Barão Sanguinário | Horror em Construção

Como um filme esnobado de Mario Bava nos ajuda a traçar a rota de um gênero revolucionário


O terror é provavelmente o gênero mais famoso da sétima arte e sempre foi marcado, desde os primórdios do cinema, por suas inovadoras experimentações visuais, narrativas e tecnológicas. E mais especificamente a partir do final da década de 60, essas experimentações começaram a se desenhar em um verdadeiro ápice de nomes icônicos: é inevitável não ir de encontro uma vez na vida a John Carpenter, George A. Romero ou Roger Corman, além de marcos históricos como O Exorcista (1973) e, óbvio, Halloween (1978).

O giallo, gênero-movimento-gênese italiano, representa dentro da evolução do terror no cinema não somente um prelúdio a estes anos áureos do Slasher quanto sucesso comercial, mas também um marco de consolidação das extensões plásticas do gênero e de uma total proliferação estética desses maneirismos. No giallo, a (des)construção da imagem é representação absoluta da experiência fílmica, e esses mecanismos formais não apontam um interesse em se aprofundar numa lógica argumentativa da estética, e sim se aproveitar de uma superfície plana como uma tela em branco, usada para criar e cativar o espectador. 

Assim, ainda que redigimos importantes comentários políticos e sociais sobre o filme, analisemos metáforas freudianas e tecemos grandes estudos filosóficos entre a relação dos personagens, o sentido do giallo nos filmes de Lucio Fulci, Dario Argento e Mario Bava, alguns dos nomes mais famosos do ramo, é encontrado não no texto, mas sim na hipérbole visual de uma imagem literal - uma literalidade bárbara, sensual e fantasista - que não se esquiva de sua origem espalhafatosa e ordinária vinda das revistas pulp, romances policiais de capa amarela responsáveis por inspirar o movimento.

Dentre suas principais características gerais, podemos identificar duas marcas de herança indissociáveis no terror: a primeira marca, inspirada na estrutura televisiva, consiste no clássico “whodunnit” onde o suspense motriz da história centra-se em revelar quem é o assassino. A segunda é uma forte presença simbólica no visual do assassino e na cena de assassinato, contendo nuances tão fotogênicos e imaginativos como a de um artista e sua arte: assim, tal qual uma em uma instalação, visionamos uma manifestação artística em um jogo efêmero de vida e morte, onde o corpo e o espaço são destrinchados e unificados pelo instrumento do crime, tudo performado no cenário pela vítima e pelo autor.

Mas essas heranças, de tanto serem reproduzidas, homenageadas e copiadas ao longo das décadas, foram se tornando progressivamente mais banais ao espectador, passando a ser reduzidas a um mero pastiche de cores que apenas espetaculariza acriticamente a forma do giallo. Há um certo desconforto de um olhar viciado para com estes filmes do passado que poder ser explicado por esse falso déjà vu nas referências modernas, mas também pelo impacto da transformação do gênero dos anos 2000 para cá, que passou a responder em sua maioria a uma lógica de obsessão pela matéria filmada, onde uma tácita forma tem sua função limitada a construir o universo narrativo na frente da câmera da forma mais credível possível - Sob certa ótica, o que é o found footage, se não o uso da captação mais próxima do amador possível para encontrar a expressão total deste mundo real? O que ele é, se não a expressão ao extremo do subjetivo e do assunto olhado?

“Entre o moderno e o arcaico, a ambiguidade do espaço hierarquizado no cinema de Bava dita a forma e a estrutura do terror numa lógica de surrealidade”

E mais: apesar de toda essa insistência em prover verdade, fugimos do mundo sensível para nos escondermos no falso plano do mundo inteligível, imutável e etéreo, que pule os signos e convenções do gênero com o cristalino digital, que fortalecido pela sua narrativa, se refugia para longe da imagem em sentidos extra-diegéticos, falsas metáforas e comentários metalinguísticos. Ainda claro, como todo bom pecador, recorre aos bárbaros recursos gráficos e explícitos, mas tenta educá-los ao reproduzi-los da maneira mais verossímil possível, ao invés de, por exemplo, tentar conectar o espaço e o corpo de forma expressiva. 

Tudo isso nos conduziu à supressão dos maneirismos típicos e autorais do passado, ainda que felizmente tenha ressurgido por meio de casos como Pulse (2001) de Kiyoshi Kurosawa ou A Visita (2015) de M. Night Shyamalan, no geral nos levou a uma solenidade reprodutora das convenções de gênero: os infinitos remakes e sequências absurdas, dramas psicológicos que ficam totalmente presos as imagens "metafóricas" desinteressantes, ou pífias tentativas de construir a fisicalidade da ação no terror, e até a oposição em compreender - não sei se por má vontade ou falta de capacidade - o lado caricato e erótico do terror em suas “homenagens”. 

Em razão disto, retorno a este pretérito como um romântico e abro meu coração ao Giallo, que mesmo em seus filmes menos famosos e complexos, como esse que falarei a seguir, Baron Blood (1972), de Mario Bava, demonstra ser capaz de conceber realidade através do poder da imagem sem se acovardar de suas escolhas estéticas por mais absurdas que estas possam aparecer, se tornando verdadeiras marcas de um estilo passado que jamais poderá ser replicado. Um molde de manufatura que abraça artesanalmente sua artificialidade, seu lado defeituoso, artístico e humano, unindo o mistério curto e imediato da literatura policial a um visual arrebatador que, em cada detalhe cenográfico, cada cena de morte e cada trucagem realizada, revela um sadismo do autor de mostrar o grotesco como belo sem mudar sua natureza. No Giallo, não há fetiche pela imagem, mas pelo próprio assassinato. E a imagem só é como é por materializar este prazer de matar. 


O Tempo e o Espaço Social como Mística do Terror

Na história, acompanhamos o jovem Peter Kleist (Antonio Cantafora), que após terminar seus estudos, quer se reconectar com o passado ancestral de sua família viajando para Áustria em busca de seu tio Dr. Karl Hummel (Massimo Girotti). Lá, ele vai ao encontro ao mito do perverso Barão Otto Von Kleist, um nobre do século XVI conhecido por métodos sádicos de tortura e empalar seus opositores nas torres de seu castelo, que agora decadente, está sendo reformado para se tornar um hotel. Fascinado pelo ocultismo, Peter juntamente com a estudante de arquitetura responsável pela preservação do castelo, Eva Arnold (Eike Sommer), entram em um ritual de bruxaria através de um antigo pergaminho de seu avô que trará novamente o Barão à vida.

Esse cenário de masmorras arcaicas e amaldiçoadas, herdadas a outros personagens é bastante familiar àqueles mais conhecedores da filmografia do diretor. A abastada família isolada de O Chicote e o Corpo (1963), o luxuoso ambiente da moda em Seis Mulheres Para o Assassino (1964) e a mansão quase abandonada em Lisa e o Diabo (1973) revelam uma constante espacial nos filmes de Mario Bava, que cerca estes espaços aristocráticos para torná-los parte de seu espetáculo de morte e decadência. Existem muitas camadas que podem explicar a razão desta escolha recorrente, a mais evidente é, claro, a riqueza visual das estruturas góticas com seus adornos pontiagudos, imponentes linhas oblíquas e a solidez de sombras pedregosas. 

Mas além dessa abundância cenográfica, o que torna os cenários do filme de Bava especialmente únicos é a maneira como exercem uma função de estilo partindo de uma estrutura social. Estes cenários da alta classe, muitas vezes relacionados há tempos remotos, se afastam da realidade cotidiana, numa espécie de idealização mística da riqueza, e passam a estar em um mundo particular distorcido, um espaço de surrealidade na fronteira entre o mágico e o racional. E com este anacrônico ressurgimento, os seguintes dogmas relacionados reaparecem: não somente a recorrente presença de personagens submetidos a escalas hierárquicas dentro da narrativa, como criados, mordomos, pessoas designadas com títulos de nobreza ou mesmo aqueles com posses milionárias, mas também de uma estrutura serviçal que, a todo custo, deve saciar as vontades, desejos e ambições dos poderosos soberanos - que no caso, é o Barão Sangrento. Assim, Bava não só evoca o cenário quando esteta, mas também suas relações de poder internas. 

Um detalhe que particularmente acho extremamente interessante, é como somos introduzidos a essa nova realidade de forma quase onírica, o plano ou a sequência de abertura sempre tem uma noção de deslocamento, seduzindo nossa curiosidade progressivamente até entramos de fato nesse novo mundo, tal como Alice entrou no País das Maravilhas caindo na toca do coelho. Na outra vida em Lisa e o Diabo, a narrativa inicia verdadeiramente apenas quando a personagem principal se perde durante uma visita a uma antiga cidade. E em Barão Sanguinário, acompanhamos a entrada decrescente de Peter do aeroporto até o passado medieval através da sua carruagem automobilizada. 

O exótico visual gótico é visionado com sadismo pelo espectador e pelo autor

Contudo, mesmo nos transpondo a este novo mundo passado, permanecem na história resquícios anacrônicos que não compactuam com essa nova realidade estabelecida, quase um lembrete que, com uma certa ironia sádica, faz com que essa falta de sincronia desafie nossa percepção. Há uma evocação do visual e do cenário do ocultismo medieval assim como há em Black Sunday (1960), mas aqui é chocado com elementos da modernidade, como por exemplo o vistoso guarda-roupa setentista italiano que veste nossos personagens: as padronagens combinadas, coloridas texturas aveludadas, golas altas de lã, vestidos decotados estampados e saias curtas no meio desse mundo feudal de um déspota sanguinário. 

Uma curta cena do filme ilustra perfeitamente esse diálogo divertido de dissonâncias temporais. Enquanto acompanhamos o prefeito da cidade se deslocar no cavernoso castelo, essa aura antiga é interrompida pela invasão do chamativo vermelho da logo da Coca-Cola em uma máquina de refrigerantes. O prefeito para exatamente no meio do enquadramento para colocar as moedas na entrada, habitando um hiato entre mundos, onde à esquerda há a máquina e à direita há as paredes adornadas do castelo, justamente o lado do qual o Barão surge para o estrangular. Ele agarra o homem e o puxa para si com violência, obrigando a câmera a acompanhar a cena, jogando a máquina para fora de campo bruscamente. 

O prefeito termina tendo seu pescoço quebrado e seu corpo enforcado exibido na escadaria, e todo esse conjunto de acontecimentos nos transmite não só o nível de crueldade do Barão para concretizar seus interesses para obter o domínio da moradia, mas também uma certa tentativa de obter vingança ao presente, a morte como punição para aquele que trouxe a presença do oposto moderno ao seu santuário.


Encantados pelo Mórbido sob a ótica do Voyeur

A sedutora encenação de Bava e seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico, voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a mórbida obsessão do público com a violência.
— Troy Howarth em The Haunted World of Mario Bava, disponibilizado pela Revista Contracampo

A presença deste encantamento, desse fascínio pelo exótico mórbido, pode ser explicada através da anatomia dos filmes de Bava. Dentre muitas escolhas de estilo magnéticas, a não tão comentada composição iguala objetos de diferentes escalas em um mesmo nível de profundidade: adornos, estátuas, móveis e pequenos objetos se aproximam dos rostos, bustos e corpos filmados, criando esse quebra-cabeça perfeitamente encaixado da simbologia gótica. 

Esse jogo de texturas e elementos na tela são visionados também como forma de salientar essa hiperocupação, com grandes angulares que dobram a imagem ou planos mais alongados com uma alta profundidade de campo. E com toda essa presença elementar excessiva do cenário, seria um desperdício vê-lo sendo engolido por sombras em prol de impacto alusivo, mas, ao usar do efeito contrário, privilegiando a própria luz através de feixes coloridos e diretos, cria uma atmosfera tão equivalente quanto. Sua luz dura não só esculpe os corpos, pinta os tons e traz vida - ou, como de costume, morte - ao movimento, mas também estabelece zonas de contraste bem definidas da quais as áreas mais sombrias jamais desaparecem totalmente na penumbra, permanecendo sorrateiras na fotografia da qual, em uma visão quase infantil, notamos a presença da indefinição.

Em um memorável momento da história, temos um quadro belíssimo de Eva tentando escapar das garras do Barão, em uma imagem acentuada pelo contraluz e pelas silhuetas na neblina da noite. E, ao longo da sequência, ele cria toda uma sensação de desorientação psicológica e física, como se estivéssemos em um labirinto e percorrêssemos a mesma rua esfumaçada de paredes oblíquas e claustrofóbicas repetidas vezes. 

Esse instrumento da repetição, tal como na comédia por exemplo, é necessária uma estruturação de previsibilidade antes da punchline, o prelúdio ao terror também é uma constituinte fulcral dessa construção. O roteiro sempre encontra uma forma de retornar narrativamente a ações ou espaços, como o castelo ou as cenas de assassinato consecutivas, mas maior do que uma mera lógica textual, Bava desenvolveu uma linguagem de repetição particular para ilustrar medo e desespero em seus filmes. Em uma mesma imagem, comunica o terror através do zoom e do duplo zoom, muitas vezes seguidos e em diferentes velocidades, abrindo e fechando as escalas. 

Num jumpscare de aparição do Barão, um mesmo crash zoom vertiginoso em sua face é repetido 4 vezes na montagem. E afinal, por qual motivo não deveríamos mostrá-lo novamente? Por que não deixar o público enojado, mais uma vez, virar o rosto na direção contrária do mutilado Barão? Por que não repetir aquilo que nos dá prazer? Uma, duas, três, até quatro vezes, a quantidade que acharmos que for necessário. O voyeurismo intrínseco em sua filmografia é expresso também por essa estranha sensação de que Bava está nos espiando escondido enquanto aguarda nossa reação, rindo enquanto nos provoca com sua arte.

E assim como ensina Hitchcock, o mestre do suspense, onde aquele que tem prazer em olhar passa a ser o objeto olhado, Mario Bava é tarado o suficiente para revelar sua presença, saindo de seu esconderijo do espaço criador e se exibindo para nós, espectadores. São essas as marcas de autoria que a todo momento nos relembram da presença da câmera e da ação conflitante que exerce quando visiona o mundo criado.

Uma das características estéticas mais abordadas não somente no cinema do Bava, mas no Giallo, em geral, é como o assassino carrega um valor estilístico particular no seu visual e na forma como executa as cenas de assassinato, criando assim uma personalidade que guia o filme sob seu olhar. Assim, a decupagem desassocia a visão do espectador com a experiência do protagonista, nos aproximando mais do olhar do assassino do que do medo da morte das vítimas. Em vários momentos do filme, o monstro é filmado seguido de algum ângulo, preservando a posição relativa do outro personagem em cena, enquanto o contra-plano assume a perspectiva do olhar do Barão, criando um filme mais de reações horrorizadas em direção a câmera que a mera demonstração de eventos sob ótica dos personagens inseridos ali. 

A cena de morte da primeira vítima do Barão, um doutor que inocentemente tenta o socorrer, é construída de uma forma que comprova essa escolha estilística dos olhares. A cena inicia com o Barão recém-invocado observando o homem pela janela, da qual assumimos o seu ponto de vista de fora da casa. E quando entra em seu consultório, todo o desenrolar da cena é constituído ou com a perspectiva assumida de sua visão, ou com ele de costas para câmera onde vemos a reação do médico, que será degolado com um Over the Shoulder pouco funcional que apenas realça a proximidade de cúmplice da câmera ao monstro. Em Bava não trememos de medo encarando o mal, e sim personificamos o seu olhar, observando escondidos junto às intenções secretas e mortíferas.


As vísceras expostas de Bava 

Barão Sanguinário nos permite conhecer o diretor em suas múltiplas facetas: seu lado gráfico, psicológico, exagerado e apaixonado pela arte. E ainda que, a partir da metade do filme, desacelere e não seja capaz de ter o mesmo charme do início, finaliza tudo com uma irônica maestria. Anterior à resolução, nos é exibido na câmara de tortura a presença de um sistema de som que projeta gritos destinados a criar um ambiente de imaginação para os turistas, e depois que as vítimas do Barão ressurgem por feitiçaria para se vingar, os gritos de tortura se tornam reais. Mas ainda assim a cena não interrompe o fluxo de imaginação do espectador, pelo contrário, o instiga ao não expor imagens diretas, trabalhando com planos exteriores e interiores da construção nos quais os gritos ecoam, assim como os dizeres macabros do vilão que assinalou seu destino. “Na época do Barão, esses gritos eram autênticos. Os nossos, quem sabe… divertido não?

Para finalizar, nós, espectadores, muitas vezes acreditamos, pela forma com que entramos em um estado de submersão e envolvimento com a história, que o terror é sublime e que ele só funciona quando estamos totalmente ausentes e inconscientes de sua realização. Mas, eu também acredito que um filme de terror que assuma essa ação criadora pode ser tão envolvente quanto, afinal, o terror consiste justamente em assumir perspectivas subjetivas e individuais frente a um fato maior. Logo, quer seja a visão limitada de seus personagens ou de valores que transcendam o corpo e o espaço, todos no fim são pontos de vista incapazes de revelar e alcançar tudo. São imparciais, errantes e viciados, mas funcionam por estar em um constante movimento - de fuga, de perseguição e de deslocamento para saciar seus desejos e objetivos -, em constante construção.

E é justamente essas vísceras abertas e expostas que vemos no cinema de Mario Bava: Cada recorte da montagem não segue só uma linearidade lógica, mas sim de cortes que interrompem e pontuam a cena de acordo com ritmo e intenção, como vírgulas em uma prosa sombria que intercede essas imagens extremamente pictóricas. Em sua gramática, os velocíssimos zooms são os dois-pontos que anunciam a chegada do macabro, e as panorâmicas e travellings são como os olhares agitados percorrendo as estrofes. Os efeitos práticos que soam datados aos inspetores de plantão, as atuações fragilizadas na dublagem e o roteiro que facilmente cai para o caricato, todas são características que soam como defeitos de uma obra inacabada - mas aqui são sinônimos de uma obra em constante movimento, como uma antiga maldição que se renova, afinal jamais será perdoada.

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