Véspera de Halloween | O Pré Horror
Um velho tipo de medo
Como os filmes do pós horror nada mais são que parte do ciclo do gênero
É curioso imaginar que, em um mundo que cada vez menos a leitura e o estudo são encorajados, um artigo publicado em um jornal digital possa ser tão influente como o de Steve Rose.
Intitulado como os filmes de pós-horror estão tomando conta do cinema (e traduzido nesta edição da revista Outra Hora) o texto de 2017 tinha o intuito de propor uma nova categorização para uma série de filmes lançados no grande circuito na década de 2010: Babadook (2014), Corrente do Mal (2014), A Bruxa (2015), Ao Cair da Noite (2017), Corra! (2017), entre outros. Em comum entre todos estes filmes há uma rejeição pelo jumpscare, uma aproximação do drama, e a associação dos aspectos sobrenaturais com questões psicológicas e sociais.
Na maior parte do tempo, discordo do que diz o crítico brasileiro Philippe Leão, de que na pós-modernidade é impossível movimentos cinematográficos se formarem. Ao menos no que tange o agrupamento dos filmes, pois podem não ser movimentos com ementas e manifestos, mas é sempre possível reconhecer características que, em determinado recorte, parecem seguir uma busca coletiva. Goste ou não do termo, há algo assim com o pós-horror, tanto na questão estética como na aparente pose que surge de diretores que sugerem estar fazendo algo além do horror em entrevistas esnobes e auto-indulgentes.
O que acarreta nas maiores críticas feitas ao texto de Steve Rose, de que essa pose seria - e é - desrespeitosa com a própria história do gênero, um dos mais antigos, ricos e essenciais na história do cinema. Sempre fico atônito quando entra em pauta o fato de o horror (e, curiosamente, acho que só no Brasil que falamos mais "terror” que “horror”), e o gênero como um todo, não ser reconhecido na temporada de premiações norte-americana, justo um dos países que mais depende do gênero na concepção de sua identidade cinematográfica. Mais ainda quando sugerem que essa ignorância é relacionada com a idade dos votantes, sendo que Hitchcock já "sofria" com essa relutância muito antes do mais velho membro da academia ainda vivo, estar vivo.
Mas evitando divagações, pois o escopo da conversa é grande, este texto mira em dois filmes que exemplificam como, mesmo existindo (e acredito que, de fato, exista), o pós-horror nada mais é que uma tendência cíclica, na mais jovem e circular das artes.
O ACADEMICISMO DA A24
Antes disso, uma pequena parada, pois a verdade é que o termo pegou, e parece que a maior beneficiada foi a A24, produtora que se tornou análoga a esta nova tendência e que parece ter acoplado outras características que vinham se formando em anos anteriores.
Em 2007 o professor Luiz Carlos de Oliveira Jr. publicou um artigo na revista Contracampo onde comenta sobre, entre outras coisas, o academicismo da época, onde diretores estariam "imitando" os modos de cineastas como Apichatpong Weerasethakul e Hou Hsiao-hsien, mas que falta a estes diretores uma maior compreensão "filosófica" dos cineastas. O que sobra da estética deles, diz Oliveira Jr., é uma linguagem domesticada, inofensiva e acadêmica.
E é possível perceber parte deste legado estético, se é que é possível chamar de legado, em diversos filmes da A24, com alguns dos comentários feitos naquele artigo ainda ressoando no cinema de hoje.
À primeira vista, o último comentário, de que se dá mais atenção ao corpo que à psicologia, não seria condizente com os horrores de teor psicológicos associados ao termo, mas Oliveira Jr. aqui fala menos sobre os temas e mais sobre a forma, algo que pode ser melhor elucidado no comentário seguinte:
O pós-horror surge, portanto, como uma evolução natural do horror caso este entrasse em contato com o academicismo descrito neste texto, e observado ao longo do século 21. O que separa, formalmente, um drama social como Moonlight (2016) de um horror como A Bruxa? A fotografia digital, límpida e de cores lavadas, os olhares e diálogos fugidios, a relutância em verbalizar ações e pensamentos, uma suposta dramatização do cotidiano, que procura encontrar o que de mais doloroso e velado existe no tecido que rege a vida, e não necessariamente em seus acontecimentos.
O mesmo pode ser observado em Ao Cair da Noite, filme que nunca deixa claro ou encara de maneira frontal o seu aspecto sobrenatural, apostando na ambientação e tensão atmosférica criada por esse desconhecido. Mas é uma tensão ao contrário da vista em, por exemplo, O Enigma de Outro Mundo (1982), pois ela reside na internalização dos personagens e em uma suposta animosidade que cresce entre eles, mas que nunca aflora.
De certo modo, é como se os diretores se recusassem a abraçar a iconografia do gênero de frente, deixando seus conflitos e confrontos ou velados ou mesmo de fora do que assistimos em tela. Uma atmosfera que se vende por si própria, e não como parte integral dos acontecimentos do filme.
VÉSPERA DE HALLOWEEN
A partir disso, e antes do que vem depois, é importante contextualizar o próprio título desta edição.
Halloween (1978) foi um divisor de águas no cinema de horror norte-americano, e não apenas por sua influência nos filmes feitos a partir de então. A popularização do slasher viu títulos e mais títulos se somarem, e uma pletora de personagens (Freddy Krueger, Jason, O Grito) entrarem para o imaginário popular, mas foi mesmo o impacto que causou na espectatorialidade do cinema de horror que promoveu uma reconfiguração deste imaginário.
Nestes últimos 40 anos, os clichês mais repetidos são relacionáveis às principais características não do horror em si, mas dos slasher: as situações absurdas, as ligações noturnas, os vilões imortais, a matança, as final girls.
E logo esse aspecto histórico se torna também um aspecto cultural, essencial na assimilação e aceitação do pós-horror como gênero comercial e artístico. Acostumados com um suposto cinema, assim que um grupo de filmes vem quebrar suas supostas convenções, a história nos ensina que a tendência é de fascínio por parte das audiências. Unimos isso à necessidade da era da democracia digital de expressar opiniões marcantes, e os filmes da A24 se tornam os melhores filmes de horror da história porque - VOLTEMOS AO INÍCIO DO TEXTO.
Mas o que reside para trás (e, se olhar bem, durante) deste quase meio século, desde o lançamento do monumental filme de John Carpenter, são filmes que se adequariam à nova categorização, ao menos quando falamos nos temas que abordam. Existiria, então, um pré-horror?
Meu palpite é que, do ponto de vista de aproximar estes filmes a fim de categorizá-los em um grupo, não, não existe. Mas, de volta ao assunto da espectatorialidade, da percepção pública e crítica, e dos filmes que quebram a bolha do gênero e da cinefilia, é possível dizer que sim. O horror sempre foi e seguirá sendo um dos gêneros mais criativos do cinema mas talvez, antes de Halloween se tornar a norma, a norma era mais variada e eclética. Hollywood tinha menos controle da popularidade mundial do gênero - controle esse que só foi desafiado pelo Japão nos anos 90, desde então.
Agora, para desbancar os conceitos desenvolvidos na caverna de Platão, falemos do que está nas telas, pois uma das bases do pós-horror reside na suposta elevação, da maior importância que se dá para filmes que usam o gênero para comentar aspectos sociais e psicológicos. E aqui poderíamos voltar ao Expressionismo Alemão, e seus Estudantes de Praga (1913) e Doutor Caligari (1920), ou a Victor Sjostrom e sua Carruagem Fantasma (1921) ou a Carl T. Dreyer e seu Vampyr (1932). Mas estamos falando da véspera, do horror como era antes deste se tornar o que se tornou para que o pós-horror pudesse ser batizado.
O MITO DA ORIGINALIDADE
Comecemos com Ari Aster, talvez o nome mais atrelado ao termo cunhado por Steve Rose e seus filmes Hereditário (2018) e Midsommar (2019). Uma rápida, rápida pesquisa é o suficiente para encontrar as teorias de porque um é o filme de terror perfeito, e outro é um dos filmes mais em contato com uma suposta nova onda hippie (ou, atualizando, indie).
Em artigo nesta edição, falo sobre Midsommar contraposto a O Homem de Palha (1973), do britânico Robin Hardy, então neste vamos ficar com Hereditário que, de acordo com o próprio Ari Aster, tenta se alocar para o “sub-gênero”, e foi pensado como um drama familiar.
No longa, após a morte da mãe, Annie descobre o envolvimento da matriarca da família com cultos satanistas e como ela e os filhos estariam ligados a uma corrente de eventos inevitáveis. O assunto não é novidade, por óbvio, e o que torna o filme membro da nova leva (não chamemos de onda) é como a deterioração psicológica da personagem vivida por Toni Collette é relacionada com a tragédia familiar. Ao invés de sustos e suspense, o que Aster cria é um tom lúgubre, que recai em ações cotidianas da família (tema representado na profissão da protagonista, uma artista de miniaturas) e que engole até mesmo o aspecto gráfico e corporal do filme.
Voltemos então para Inverno de Sangue em Veneza (1973), de Nicolas Roeg (e pulemos o mais óbvio O Exorcista, do mesmo ano), filme de drama matrimonial disfarçado de horror, e que coloca as instabilidades psicológicas do casal ante um suposto legado sobrenatural velado na cidade imersa em águas. Em como a morte de sua filha influencia na maneira que estes vem o mundo - ou seja, na maneira que o filme é apresentado. Roeg utiliza a geografia e arquitetura de Veneza, uma cidade histórica e culturalmente rica mas degradada e com um tom natural de umidade e putrefação, como modo de integrar os aspectos góticos que compõem o tom do filme. Por mais que o horror seja abordado de maneira ilusória e experimental, há uma dialogação intrínseca com o gênero.
Já Ari Aster nunca pratica essa conversa. Por mais que tenham, ambos os filmes mencionados, esse apelo gráfico (a cena do poste e a do suicídio, por exemplo), o diretor parece filmar no limiar para que seus filmes nunca sejam "só" exemplares do gênero. Como se, antes de chegar no horror, houvesse uma camada de “drama psicológico”, ou “colisão cultural”, no caso de Midsommar. Diferentemente de O Homem de Palha, que na sua forma, na maneira como apresenta seu mundo, se aproxima da comédia, e do filme de Roeg que se aproxima do drama e do romance.
A grande questão é que, sem essa necessidade de se provar um "filme sério", os filmes podiam só ser.
Pensemos então em A Bruxa, de Robert Eggers, e mesmo em seu O Farol (2019). Filmes onde o cineasta trabalha com a ideia da ambientação, em ambientar tanto os seus filmes que estes se tornam abstratos em seus significados mais diretos. E lembremos novamente do filme de Dreyer, sobre um estudante de ocultismo que encontra traços de vampirismo em uma vila isolada. Longa que, feito com som mas tratado como um filme mudo, é também construído em torno de sua atmosfera, e atinge níveis de abstração até incomuns para a filmografia do dinamarquês (ao menos em relação à narrativa, pois pode ser discutido que todos os filmes de Dreyer trabalham com a ideia de abstração)
Mas, para ficar no nosso recorte, vamos parar em Todas as Cores do Medo (1972), do Italiano Sergio Martino. No filme, após sofrer um acidente de carro que resulta em um aborto, Jane encontra alento em sua nova vizinha, Mary, que a leva para um evento de seu culto. Martino também circula em torno da figura do sobrenatural, também ambienta seu filme em uma atmosfera carregada nas cores rebuscadas e granuladas do celuloide, mas também não se impede de apelar para resoluções mais gráficas e diretas, iniciando o filme com nudez (o que, hoje, seria considerado apelação) e mostrando a ação prática do culto.
Outra incidência do pós-horror é como este usa o gênero para comentar aspectos sociais. Um filme como Corra! só poderia ser feito em 2017, mas não se pode esquecer que Hitchcock já fazia comentários ácidos sobre a configuração demográfica dos Estados Unidos desde Um Barco e Nove Destinos (1939), Jacques Torneur já falava sobre xenofobia e colonização em Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943), e de que George Romero trouxe esta mesma configuração para A Noite Dos Mortos Vivos (1968).
O que não falta ao horror, como gênero, é variedade. É discutível, inclusive, que talvez seja o único grande gênero norte-americano que não se tornou um comentário em si mesmo, graças às constantes transformações pela qual passa. O pós-horror, muito longe de ser uma “elevação”, é mais uma delas.