UBOA e o Mergulho no Desconforto

Uma experiência pessoal com The Origin of My Depression


Em se tratando de sonoridade, a subjetividade impera. Além disso, o contexto em que se escuta algo é determinante. A música, diferente de outras formas de arte, é permeada por infinitas variáveis na sua forma de consumo. Tudo emite som, mas até que esses sons sejam organizados com um propósito, eles permanecem completamente abstratos. 

Quando essa matéria-prima se transforma em algo concreto, o que resplandece para a maioria das pessoas é o despertar da vivacidade do presente. Elas buscam sensações de felicidade, guiadas por melodias leves e entusiasmadas. A magia está justamente aí: no poder da música de moldar o nosso humor e oferecer uma nova perspectiva a momentos (intensificando ou suavizando-os). Quando ouvi "Unwritten" pela primeira vez, por exemplo, não sabia por que aquilo me fazia feliz, mas não conseguia controlar a vontade de dançar, cantar e (querer) viver.


Mas e o outro lado da moeda?

O que acontece quando a fonte de inspiração se encontra na mais profunda solidão? Quando a ausência de ritmo é a regra, e não há melodia ou estrutura definida para salvar nossos despreparados ouvidos? Quando o objetivo parece ser abrir uma Caixa de Pandora pessoal, carregada de traumas, medos e angústias, apenas por abrir? 

Me deparei com “A Origem da Minha Depressão (The Origin of My Depression)”, 4º álbum da artista australiana de música Drone e Noise Rock, Xandra Metcalfe, sob o nome de seu pseudônimo Uboa, 3 dias após meu aniversário de 21 anos. Na época em questão, me encontrava em um quadro ansioso/depressivo e, por ocasião do destino, vagando pelo Rate Your Music, encontrei tal título que parecia conveniente para a situação.

De imediato, percebi que ali repousava uma experiência completamente nova para mim — uma daquelas muda a vida de um ser humano pra sempre. Era algo profundamente diferente, e o amedrontamento que senti ao escutar seus primeiros minutos superava o que filmes do gênero horror já haviam me causado. Um chiado, como o de uma televisão raivosa, sobreposto a um arranjo catártico digno de Hans Zimmer, na faixa "Detransitioning" introduziu os drones que seriam figuras centrais do álbum. Tive, ali, meu primeiro contato com a chamada musique concrète.

Mais do que o simples uso de sons sampleados como material musical, a musique concrète representa uma inversão em relação à abordagem musical tradicional. Segundo Schaeffer (1952) - o primeiro desenvolvedor desse sub-gênero - o compositor tradicional (ou "abstrato") segue um caminho que o leva do abstrato ao concreto. A peça tradicional é concebida mentalmente, notada simbolicamente, e finalmente executada. Na musique concrète, os efeitos criados por diferentes maneiras de excitar corpos produtores de som, e pelas manipulações eletroacústicas das gravações desses sons, não podem ser concebidos a priori; além disso, a notação tradicional, que essencialmente descreve a altura do som, é inadequada; o intérprete é desnecessário. O novo compositor (ou "concreto") não pode fazer melhor do que fabricar seu material, experimentar com ele e, finalmente, juntá-lo.

Uboa, em entrevista para a New Noise Magazine, descreve seu processo de composição em conformidade com esse conceito: “Muitos dos sons eram incidentais ou baseados em tudo ao meu redor. Eu costumava andar pelas ruas com um ditafone, murmurando pensamentos e poesias improvisadas. Adoro usar instrumentos não convencionais, como o Zippy Zither, que aparece em ‘Epilation Joy’ e ‘Misspent Youth’.”

Nesse sentido, acredito que Schaeffer não poderia imaginar, durante seus anos de experimentos e criações, como gritos irrestritos e crus de um ser humano (cujo sofrimento é constante) poderiam, como forma de interpretação ou não, agregar e fazer sentido naquela construção imprevisível de samples urbanos e industriais.

Afinal, essa imprevisibilidade é o que desenvolve a angústia e o suspense que culmina no terror. Ninguém se assusta com uma história previsível, nem com um jumpscare que se enxerga há quilômetros de distância. O medo se instala sorrateiramente, na furtividade e no relance. É o que ocorre ao chegarmos em "Lay Down and Rot". O que antes era apenas desconforto, desabrocha em um apocalipse sonoro. Os gemidos e respirações ofegantes criam uma atmosfera hostil, até que os gritos embriagados de Uboa transformam a experiência em um pesadelo quase insuportável.

Tive que parar. Tentei respirar fundo mas o ar parecia rarefeito, então decidi que não era o momento, e não voltei ao álbum por cinco anos. Quando me deparei com o tema do mês da revista outrahora, soube imediatamente que ali estava meu texto.

Depois de um longo processo terapêutico, menos egocêntrico, pude me colocar numa posição exclusiva de ouvinte. Pela primeira vez, não tentei me relacionar com um álbum, nem buscar algo que ressoasse com minha experiência pessoal. O desconforto, o caos e a dor pertenciam a Xandra Metcalfe, e eu só podia passar por aquilo esperando que, ao final, ela estivesse bem. Mas estava decidido a suportá-lo (o álbum) de olhos e ouvidos bem abertos. Diferente de uma montanha russa, sabia que o medo não passaria, e eu definitivamente não ia querer me aventurar ali uma segunda vez.

A experiência permaneceu perturbadora. Seguindo de onde havia parado, a transição de Lay Down and Rot para Epilation Joy parece um sonho febril. A sua voz, nítida por alguns segundos, parece uma rápida experiência Post-mortem até chegarmos no purgatório que é Please Don’t Leave Me. Num reflexo involuntário, a regra dos olhos abertos foi revogada. Só queria que aquilo passasse até os acordes de violão e as notas no xilofone de An Angel of Great and Terrible Light me despertarem.

Essa faixa, junto com "Misspent Youth", ocupa metade do tempo do álbum. É o espaço da catarse. Notas intensas no piano acompanham um desabafo paralisante sobre sua vida como mulher trans. Uboa não grita, mas suas palavras atravessam a alma quando diz: “Even death is tolerable if there is truth, and we're truth; And I am so scared that all this possible pain Is still better than being a corpse in a closet.”

No momento final do álbum, ouvimos talheres sendo postos à mesa e um incompleto “venha” (C’mon). Parece ser a primeira vez que respiro ar puro desde o início. O caminho até ali foi o mais árduo possível, e não sei dizer se valeu a pena. É um sentimento verdadeiramente conflituoso. A obra, em toda sua ousadia, transcende os limites tradicionais da música, explorando o som como veículo de uma experiência emocional visceral e profundamente pessoal.

Não se trata de uma audição para entretenimento, mas de um mergulho doloroso e incômodo no universo de alguém que usa a arte como uma forma de expurgo e sobrevivência. Ao mesmo tempo que a dor de Uboa é intransferível, sua coragem em expô-la nos força a refletir sobre os limites do que é aceitável sentir e compartilhar.

O grande mérito do álbum mora aí: na maneira como desafia quem ousa encará-lo, deixando um impacto que, muito provavelmente, perdurará para além de seus 40 minutos. Ao fim, sua força não está na beleza ou no prazer auditivo, mas no confronto direto com a realidade mais crua e inescapável da condição humana.

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