Como Filmes de Pós-Horror Estão Tomando Conta do Cinema (The Guardian)
De "It Comes at Night" a "A Ghost Story", uma nova forma de horror está surgindo nos cinemas, substituindo os sustos repentinos pela angústia existencial. Conversamos com os autores que estão quebrando todas as regras.
Notas do tradutor (Marco Leal):
Artigo escrito por Steve Rose, publicado em 06 de Julho de 2017 no site do jornal britânico The Guardian (e que pode ser conferida aqui).
Talvez o texto central para a justificação do tema dessa edição, causou tantos protestos e debate que o próprio autor teve que publicar uma tréplica.
A questão que Steve aponta é verdadeira: existem características em comum nos filmes mencionados. O que falta, e daí se a ele ou ao artigo, é a compreensão de que essa movimentação em direção à atmosfera e ao drama não é algo novo, e que o horror talvez tenha sido o gênero que mais se reinventou ao longo dos anos.
De valioso, estão também as citações dos próprios autores dos filmes, que contribuem um pouco para essa ideia de um suposto movimento cinematográfico na época onde esses são praticamente inexistentes.
"‘NÃO VÁ VER IT COMES AT NIGHT, NÃO VALE A PENA ASSISTIR, É O PIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS”. O Twitter estava cheio de postagens assim após o lançamento do filme nos EUA no mês passado. O público em geral esperava um horror tradicional; ao saírem, estavam incertos sobre o que tinham assistido e não gostaram. Críticos e uma certa parte dos espectadores adoraram o filme, mas sua classificação no Cinemascore – determinada pelas reações do público na noite de estreia – é um D.
É possível entender a confusão. O título, por si só, sugere fortemente que It Comes at Night é um filme de terror. O mesmo acontece com o trailer do filme, que apresenta ingredientes como um cenário pós-apocalíptico, uma cabana na floresta, máscaras de gás, espingardas, prisioneiros, um patriarca severo (Joel Edgerton) e advertências para nunca deixar portas destrancadas ou sair à noite. Não se trata de propaganda enganosa, é apenas que este filme tenso e minimalista não segue as regras aceitas."
“Eu não me propus a fazer um filme de terror propriamente dito,” diz Trey Edward Shults, o roteirista e diretor de 28 anos do filme. “Eu apenas queria criar algo pessoal e foi isso que se tornou. Coloquei muitos dos meus próprios medos nele, e se medo se iguala a terror, então sim, é terror. Mas não é um filme de terror convencional.”
Considerando que o terror é o lugar onde exploramos nossos medos mortais e sociais, o gênero é, na verdade, um dos espaços mais seguros do cinema. Mais do que qualquer outro gênero, os filmes de terror são governados por regras e códigos: vampiros não têm reflexos; a "garota final" prevalecerá; os avisos do atendente do posto de gasolina/nativo americano místico/senhora estranha serão ignorados; o mal será, em última análise, derrotado ou pelo menos explicado, mas não de uma forma que feche a possibilidade de uma sequência. As regras são nossa lanterna enquanto nos aventuramos no desconhecido. Mas, em alguns aspectos, elas transformaram o terror em um reino do que Donald Rumsfeld descreveria como “desconhecidos conhecidos”.
Não é de se admirar que alguns cineastas estejam começando a questionar o que acontece quando você apaga a lanterna. O que acontece quando você se desvia dessas convenções rígidas e se aventura na escuridão? Você pode encontrar algo ainda mais assustador. Ou pode descobrir algo que não é assustador de forma alguma. O que pode estar surgindo aqui é um novo subgênero. Vamos chamá-lo de “pós-terror”.
Para seus fãs, pelo menos, It Comes at Night é ainda mais assustador porque você não sabe exatamente de onde o horror vai vir. Há um apocalipse que nivela a civilização, um vírus contagioso e uma floresta à la Blair Witch, mas o filme está mais interessado nos horrores internos. Edgerton e sua família formam uma aliança nervosa com outra que está em uma situação semelhante, e com espingardas à mão e confiança em falta, a ameaça de violência está sempre próxima. Há dor, culpa, arrependimento e paranoia. Existem laços familiares que passam de protetores a restritivos. O filho adolescente é atormentado por pesadelos. E há também a escuridão, da qual as imagens do filme fazem um uso extraordinário. É impressionante o quanto pode ser desconcertante apenas assistir alguém com uma lanterna vagando pela noite escura. É mais fácil identificar o que não é assustador.
“Estou ciente de que o título soa como um filme de monstro qualquer, mas ele se relaciona tematicamente com o filme, não de forma literal,” diz Shults. Ele desligou todas as luzes em sua casa no Texas e andou com uma lanterna para sentir o clima do filme, confessa. Ele também pesquisou genocídios e ciclos de violência na sociedade. Mas a história realmente vem de suas ansiedades pessoais. Shults fala sobre seu pai afastado, que tinha um histórico de dependência e morreu pouco antes de ele escrever o filme. Ele confessou seu arrependimento ao filho em seu leito de morte.
“A morte é o desconhecido. Nós não sabemos,” ele diz, “e isso é sempre aterrorizante. Mas o que é ainda mais assustador é o arrependimento. A maneira como você viveu sua vida, as decisões que tomou. Isso me aterroriza o tempo todo.” Como um ex-estudante de administração que abandonou a faculdade contra os conselhos dos pais para seguir a carreira de cineasta, o medo de tomar a decisão errada estava claramente presente para Shults. O que o encorajou a mudar de carreira foi conseguir um emprego com o autor local Terrence Malick, trabalhando em The Tree of Life. “Não sei se ele sabe, mas ele mudou o curso da minha vida,” diz Shults. “O que me inspirou foi o quão não ortodoxo você pode ser... apenas pense fora da caixa e encontre a maneira certa de fazer um filme para você.”
Esse não é um sentimento que os produtores de terror realmente querem ouvir hoje em dia. O terror é o gênero mais lucrativo da indústria e está em plena ascensão. Este ano está prestes a ser o melhor da história do terror, liderado por títulos como Get Out (que arrecadou $252 milhões globalmente com um orçamento de $4,5 milhões) e Split, de M. Night Shyamalan ($277 milhões com um orçamento de $9 milhões). Como resultado, há um mercado para filmes de terror com baixos orçamentos e grande apelo popular, o que basicamente significa variações em temas bem estabelecidos: possessão sobrenatural, casas assombradas, psicopatas, zumbis.
Esse é o mercado contra o qual o pós-terror está reagindo. Shults cita a influência de Roman Polanski, cujas aclamadas “trilogias de apartamento” – Repulsion, The Tenant e Rosemary’s Baby – foram exercícios semelhantes em reformular os tropos do terror com uma sensibilidade autoral, assim como Don’t Look Now, de Nicolas Roeg, e The Shining, de Stanley Kubrick. Mas esses filmes foram feitos na era do terror bem financiado pelos estúdios; agora, cineastas jovens como Shults precisam causar uma impressão distinta com um orçamento independente. (Vale mencionar que It Comes at Nightjá recuperou seu orçamento várias vezes.)
Vários outros filmes recentes poderiam se encaixar na categoria de pós-terror. The Witch, por exemplo, do ano passado, que leva uma devota família do século XVII para a floresta da Nova Inglaterra. Novamente, o título e o trailer sugeriam um filme de terror convencional, mas, embora estivesse imerso em uma autêntica lore satânica, The Witch era escasso em sustos repentinos, perseguições frenéticas e explicações. Pelo menos tinha uma bruxa. Mas, mais uma vez, foi comercializado para o público mainstream, que se sentiu enganado e tomou o Twitter com comentários como “O PIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS”.
Tomando uma abordagem diferente, Personal Shopper, de Olivier Assayas, entrelaçou elementos sobrenaturais em seu estudo contido de uma assistente de moda parisiense, interpretada por Kristen Stewart. Ela busca “um sinal” de seu irmão gêmeo falecido. Ela acredita em fantasmas, e pelo que vemos, não está inventando, então, quando um stalker começa a enviar mensagens de texto, não sabemos se ele está vivo ou morto. Tecnicamente, é um filme de terror, mas ninguém confundiria Personal Shopper com A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2. De maneira semelhante, Nicholas Winding Refn trouxe supermodelos vampiras sanguinárias para o mundo da moda de LA em The Neon Demon – uma variação em tropos de terror já conhecidos, mas de forma alguma tradicional.
O filme que realmente pode selar o pós-terror é A Ghost Story, um filme extraordinário e exploratório que estreará nos EUA esta semana (e chegará ao Reino Unido em agosto). Novamente, é um título que cria certas expectativas. Há um fantasma, mas é Casey Affleck envolto em um lençol branco com dois buracos para os olhos. Ele é basicamente um emoji humano de fantasma. Após ser morto em um acidente de carro, ele assombra a casa de sua jovem viúva devastada, interpretada por Rooney Mara, mas ela não pode vê-lo. Quando ela se muda, ele fica preso lá. Para sempre. Novos inquilinos vão e vêm. O edifício em si eventualmente desaparece. O tempo se enrola sobre si mesmo, e a história se expande do trauma pessoal para os reinos da especulação cósmica.
“Eu queria me envolver com os arquétipos e a iconografia dos filmes de fantasmas e das casas assombradas, sem nunca realmente cruzar a linha para ser um filme de terror,” diz o roteirista e diretor David Lowery, que fez A Ghost Story com os lucros de seu filme anterior, um remake de Pete’s Dragon, da Disney. “Olhe para qualquer filme de terror e você pode rastrear até uma ansiedade social ou pessoal específica, e este filme não é diferente nesse aspecto: eu estava passando por uma crise existencial de grande perspectiva sobre meu lugar no universo, e ao mesmo tempo enfrentando um conflito muito pessoal com minha esposa sobre para onde íamos nos mudar. E tudo isso estava envolvido no meu desejo de longa data de fazer um filme com um cara em um lençol.”
Lowery não é um esnobe, no entanto: “Eu vou ver a maioria dos filmes de terror que saem, mas geralmente assisto com as mãos sobre os olhos.” Ele fala com admiração de The Conjuring 2. Mas Lowery também se inspira em uma visão mais oriental sobre espíritos e o sobrenatural. Goodbye, Dragon Inn, de Tsai Ming-liang, por exemplo, se passa em um cinema “assombrado” onde fantasmas e vivos sentam lado a lado. Ou os filmes de Apichatpong Weerasethakul, da Tailândia, em que o fantasma de uma esposa morta pode aparecer casualmente na mesa de jantar ou um filho pode se transformar em um wookiee que vive na floresta, e ninguém se surpreende. A carreira inteira de Weerasethakul é basicamente pós-terror.
É significativo que It Comes at Night, The Witch e A Ghost Story tenham sido lançados pela A24 Films, uma empresa jovem que já encontrou sucesso no Oscar com filmes como Moonlight e Room. Se alguém está empurrando o terror para novos reinos, são eles, mas não está na hora disso? Sempre haverá espaço para filmes que nos reaproximam de nossos medos primordiais e nos aterrorizam. Mas, quando se trata de enfrentar as grandes questões metafísicas, a estrutura do terror corre o risco de ser muito rígida para encontrar novas respostas – como uma religião em declínio. Escondido além de seu cordão está um vasto nada negro, esperando que iluminemos o caminho.