente na passagem da década de 60 para a de 70 que Fulci começou a realizar os trabalhos que desabrocharam a sua genialidade, por meio do terror e do suspense.

Há quem diga que o auge de Fulci como diretor foi no início dos anos 70, e há, outrossim, defensores de que o italiano alcança o pináculo da sua filmografia entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Não importa. Desde o primeiro momento em que Fulci começa a trabalhar com o suspense e o terror, os gêneros em questão passam a ser modificados para sempre. Como a temática dessa edição é referente aos filmes que antecederam Halloween (1978), esse texto focará sua análise na primeira era dourada do fulcismo.

O que diferencia Fulci dos outros mestres da tríade mencionada no início do texto é o seu total desmame de um cinema de terror convencional, em uma eterna, bagunçada procura pelo transcendental. Enquanto Dario Argento era um meticuloso formalista e Mario Bava um maestro da ecleticidade, Fulci desbrava o terror pelas suas entranhas, na depravação, no impossível, na construção de um terror fundado na eternidade, numa admiração pelo terror baseada numa fusão de corpo e tempo.

Mas toda essa teoria fulciana do terror não nasce de uma só obra, é uma construção que, de certa forma, se inicia com Uma Sobre a Outra (1969). Em seu primeiro giallo, Fulci constrói uma narrativa que homenageia Vertigo (1958), mas sustentada em decadência e tesão no estilo eurosleaze. Não é um filme de terror, mas sim de suspense, e um dos filmes paradigmáticos da era inicial dos gialli (anos 60). O gênero, que basicamente teve Mario Bava como pioneiro ainda na mesma década, deixa de ser tratado como exuberante, mas de uma forma crua – uma tendência que se repetirá em trabalhos futuros – e, embora não deixe de operar com sensualidade, isso é feito com uma lente da depravação e com um certo olhar mais naturalista. É uma prévia do que virá no futuro: Fulci como um pai do terror italiano na rota do exploitation.

Os dois gialli que seguiram são considerados como dois dos mais importantes do cinema italiano: Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher (1971) e O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos (1972). O primeiro filme, estrelado pela brasileira Florinda Bolkan, intensifica o olhar indecente já iniciado em obras anteriores tais quais o Unna sull’atra. É um filme no qual Lucio parece brincar com as possibilidades de perspectivas e da psicossexualidade, através de escolhas hipnóticas, oníricas, trêmulas, distorcidas e até mesmo lobotomizadas. É um filme que dialoga muito com a obra do seu contemporâneo Sergio Martino – que, na verdade, trabalha um pouco melhor com esse método específico. Dentre os gialli de Fulci trazidos aqui no texto, é possivelmente o menos bem sucedido, mas um que representa bem a abordagem fulciana para com o cinema:  pé no acelerador, sem se contentar com miséria de ideias.

Se o Uma Lagartixa… não é desprovido de defeitos, o Segredo do Bosque…, lançado um ano depois, já está bem mais próximo de uma concepção imaculada. É um filme seminal no âmbito dos gialli e, também, do cinema de terror italiano num geral. Nessa obra, Fulci traz um dos gialli mais perversos de todos os tempos. E perversidade é, na verdade, uma característica comum do gênero, mas o diretor não traz a característica de forma gratuita, mas sim construída em pilares essenciais ao terror. O filme se sustenta no oculto, no medo do desconhecido e no preconceito, para defender sua tese da exist}encia um mal que é fruto do determinismo. É um filme essencialíssimo não só porque é um dos gialli mais complexo a serem concebidos, ou porque Bolkan e Bouchet realizam duas das mais memoráveis performances do gênero, mas também porque abre – ou escancara – as portas de uma temática que será fortemente abordada na filmografia do diretor: a busca pela definição da maldade.

Em seu último filme de suspense – com elementos de terror – pré-1978, e antes de dar início à sua ótima fase de cinema de terror “clássico” (incluindo a trilogia Gates of Hell), Fulci lança Premonição (1977). É um filme no qual ele abre mão das suas sensibilidades depravadas e se dedica totalmente à complexidade da procura e da descoberta do mal. Trabalha com as percepções da existência do mal, tanto de uma maneira psíquica – ou mental –, quanto física. Trata-se de uma obra que ainda tem os “pés no chão” quanto à temática, pois ainda é, acima de tudo, um giallo, então apenas flerta com o transcendental, esse que será abordado de forma mais aprofundada posteriormente, a partir do irretocável Zombi 2 (1979), filme a ser discutido em outra data.

O que há de se concluir é que Fulci sempre foi incansável com suas obras. Sua influência existe porque o diretor nunca deixou de ousar entender o que realmente permeava os gêneros com que trabalhou. E isso fica explícito na progressão da profundidade dos temas que ele aborda nesses filmes de gênero. Hoje em dia, a maioria dos filmes de terror “do mês” se preocupam com um “conceito” ou com “dar medo”, sendo que, no cinema italiano, muito bem representado por Fulci – e outras lendas –, a preocupação sempre foi em entender o terror, cria-lo, moldá-lo, destruí-lo e reconstruí-lo. E o fulcismo é justamente sobre compreender a essência do terror, o mal.

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