Quem Tem Medo da Música Má?

Música e Emoção

Quem nunca disse “vou botar uma música alegre para animar o ambiente” ou se pegou precisando colocar aquela canção mais melancólica para acompanhar o estado de espírito, que atire a primeira pedra. Essa relação natural e intuitiva entre os humores e a música tem uma longa tradição de reflexão, já que, em muitos momentos da história, a música foi tratada sumariamente como uma evocadora ou facilitadora dos afetos humanos.

Os incontornáveis filósofos da Antiguidade, Platão e Aristóteles, definiam a música menos por suas qualidades estéticas e intrínsecas e mais pelos efeitos que ela provoca na alma ou mentalidade do indivíduo - ou ainda, equivaleram um ao outro (estrutura = emoção). Sem nos estendermos muito em cada uma destas teorias, os mais curiosos poderão pesquisar sobre a intensificação das virtudes ou o corrompimento do caráter pela música, em Platão, e sobre a capacidade catártica e mimética da música, ou seja, sua imitação dos afetos, em Aristóteles.

Vamos então começar com algumas perguntas mais imediatas: A música tem, necessariamente, que provocar uma reação emocional em seu ouvinte? Alegria, tristeza, medo, raiva – entre tantos outros estados psicológicos? Existe essa natureza refletida da música para com as emoções humanas? Se considerarmos que a música é talvez a forma de arte mais abstrata que temos, não surpreenderia que alguns pensadores, compositores e teóricos musicais respondam a essas perguntas com um categórico e retumbante: não!

Na própria Antiguidade, Pitágoras e Aristóxeno seriam os primeiros exemplos daqueles que seguiam uma abordagem bastante diferente, focada na natureza matemática e no jogo de proporções entre os sons. Inevitavelmente, este ponto de partida resulta em uma visão menos emotiva e, pasmem, menos utilitária da música - ou seja, “a música deve servir para x função”. O coração desta divergência milenar é, então, se a música deve ser entendida primordialmente como uma experiência sensível ou como uma prática de proporções.

Como algo essencialmente humano ou constitutivamente inumano.


Música de Chuveiro e Música de Corredor

É impossível dizer o que seria mais famoso no filme Psicose, de Alfred Hitchcock: se a “cena do chuveiro” ou a trilha sonora que a acompanha, o que diz da indissociabilidade entre ambas. A trilha, composta por Bernard Herrmann e intitulada The Murder, é amplamente reconhecida por seus violinos agudos e dissonantes, que atacam em conjunto na introdução de forma pulsada e constante. Muito provavelmente, mesmo que o leitor não tenha rememorado a partitura exata, a breve descrição anterior evocou, no mínimo, uma sonoridade bastante próxima da música. Afinal, é algo como música de filme de terror, não é mesmo?

Musicalmente, a composição de Herrmann se inspira em influências e compositores variados. Contudo, é notável que essas influências provenham todas do que, de forma ampla, se entende por Música Moderna ou Música do Século XX. Os maiores exemplos são:

  1. As peças atonais e extremamente dissonantes de Arnold Schoenberg;

  2. Os motivos repetidos e econômicos de um estilo Minimalista, ainda em franca construção na época; ou então

  3. As experimentações referenciadas a uma escola mais geral de compositores, trabalhando com inovações no campo da harmonia e do ritmo. Entre estes últimos, são fortes os nomes de Igor Stravinsky e Béla Bartók.

Bartók, embora tenha vivido até 1945, nunca se aproximou ou trabalhou diretamente com o cinema. No entanto, o músico húngaro acabou sendo associado ao universo cinematográfico postumamente, na década de ‘70, em outro grande clássico do terror estadunidense — O Iluminado, de Stanley Kubrick. O trecho musical que alçou este compositor "de nicho" ao reconhecimento global se encontra no terceiro movimento de sua obra Música para Cordas, Percussão e Celesta. Esta peça, marcada por texturas dissonantes, atmosfera tensa, cordas sussurrantes e ritmos irregulares, foi crucial para imortalizar as paisagens sonoras que há muito o ouvinte reconhece como terroríficas ou assustadoras em se tratando de música.

O que chama atenção é que a aventura composicional do século XX, por mais extrema ou variada que tenha sido, jamais teve como propósito assustar ninguém, nem mesmo o ouvinte mais leigo ou desavisado. Também, não estava em seu cerne provocar desconforto, perturbação emocional ou, de fato, provocar qualquer tipo de reação emocional específica no ouvinte.

A produção de Bartók, assim como a de outros compositores de sua época, é apenasmente representativa de uma linguagem musical em constante inovação e renovação. Essa evolução pode tanto ser traçada há mais de um milênio, se considerarmos o início da escrita e notação musical, ou há mais de três séculos, se tomarmos como ponto de partida o surgimento da linguagem sinfônica - estilo musical derivado das ouvertures das primeiras óperas italianas e francesas.

Assim, por mais que a música de Hermann beba da mesma genealogia da música dita moderna, existem diferenças de intenção que são fundamentais para pensar a questão da música e da emoção - na medida em que Hermann queria, sim, que sua música provocasse o ouvinte a sentir medo e a ficar tenso. E como ele fez isso? Ora, antes de tudo, sua música foi chamada The Murder, associando através da palavra a música ao evento censurável do assassinato. Em seguida, o pulso repetitivo dos violinos foi compassado para representar não só o ritmo das facadas que Norman Bates desferia em Marion Crane, mas também a aproximação lenta do psicopata em direção à sua vítima - associando através da imagem a música ao terror.

Este vínculo entre a música e as imagens, bem como ao léxico do macabro, do grotesco e do assustador é algo extremamente comum. É até mais do que comum - é condição de possibilidade para que a música convoque certas propriedades terroríficas. Sem todas estas indicações linguageiras e representativas, saberíamos estar diante de um dispositivo sonoro amedrontador ou afim? Um menino ou menina especulativamente criado por lobos, ao escutar estas músicas, se sentiria intuitivamente assustado?

Já no século XIX, havia compositores românticos hipnotizados pela imagética gótica e com afinidade ao sombrio e ao sobrenatural, tais como Hector Berlioz e sua Symphonie Fantastique. Esta obra, composta em 1830, é um exemplo marcante da fusão entre música e concepções literárias e representativas, utilizando uma narrativa programática para contar a história de um jovem artista consumido pela obsessão, pesadelos e bruxas. Para tanto, Berlioz se viu “obrigado” a dispor de um libreto indicando tais narrativas febris. Outros compositores contemporâneos, como Von Weber, Franz Liszt e Richard Wagner, também exploraram desta mesma maneira os temas góticos e sobrenaturais, refletindo um fascínio coletivo pelo misticismo sombrio e pelo trágico conforme a época.

Atualmente, ao considerar a relação entre terror e música, talvez nenhum gênero represente melhor a fabricação desta conexão do que o Metal. Em suas vertentes mais extremas, como o Black e o Death Metal, se encontra um verdadeiro festival de capas de álbum, nas quais o limite do grotesco fica a cargo da imaginação do artista e do tamanho de sua perversidade. A música fica assim entrelaçada aos corpos flagelados, às assombrações obscuras, ao caos do mundo, à eterna noite. Em termos sonoros, os vocalistas de Metal Extremo transfiguram seu canto em urros guturais - desmantelando a articulação dos fonemas aos berros, evocando o estado psicológico perturbado daqueles que vivenciam o horror e, por consequência, precisam gritar.


Medo de quê, mesmo?

O fato é que, pura e simplesmente, se deve admitir: o cinema venceu.

Nos dias de hoje, aquela música com um pezinho na atonalidade ou que carregue outras insígnias da Música Moderna é prontamente identificada ao acervo do terror. E isso sem nem mencionarmos as demais regiões emocionais que as soundtracks colonizaram de maneira desenfreada, criando associações que, em alguns casos, se tornaram praticamente irreversíveis na escuta de alguns tantos. Não há prova mais contundente desta influência do que identificar na sonoplastia dos momentos mais tensos do Show do Milhão uma cadência e uma atmosfera harmônica assustadoramente parecidas com as da fatídica cena de Psicose.

Vamos lá, não é como se a Música Moderna fosse santa e inspirasse passividade nos ouvintes. Desde meados do século XIX, vários compositores já caminhavam na corda bamba entre o rechaço e a aceitação. Em sua época, cada nova obra que trouxesse alguma ousadia sinfônica gerava fortes reações do público pagante, muitas vezes resultando em momentos escandalosos, vaias intensas e pura balbúrdia. Contudo, estas manifestações eram decorrentes de um embate estético, no qual os ouvintes ficavam absolutamente desconcertados diante de sua própria ignorância e falta de referencialidade diante do que estavam ouvindo. Seria isso uma emoção?

Bem, Freud explica. Em seu célebre artigo Das Unheimliche (1919), Freud trabalha algumas categorias conceituais que se encaixam perfeitamente em nossa discussão, sendo elas: o medo **(Furcht), a ansiedade (Angst) e o conceito titular de Unheimlich. Este último é uma palavra que não apresenta tradução direta para o português, por vezes interpretada mais simplesmente como “estranho”, e por outras como o neologismo “infamiliar” - tradução esta que daremos preferência.

Sem surpresas, o medo para Freud é uma reação emocional a um perigo concreto e externo, uma resposta objetiva face a algo identificável e real. Já a ansiedade é a sua contraparte, ocorrendo no caso da ausência de uma ameaça definível. Apesar dessa diferença, ambos os sentimentos estão correlacionados a um objeto - no caso da ansiedade, trata-se de uma sensação de perigo iminente, ou seja, ela aguarda por um objeto que lhe caiba.

Na maioria dos filmes de terror, os personagens são perseguidos por algum objeto ameaçador (monstros, serial killers, infectados, forças demoníacas etc.), ou então são tomados, seja gradualmente, seja abruptamente, por um conjunto de percepções de que “algo não está certo”. Assim, o arco narrativo desse tipo de história geralmente vai desde a tranquilidade inicial, passando, em alguns casos, pela ansiedade, até culminar no medo e no terror - entendido pelo pico emocional do confronto direto com o objeto ameaçador. Desta forma, medo, ansiedade e terror são categorias que jogam no terreno da figurabilidade e da representação, e qualquer música criada para acompanhá-las tem que falar esta mesma língua.

Em contrapartida, Freud reserva um lugar especial no pensamento para o conceito do infamiliar. Demonstrando a complexidade do conceito, o psicanalista o descreve como a queda gerada quando algo familiar, previsível e conhecido se torna perturbador ou estranho. Freud sugere, ainda, que o infamiliar está ligado ao retorno do recalcado — algo que antes nos era acessível ou conhecido, mas que, por processos mentais ou culturais, foi reprimido e esquecido, retornando de forma distorcida e abrupta.

O infamiliar ocorre quando um lugar que deveria ser seguro, como o hotel Overlook, se revela estranhamente opressor. Ele ocorre quando uma música, que deveria ser agradável ou minimamente fiel a certos padrões, torna-se angulosa, desarmônica e alheia as expectativas do ouvinte. Ora, se o infamiliar é a quebra das referências daquilo que nos assegura a ordem do mundo e das coisas, o que pode passar desapercebido é que esta ordem também se equaciona à repressão cultural imposta ao mundo dos sons em sua totalidade exploratória.

Não seria justamente essa abertura à infamiliaridade, que a Música Moderna nos apresentou, o elemento que foi posteriormente capturado e docilizado pelo cinema e outras mídias audiovisuais?


Estranhar o Novo

Chegamos no ponto em que podemos arriscar a traçar um esquema de polaridades entre o que seria fortemente temático, de um lado, e o que seria mais puramente musical, de outro, mesmo sabendo da existência dos vários pontos intermediários entre uma e outra ponta. No primeiro, temos o medo e o objeto; a palavra e a imagem. No segundo, temos o infamiliar e o estranhamento; a perda de referências. No primeiro, temos o psicológico emocional e o humano. No segundo, temos abstrato e o inumano. No primeiro, temos Bernard Hermann e o mundo das representações. No segundo, temos Béla Bartók e o mundo dos sons.

Não é como se a tensão criativa entre os polos supracitados não pudessem muito bem providenciar excelentes experiências estéticas. É o caso do álbum SAVED! de Kristin Hayter, lançado em 2024, que estrutura uma dialética sonora entre o temático e o estranho, ou infamiliar.

Mais conhecida por seus trabalhos anteriores sob o pseudônimo de Lingua Ignota, Hayter já tinha o hábito de utilizar temas religiosos e espirituais, mas, agora, torna estes elementos como a pedra angular em SAVED!. A utilização musical de hinos e elementos litúrgicos acaba distorcida de maneira a criar uma sensação de desconforto e terror.

A religiosidade, algo que normalmente remete à segurança ou esperança, é transfigurada em algo que provoca angústia e estranhamento. Isso é alcançado pelo uso inteligente das dissonâncias, pelo compasso incomum e repetições inesperadas dentro das canções, assim como pela justaposição de instrumentos tradicionais com técnicas vocais extremas e perturbadoras.

Assim, a música em SAVED! provoca no ouvinte sentimentos ambíguos, onde algo familiar - como a música de igreja e os spirituals norte-americanos - se torna perturbador, desafiando a maneira como esses temas são comumente percebidos.

Apesar de lamentarmos as grandes injustiças diante de todo um tesouro musical do século XX, a relação entre o cinema e a música contemporânea — sua interseção com o terror e seus clichês — está longe de se encerrar em um ponto fixo. De forma similar, o infamiliar, enquanto conceito sonoro e estético, segue encontrando novos contextos e ressonâncias, revelando que o desconforto não é um fim em si mesmo, mas sim uma reação às complexidades que transcendem a representação e toca em algo que apenas o musical pode proporcionar.

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