Clipping. e a Abstração do Horror Urbano
Você, que mora em uma metrópole e nunca presenciou:
Trilha de sangue numa avenida movimentada
Porrada generalizada com direito a tiro pra cima
Gritos sem explicação que acordam a vizinhança inteira
Múltiplos assaltos a mão armada
Então você não mora em uma metrópole.
A inevitável abstração do horror urbano é, na minha opinião, a mais visceral e complexa categoria do gênero. Não tem rosto, não tem aviso prévio, a violência humana é de natureza imprevisível e simples de entender; a mais real, trivial e instintiva forma de falar sobre horror. O ano de 2020 foi um terror por si só, um para os estudiosos e os livros de história tentarem explicar, além do fator óbvio que fez deste ano uma gigantesca torre de estrume, 2020 também foi um ano repleto de controvérsias políticas e sociais.
"Donald Trump is a white supremacist, full stop
If you vote for him again, you're a white supremacist, full stop
Call it like it is, and then let the rims spin 'til they full stop
Put one up for Big Floyd, the march is not goin' to stop"
- Chapter 319
"Visions of Bodies Being Burned" é o segundo disco conceitual de horror sci-fi do grupo clipping. Herdando a temática lírica de "There Existed an Addiction to Blood", mas ao mesmo tempo muito mais confortável com a sonoridade mais áspera e industrial; os minutos finais das duas primeiras faixas flertando com a Noise Music quase como artefato de jumpscare. Afinal de contas, esse é um disco de histórias aterrorizantes.
Os - muitos - interlúdios entre as principais faixas do disco são artifícios sonoros imprescindíveis para a construção estética. "Wytchboard" e "Drove" sendo urgentes para as faixas que as precedem. "Say The Name" evoca imagens de slashers dos anos 90, mas principalmente "Candyman".
"Eaten Alive" também referencia o filme do mesmo nome, do diretor Tobe Hooper. O último terço da canção serve de noisescape e interlúdio para "Body for the Pile" que é de longe uma das faixas mais movimentadas e experimentais do projeto, também um dos pontos mais altos em relação à produção, onde inúmeras fontes sonoras banais, como: alarmes, apitos e clicks harmonizam.
O tema visceral e cru da violência urbana se faz presente em "‘96 Neve Campbell" e "Make Them Dead", como na primeira linha da faixa ilustra: medo, ódio, raiva, morte e doença. Nos transportando automaticamente para a tensão política-racial em meio a uma pandemia global.
Os fantasmas e personagens daquele ano caótico ainda vivem conosco; vivenciando tudo isso do sul global, mas sabendo dos impactos aterrorizantes que assombram as minorias numa intensa crescente do renascimento do proto fascismo. Nada mais desconfortante do que a vida real e a discrepância entre quem domina e quem é dominado.
Quem Tem Medo da Música Má?
Música e Emoção
Quem nunca disse “vou botar uma música alegre para animar o ambiente” ou se pegou precisando colocar aquela canção mais melancólica para acompanhar o estado de espírito, que atire a primeira pedra. Essa relação natural e intuitiva entre os humores e a música tem uma longa tradição de reflexão, já que, em muitos momentos da história, a música foi tratada sumariamente como uma evocadora ou facilitadora dos afetos humanos.
Os incontornáveis filósofos da Antiguidade, Platão e Aristóteles, definiam a música menos por suas qualidades estéticas e intrínsecas e mais pelos efeitos que ela provoca na alma ou mentalidade do indivíduo - ou ainda, equivaleram um ao outro (estrutura = emoção). Sem nos estendermos muito em cada uma destas teorias, os mais curiosos poderão pesquisar sobre a intensificação das virtudes ou o corrompimento do caráter pela música, em Platão, e sobre a capacidade catártica e mimética da música, ou seja, sua imitação dos afetos, em Aristóteles.
Vamos então começar com algumas perguntas mais imediatas: A música tem, necessariamente, que provocar uma reação emocional em seu ouvinte? Alegria, tristeza, medo, raiva – entre tantos outros estados psicológicos? Existe essa natureza refletida da música para com as emoções humanas? Se considerarmos que a música é talvez a forma de arte mais abstrata que temos, não surpreenderia que alguns pensadores, compositores e teóricos musicais respondam a essas perguntas com um categórico e retumbante: não!
Na própria Antiguidade, Pitágoras e Aristóxeno seriam os primeiros exemplos daqueles que seguiam uma abordagem bastante diferente, focada na natureza matemática e no jogo de proporções entre os sons. Inevitavelmente, este ponto de partida resulta em uma visão menos emotiva e, pasmem, menos utilitária da música - ou seja, “a música deve servir para x função”. O coração desta divergência milenar é, então, se a música deve ser entendida primordialmente como uma experiência sensível ou como uma prática de proporções.
Como algo essencialmente humano ou constitutivamente inumano.
Música de Chuveiro e Música de Corredor
É impossível dizer o que seria mais famoso no filme Psicose, de Alfred Hitchcock: se a “cena do chuveiro” ou a trilha sonora que a acompanha, o que diz da indissociabilidade entre ambas. A trilha, composta por Bernard Herrmann e intitulada The Murder, é amplamente reconhecida por seus violinos agudos e dissonantes, que atacam em conjunto na introdução de forma pulsada e constante. Muito provavelmente, mesmo que o leitor não tenha rememorado a partitura exata, a breve descrição anterior evocou, no mínimo, uma sonoridade bastante próxima da música. Afinal, é algo como música de filme de terror, não é mesmo?
Musicalmente, a composição de Herrmann se inspira em influências e compositores variados. Contudo, é notável que essas influências provenham todas do que, de forma ampla, se entende por Música Moderna ou Música do Século XX. Os maiores exemplos são:
As peças atonais e extremamente dissonantes de Arnold Schoenberg;
Os motivos repetidos e econômicos de um estilo Minimalista, ainda em franca construção na época; ou então
As experimentações referenciadas a uma escola mais geral de compositores, trabalhando com inovações no campo da harmonia e do ritmo. Entre estes últimos, são fortes os nomes de Igor Stravinsky e Béla Bartók.
Bartók, embora tenha vivido até 1945, nunca se aproximou ou trabalhou diretamente com o cinema. No entanto, o músico húngaro acabou sendo associado ao universo cinematográfico postumamente, na década de ‘70, em outro grande clássico do terror estadunidense — O Iluminado, de Stanley Kubrick. O trecho musical que alçou este compositor "de nicho" ao reconhecimento global se encontra no terceiro movimento de sua obra Música para Cordas, Percussão e Celesta. Esta peça, marcada por texturas dissonantes, atmosfera tensa, cordas sussurrantes e ritmos irregulares, foi crucial para imortalizar as paisagens sonoras que há muito o ouvinte reconhece como terroríficas ou assustadoras em se tratando de música.
O que chama atenção é que a aventura composicional do século XX, por mais extrema ou variada que tenha sido, jamais teve como propósito assustar ninguém, nem mesmo o ouvinte mais leigo ou desavisado. Também, não estava em seu cerne provocar desconforto, perturbação emocional ou, de fato, provocar qualquer tipo de reação emocional específica no ouvinte.
A produção de Bartók, assim como a de outros compositores de sua época, é apenasmente representativa de uma linguagem musical em constante inovação e renovação. Essa evolução pode tanto ser traçada há mais de um milênio, se considerarmos o início da escrita e notação musical, ou há mais de três séculos, se tomarmos como ponto de partida o surgimento da linguagem sinfônica - estilo musical derivado das ouvertures das primeiras óperas italianas e francesas.
Assim, por mais que a música de Hermann beba da mesma genealogia da música dita moderna, existem diferenças de intenção que são fundamentais para pensar a questão da música e da emoção - na medida em que Hermann queria, sim, que sua música provocasse o ouvinte a sentir medo e a ficar tenso. E como ele fez isso? Ora, antes de tudo, sua música foi chamada The Murder, associando através da palavra a música ao evento censurável do assassinato. Em seguida, o pulso repetitivo dos violinos foi compassado para representar não só o ritmo das facadas que Norman Bates desferia em Marion Crane, mas também a aproximação lenta do psicopata em direção à sua vítima - associando através da imagem a música ao terror.
Este vínculo entre a música e as imagens, bem como ao léxico do macabro, do grotesco e do assustador é algo extremamente comum. É até mais do que comum - é condição de possibilidade para que a música convoque certas propriedades terroríficas. Sem todas estas indicações linguageiras e representativas, saberíamos estar diante de um dispositivo sonoro amedrontador ou afim? Um menino ou menina especulativamente criado por lobos, ao escutar estas músicas, se sentiria intuitivamente assustado?
Já no século XIX, havia compositores românticos hipnotizados pela imagética gótica e com afinidade ao sombrio e ao sobrenatural, tais como Hector Berlioz e sua Symphonie Fantastique. Esta obra, composta em 1830, é um exemplo marcante da fusão entre música e concepções literárias e representativas, utilizando uma narrativa programática para contar a história de um jovem artista consumido pela obsessão, pesadelos e bruxas. Para tanto, Berlioz se viu “obrigado” a dispor de um libreto indicando tais narrativas febris. Outros compositores contemporâneos, como Von Weber, Franz Liszt e Richard Wagner, também exploraram desta mesma maneira os temas góticos e sobrenaturais, refletindo um fascínio coletivo pelo misticismo sombrio e pelo trágico conforme a época.
Atualmente, ao considerar a relação entre terror e música, talvez nenhum gênero represente melhor a fabricação desta conexão do que o Metal. Em suas vertentes mais extremas, como o Black e o Death Metal, se encontra um verdadeiro festival de capas de álbum, nas quais o limite do grotesco fica a cargo da imaginação do artista e do tamanho de sua perversidade. A música fica assim entrelaçada aos corpos flagelados, às assombrações obscuras, ao caos do mundo, à eterna noite. Em termos sonoros, os vocalistas de Metal Extremo transfiguram seu canto em urros guturais - desmantelando a articulação dos fonemas aos berros, evocando o estado psicológico perturbado daqueles que vivenciam o horror e, por consequência, precisam gritar.
Medo de quê, mesmo?
O fato é que, pura e simplesmente, se deve admitir: o cinema venceu.
Nos dias de hoje, aquela música com um pezinho na atonalidade ou que carregue outras insígnias da Música Moderna é prontamente identificada ao acervo do terror. E isso sem nem mencionarmos as demais regiões emocionais que as soundtracks colonizaram de maneira desenfreada, criando associações que, em alguns casos, se tornaram praticamente irreversíveis na escuta de alguns tantos. Não há prova mais contundente desta influência do que identificar na sonoplastia dos momentos mais tensos do Show do Milhão uma cadência e uma atmosfera harmônica assustadoramente parecidas com as da fatídica cena de Psicose.
Vamos lá, não é como se a Música Moderna fosse santa e inspirasse passividade nos ouvintes. Desde meados do século XIX, vários compositores já caminhavam na corda bamba entre o rechaço e a aceitação. Em sua época, cada nova obra que trouxesse alguma ousadia sinfônica gerava fortes reações do público pagante, muitas vezes resultando em momentos escandalosos, vaias intensas e pura balbúrdia. Contudo, estas manifestações eram decorrentes de um embate estético, no qual os ouvintes ficavam absolutamente desconcertados diante de sua própria ignorância e falta de referencialidade diante do que estavam ouvindo. Seria isso uma emoção?
Bem, Freud explica. Em seu célebre artigo Das Unheimliche (1919), Freud trabalha algumas categorias conceituais que se encaixam perfeitamente em nossa discussão, sendo elas: o medo **(Furcht), a ansiedade (Angst) e o conceito titular de Unheimlich. Este último é uma palavra que não apresenta tradução direta para o português, por vezes interpretada mais simplesmente como “estranho”, e por outras como o neologismo “infamiliar” - tradução esta que daremos preferência.
Sem surpresas, o medo para Freud é uma reação emocional a um perigo concreto e externo, uma resposta objetiva face a algo identificável e real. Já a ansiedade é a sua contraparte, ocorrendo no caso da ausência de uma ameaça definível. Apesar dessa diferença, ambos os sentimentos estão correlacionados a um objeto - no caso da ansiedade, trata-se de uma sensação de perigo iminente, ou seja, ela aguarda por um objeto que lhe caiba.
Na maioria dos filmes de terror, os personagens são perseguidos por algum objeto ameaçador (monstros, serial killers, infectados, forças demoníacas etc.), ou então são tomados, seja gradualmente, seja abruptamente, por um conjunto de percepções de que “algo não está certo”. Assim, o arco narrativo desse tipo de história geralmente vai desde a tranquilidade inicial, passando, em alguns casos, pela ansiedade, até culminar no medo e no terror - entendido pelo pico emocional do confronto direto com o objeto ameaçador. Desta forma, medo, ansiedade e terror são categorias que jogam no terreno da figurabilidade e da representação, e qualquer música criada para acompanhá-las tem que falar esta mesma língua.
Em contrapartida, Freud reserva um lugar especial no pensamento para o conceito do infamiliar. Demonstrando a complexidade do conceito, o psicanalista o descreve como a queda gerada quando algo familiar, previsível e conhecido se torna perturbador ou estranho. Freud sugere, ainda, que o infamiliar está ligado ao retorno do recalcado — algo que antes nos era acessível ou conhecido, mas que, por processos mentais ou culturais, foi reprimido e esquecido, retornando de forma distorcida e abrupta.
O infamiliar ocorre quando um lugar que deveria ser seguro, como o hotel Overlook, se revela estranhamente opressor. Ele ocorre quando uma música, que deveria ser agradável ou minimamente fiel a certos padrões, torna-se angulosa, desarmônica e alheia as expectativas do ouvinte. Ora, se o infamiliar é a quebra das referências daquilo que nos assegura a ordem do mundo e das coisas, o que pode passar desapercebido é que esta ordem também se equaciona à repressão cultural imposta ao mundo dos sons em sua totalidade exploratória.
Não seria justamente essa abertura à infamiliaridade, que a Música Moderna nos apresentou, o elemento que foi posteriormente capturado e docilizado pelo cinema e outras mídias audiovisuais?
Estranhar o Novo
Chegamos no ponto em que podemos arriscar a traçar um esquema de polaridades entre o que seria fortemente temático, de um lado, e o que seria mais puramente musical, de outro, mesmo sabendo da existência dos vários pontos intermediários entre uma e outra ponta. No primeiro, temos o medo e o objeto; a palavra e a imagem. No segundo, temos o infamiliar e o estranhamento; a perda de referências. No primeiro, temos o psicológico emocional e o humano. No segundo, temos abstrato e o inumano. No primeiro, temos Bernard Hermann e o mundo das representações. No segundo, temos Béla Bartók e o mundo dos sons.
Não é como se a tensão criativa entre os polos supracitados não pudessem muito bem providenciar excelentes experiências estéticas. É o caso do álbum SAVED! de Kristin Hayter, lançado em 2024, que estrutura uma dialética sonora entre o temático e o estranho, ou infamiliar.
Mais conhecida por seus trabalhos anteriores sob o pseudônimo de Lingua Ignota, Hayter já tinha o hábito de utilizar temas religiosos e espirituais, mas, agora, torna estes elementos como a pedra angular em SAVED!. A utilização musical de hinos e elementos litúrgicos acaba distorcida de maneira a criar uma sensação de desconforto e terror.
A religiosidade, algo que normalmente remete à segurança ou esperança, é transfigurada em algo que provoca angústia e estranhamento. Isso é alcançado pelo uso inteligente das dissonâncias, pelo compasso incomum e repetições inesperadas dentro das canções, assim como pela justaposição de instrumentos tradicionais com técnicas vocais extremas e perturbadoras.
Assim, a música em SAVED! provoca no ouvinte sentimentos ambíguos, onde algo familiar - como a música de igreja e os spirituals norte-americanos - se torna perturbador, desafiando a maneira como esses temas são comumente percebidos.
Apesar de lamentarmos as grandes injustiças diante de todo um tesouro musical do século XX, a relação entre o cinema e a música contemporânea — sua interseção com o terror e seus clichês — está longe de se encerrar em um ponto fixo. De forma similar, o infamiliar, enquanto conceito sonoro e estético, segue encontrando novos contextos e ressonâncias, revelando que o desconforto não é um fim em si mesmo, mas sim uma reação às complexidades que transcendem a representação e toca em algo que apenas o musical pode proporcionar.
UBOA e o Mergulho no Desconforto
Uma experiência pessoal com The Origin of My Depression
Em se tratando de sonoridade, a subjetividade impera. Além disso, o contexto em que se escuta algo é determinante. A música, diferente de outras formas de arte, é permeada por infinitas variáveis na sua forma de consumo. Tudo emite som, mas até que esses sons sejam organizados com um propósito, eles permanecem completamente abstratos.
Quando essa matéria-prima se transforma em algo concreto, o que resplandece para a maioria das pessoas é o despertar da vivacidade do presente. Elas buscam sensações de felicidade, guiadas por melodias leves e entusiasmadas. A magia está justamente aí: no poder da música de moldar o nosso humor e oferecer uma nova perspectiva a momentos (intensificando ou suavizando-os). Quando ouvi "Unwritten" pela primeira vez, por exemplo, não sabia por que aquilo me fazia feliz, mas não conseguia controlar a vontade de dançar, cantar e (querer) viver.
Mas e o outro lado da moeda?
O que acontece quando a fonte de inspiração se encontra na mais profunda solidão? Quando a ausência de ritmo é a regra, e não há melodia ou estrutura definida para salvar nossos despreparados ouvidos? Quando o objetivo parece ser abrir uma Caixa de Pandora pessoal, carregada de traumas, medos e angústias, apenas por abrir?
Me deparei com “A Origem da Minha Depressão (The Origin of My Depression)”, 4º álbum da artista australiana de música Drone e Noise Rock, Xandra Metcalfe, sob o nome de seu pseudônimo Uboa, 3 dias após meu aniversário de 21 anos. Na época em questão, me encontrava em um quadro ansioso/depressivo e, por ocasião do destino, vagando pelo Rate Your Music, encontrei tal título que parecia conveniente para a situação.
De imediato, percebi que ali repousava uma experiência completamente nova para mim — uma daquelas muda a vida de um ser humano pra sempre. Era algo profundamente diferente, e o amedrontamento que senti ao escutar seus primeiros minutos superava o que filmes do gênero horror já haviam me causado. Um chiado, como o de uma televisão raivosa, sobreposto a um arranjo catártico digno de Hans Zimmer, na faixa "Detransitioning" introduziu os drones que seriam figuras centrais do álbum. Tive, ali, meu primeiro contato com a chamada musique concrète.
Mais do que o simples uso de sons sampleados como material musical, a musique concrète representa uma inversão em relação à abordagem musical tradicional. Segundo Schaeffer (1952) - o primeiro desenvolvedor desse sub-gênero - o compositor tradicional (ou "abstrato") segue um caminho que o leva do abstrato ao concreto. A peça tradicional é concebida mentalmente, notada simbolicamente, e finalmente executada. Na musique concrète, os efeitos criados por diferentes maneiras de excitar corpos produtores de som, e pelas manipulações eletroacústicas das gravações desses sons, não podem ser concebidos a priori; além disso, a notação tradicional, que essencialmente descreve a altura do som, é inadequada; o intérprete é desnecessário. O novo compositor (ou "concreto") não pode fazer melhor do que fabricar seu material, experimentar com ele e, finalmente, juntá-lo.
Uboa, em entrevista para a New Noise Magazine, descreve seu processo de composição em conformidade com esse conceito: “Muitos dos sons eram incidentais ou baseados em tudo ao meu redor. Eu costumava andar pelas ruas com um ditafone, murmurando pensamentos e poesias improvisadas. Adoro usar instrumentos não convencionais, como o Zippy Zither, que aparece em ‘Epilation Joy’ e ‘Misspent Youth’.”
Nesse sentido, acredito que Schaeffer não poderia imaginar, durante seus anos de experimentos e criações, como gritos irrestritos e crus de um ser humano (cujo sofrimento é constante) poderiam, como forma de interpretação ou não, agregar e fazer sentido naquela construção imprevisível de samples urbanos e industriais.
Afinal, essa imprevisibilidade é o que desenvolve a angústia e o suspense que culmina no terror. Ninguém se assusta com uma história previsível, nem com um jumpscare que se enxerga há quilômetros de distância. O medo se instala sorrateiramente, na furtividade e no relance. É o que ocorre ao chegarmos em "Lay Down and Rot". O que antes era apenas desconforto, desabrocha em um apocalipse sonoro. Os gemidos e respirações ofegantes criam uma atmosfera hostil, até que os gritos embriagados de Uboa transformam a experiência em um pesadelo quase insuportável.
Tive que parar. Tentei respirar fundo mas o ar parecia rarefeito, então decidi que não era o momento, e não voltei ao álbum por cinco anos. Quando me deparei com o tema do mês da revista outrahora, soube imediatamente que ali estava meu texto.
Depois de um longo processo terapêutico, menos egocêntrico, pude me colocar numa posição exclusiva de ouvinte. Pela primeira vez, não tentei me relacionar com um álbum, nem buscar algo que ressoasse com minha experiência pessoal. O desconforto, o caos e a dor pertenciam a Xandra Metcalfe, e eu só podia passar por aquilo esperando que, ao final, ela estivesse bem. Mas estava decidido a suportá-lo (o álbum) de olhos e ouvidos bem abertos. Diferente de uma montanha russa, sabia que o medo não passaria, e eu definitivamente não ia querer me aventurar ali uma segunda vez.
A experiência permaneceu perturbadora. Seguindo de onde havia parado, a transição de Lay Down and Rot para Epilation Joy parece um sonho febril. A sua voz, nítida por alguns segundos, parece uma rápida experiência Post-mortem até chegarmos no purgatório que é Please Don’t Leave Me. Num reflexo involuntário, a regra dos olhos abertos foi revogada. Só queria que aquilo passasse até os acordes de violão e as notas no xilofone de An Angel of Great and Terrible Light me despertarem.
Essa faixa, junto com "Misspent Youth", ocupa metade do tempo do álbum. É o espaço da catarse. Notas intensas no piano acompanham um desabafo paralisante sobre sua vida como mulher trans. Uboa não grita, mas suas palavras atravessam a alma quando diz: “Even death is tolerable if there is truth, and we're truth; And I am so scared that all this possible pain Is still better than being a corpse in a closet.”
No momento final do álbum, ouvimos talheres sendo postos à mesa e um incompleto “venha” (C’mon). Parece ser a primeira vez que respiro ar puro desde o início. O caminho até ali foi o mais árduo possível, e não sei dizer se valeu a pena. É um sentimento verdadeiramente conflituoso. A obra, em toda sua ousadia, transcende os limites tradicionais da música, explorando o som como veículo de uma experiência emocional visceral e profundamente pessoal.
Não se trata de uma audição para entretenimento, mas de um mergulho doloroso e incômodo no universo de alguém que usa a arte como uma forma de expurgo e sobrevivência. Ao mesmo tempo que a dor de Uboa é intransferível, sua coragem em expô-la nos força a refletir sobre os limites do que é aceitável sentir e compartilhar.
O grande mérito do álbum mora aí: na maneira como desafia quem ousa encará-lo, deixando um impacto que, muito provavelmente, perdurará para além de seus 40 minutos. Ao fim, sua força não está na beleza ou no prazer auditivo, mas no confronto direto com a realidade mais crua e inescapável da condição humana.
Metal Extremo 101 + 20 Álbuns Transgressores
Se o rock fosse uma semente, o metal extremo seria o fruto proibido
extremo | ex·tre·mo | adj
Situado no ponto mais distante; afastado, longínquo, remoto.
Que atingiu o mais alto grau de algo; máximo, sumo.
Que ultrapassa o limite do que é considerado razoável; exagerado, excessivo.
Que foge ao habitual ou à regra.
Que assinala o fim de alguma coisa; derradeiro, final, último.
(Fonte: Michaelis)
Tudo começou na amplificação da guitarra e do baixo, no pedal de bateria, no blues e no jazz, e na mutante cultura do século XX. Já as técnicas vocais animalescas vieram mais pra frente por consequência da crescente intensidade proporcionada pelas tecnologias citadas anteriormente.
Artistas do jazz, do blues e do rock and roll plantaram e semearam essas sementes selvagens da amplificação que ao longo dos anos foram sendo selecionadas em diversas linhagens. Domesticadas para vários gostos, inúmeras variedades deram origem a diversos gêneros musicais que ouvimos hoje, cem anos depois. Hoje, busco aqui explorar brevemente algumas linhagens específicas selecionadas pelo sabor mais intenso, picante e as vezes bem amargo. Certamente não são do gosto de todos. As linhagens mais brandas podem ser mais facilmente apreciadas, já as mais intensas são para pessoas intensas. Não que exista um mérito em apreciar esse ou aquele sabor, essa ou aquela intensidade.
Assim como tudo nessa vida, gosto é gosto e é só provando que se descobre. Busco, aqui, apenas contar uma breve história sobre como surgiram gêneros musicais mais intensos, especialmente os da linhagem do metal extremo, como death metal, grindcore e black metal. Foi à partir daí, acredito eu, que a picância e a intensidade, as vezes amargura, começaram a tomar proporções absurdas. Pelo menos pra época eram. Mas antes de abordar esses gêneros, se faz necessário um breve contexto histórico sobre a vanguarda do Heavy Metal. E pra ajudar na jornada, fiz uma playlist com algumas das músicas que serão mencionadas ao longo do artigo.
O início do fim: A tríade do Heavy Metal dos Anos 70
O ano 1968 foi marcado pelo nascimento de três bandas muito importantes pra história da música. São elas: Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. Amplamente aclamadas, hoje há consenso sobre a importância de seus feitos. Foram de grande influência para os mais diversos artistas, do rock, do punk, do pop, dentre outros. Sob principal influência do hard rock, blues rock, psicodélico e progressivo, a tríade do Heavy Metal ampliava os elementos já postos, como o foco em virtuosidade na guitarra, com riffs e solos mais complexos e rápidos, power chords pulsantes e muita distorção a todo o volume. Um baixo e uma bateria também se faziam necessários para criar uma parede de som pulsante e energética. As temáticas eram mais sérias, falavam da vida e da morte, problemas ideológicos e políticos, religião e ocultismo. Em termos estéticos, o álbum autointitulado Black Sabbath (1970) viria a influenciar as linhagens mais transgressoras ao trazer temáticas sobre satanismo e o oculto, com uma pegada mais diabólica como é possível ver na capa, nas letras e nas apresentações dos integrantes da banda. Outras bandas importantes pra história do heavy metal são Coven, Blue Cheer e Steppenwolf.
O Inferno na Terra – Nova onda do metal britânico
Rock e heavy metal não eram os únicos gêneros musicais da rebeldia. Na verdade, na metade dos anos 70 a primeira geração de punk rock havia saído do underground, tomando conta do mainstream. Em um quase antagonismo, novas bandas de metal surgiram para competir com o punk do rádio. O lançamento do álbum autointitulado Iron Maiden (1980) foi um divisor de águas e marca o início da New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM ou nova geração do heavy metal britânico). Bandas inglesas como Samson e Angel Witch, apesar de não explodirem da maneira que a Iron Maiden, foram parte essencial pra época underground do gênero. Novatas, Diamond Head, Saxom, Raven, Tygers of Pan Tang, Motörhead; e até veteranas, Black Sabbath, Judas Priest, Whitesnake, AC/DC, acabaram surfando nessa onda. Os norte-americanos não ficaram de fora. Com maior apelo as rádios e sob influência de música pop, algumas das bandas mais populares foram Mötley Crüe, Poison, Bon Jovi, Europa e os “traidores” dos britânicos da Def Leppard. O foco aqui era aparências e diversão, as músicas eram como o bom e velho “sexo, drogas e rock’n’roll”. Também nos Estados Unidos uma banda em particular ficou muito popular ao continuar a linha mais bruta do NWOBHM: Metallica. Seguindo uma linha ainda mais abrasiva do que a dos canadenses Exciter e Anvil, os precursores do thrash metal, como o subgênero ficaria conhecido foram Metallica, Megadeath, Slayer e Anthrax. O som dos norte-americanos ficou marcado pela agressividade lírica e instrumental. Especialmente a banda Slayer, como no debut Hell Awaits (1985), mais pra frente viria a influenciar o black e o death metal. Se distinguiram dos britânicos ao aumentar a velocidade e o uso de distorção mais intensa, tanto nas guitarras como na técnica vocal. Enquanto a linhagem do glam, ascendeu e a do thrash continuou a tradição, algumas outras eram domesticadas nas profundezas e continuariam descendo cada vez mais.
Bem-vindo ao Inferno – 1ª Geração do Black Metal
Logo no início dos anos 80, dobraram a aposta de Black Sabbath. Witchfinder General foi pioneiro em ampliar a aura sombria do heavy metal clássico, sendo considerada a primeira banda de doom metal. De modo geral, diferente das outras linhagens, a maneira em que o doom intensifica o metal vem da busca por um som mais grave acompanhado de músicas mais lentas e longas, o que fica bem evidente a medida que o subgênero progride e, influencia e é influenciado por outras bandas do black metal, do rock gótico e do pós-punk. Outras bandas notáveis do início do doom metal foram Saint Vitus, Cirith Ungol, Trouble, Pentagram e Candlemass.
Agora, apostando no oculto, a postumamente intitulado primeira geração de black metal surgia das profundezas. Mais explicitamente satânicas e intensas nas composições, as pioneiras foram Venom, Mercyful Fate, Hellhammer, Celtic Frost e Bathory. Nascida em Newcastle, na Inglaterra, a banda Venom era debochada e ácida. A blasfêmia e o caos de Welcome to Hell (1981) certamente chocou muitos britânicos na época. Com o anticristianismo digno de um especial de natal do Porta dos Fundos, foi no seu segundo álbum, Black Metal (1982) que a banda se destacou. Se o primeiro se tratava de demos, essa já contava com uma produção profissional que possibilitou canções mais atmosféricas, como na intro de Buried Alive. Vocal distorcido, a pá na terra e a respiração ofegante sintetizam essa nova noção de transgressão. Cronos, Mantas e Abaddon também iniciaram a tradição da utilização de pseudônimos tão sombrios quanto a própria imagem.
A banda Mercyful Fate, da Dinamarca, tinha um som que não apontava pra linhagem mais agressiva, porém não deixavam a desejar em questão lírica, teatral e imagética. As letras tinham um tom satânico forte, porém mais sério do que de Venom. Era mais voltado para o satanismo moderno, ou seja, não se baseavam na noção teísta da existência real de Deus ou de Satã e sim na filosofia de LaVey, de 1966. As músicas se aproximavam mais da NWOBHM ou thrash metal do que do black metal de seus contemporâneos, tanto no vocal como na dupla de guitarras. Um bom exemplo disso é a faixa The Oath do álbum Don’t Break The Oath (1984). Em termos de apresentação, faziam uso de ossos e partes de animais como recurso teatral e são tidos como precursores do corpsepaint (face branca, e olhos e boca pretos, normalmente), a maquiagem comumente associadas ao black metal até hoje.
Outra banda influente vem de um pequeno município agrícola na Suíça. Hellhammer teve um início difícil, mas em retrospecto foram aclamados pela inovação. Tom Fischer, idealizador da banda, tinha na música um refúgio. Sobrevivente de uma juventude trágica de abuso e violência, o garoto, quando livre, viria a amadurecer seu gosto musical voltado a linhagens mais extremas. Foi influenciado por bandas como UFO, Discharge, Rush, Motörhead, mas principalmente por Venom. Inflamado pelo single debut In League With Satan (1981) o jovem decide se dedicar ao ofício e, com o pouco que tinha, comprou um baixo. Anos depois ele formou a Hellhammer e fizeram três fitas-demo gravadas precariamente. A oportunidade apareceu pela convocação de bandas extremas feitas pela recém-criada Noise Records, da Alemanha. Em 1984 gravaram um split, Death Metal (não confundir com o subgênero de mesmo nome, explicarei sobre ele mais pra frente) e um EP, Apocalypyic Raids. Apesar da oportunidade, o álbum quase não foi publicado. “Nós chegamos lá como os poderosos da Hellhammer, uma banda de metal radical e extrema, e fingimos que sabíamos de tudo… E não sabíamos. Dissemos, ‘ nós vamos produzir esse EP e blá, blá, blá’, e obviamente ficou horrível pra época” (Dayal Patterson, 2013, p59). A crítica da época foi abismal mas o EP revolucionou a vida dos rapazes. O sonho não terminava ali, mesmo a banda não resistindo ao baque. Logo em seguida, Tom e Martin começaram a repaginar os conceitos postos até então, conceito, estética, álbum, temáticas e até o nome. Frost simbolizava o fim de um ciclo, a queda de uma civilização. No caso, Celtic (pronuncia-se Keltic), em referência a suas raízes. Em junho de 84, Hellhammer morre e de suas cinzas nasce a Celtic Frost. No mesmo ano, o miniálbum Morbid Tales marcaria o novo ciclo, mais inovador, mais pesado, mais groove, melhor gravado e melhor performado. Em 1985, gravam o inovador To Mega Therion com a capa, Satan I, do artista H.R. Giger. Dramático, rítmico e eclético, o álbum é aclamado até hoje e viria a influenciar, não só o black metal, mas muitas linhagens do metal extremo daqui pra frente. E da mesma forma, continuaram inovando nos anos subsequentes.
Outro grande influenciador, Bathory, apesar de chegar um pouco atrasada pra festa, marcou a noite. A capa de Bathory (1984) é inegavelmente icônica, assim como a atmosfera é o som do black metal da segunda geração (como abordarei mais adiante). Certa vez, no site oficial dos suecos, Quorthon teria descrito o som da banda como a “amalgama da penumbra de Black Sabbath, O som de Motörhead e o recém-descoberto frenesi de GBH” (Dayal Patterson, 2013, p37). O primeiro álbum é, sem dúvida, muito importante, mas o segundo, The Return….. (1985), é ainda mais sombrio que o debut e viria a inspirar fortemente o Black Metal dos anos 90.
O Inferno é aqui – Grindcore e Death Metal
Na Inglaterra industrial dos anos 80 ainda imperava o punk rock, sobretudo os da segunda onda. Eram mais velozes mais raivosos e mais revolucionários que nunca, tanto liricamente quanto musicalmente. Naquele ponto, ao contrário da repulsa dos anos anteriores, a colisão e intersecção com o metal era inevitável. O resultado dessa cruza seriam, principalmente, o crust punk e o grindcore. Grosso modo, o crust é mais punk que metal e o grind é mais metal que punk. A cena de ambos gêneros, e outros, não só coexistiam mas se retroalimentavam a cada show e a cada fita-demo ou EP gravado e distribuído. São muitas as bandas importantes que influenciaram essas linhagens, são nomes do Reino Unido como Discharge, Crass, Exploited, GBH; dos Estados Unidos como Siege e Dirty Rotten Imbeciles (D.R.I.); e do Brasil como Ratos de Porão, Cólera, Olho Seco e Inocentes; dentre muitas outras, mundo afora. Vale ressaltar que o punk em solo americano daria origem ao hardcore, mais agressivo e rápido semelhante a chamada segunda onda dos europeus, simplificando. Naturalmente a velocidade das músicas aumentou muito mas nem sempre o apelo técnico e virtuoso acompanhava. Tocar na velocidade de 230 BPM não é exatamente fácil, mas certamente a solos e riffs complexos não era o foco aqui. Mesmo as influências do metal tinham uma abordagem mais simples e crua como por exemplo, as bandas de thrash metal europeu, como os suíços da Celtic Frost (também associada a primeira onda de black metal) e os quatro do thrash alemão, Kreator, Destruction, Tankard e Sodom.
Assim, na metade dos anos 80 já se solidificava a cena do grindcore em volta de selos independentes como o Earache Records de Nottingham e Manic Ears de Bristol. Outro eixo importante foi o bar The Mermaid em Birmingham, responsável por catalisar uma fan base em volta da jovem Napalm Death. Mick Harris, com apenas 19 anos, é tido como o responsável por cunhar o termo blast beat, para descrever a batida veloz utilizada, e o termo grindcore, em referência ao hardcore punk. Foi com o álbum Scum (1987) que Napalm Death virou história. A absurda velocidade, a voracidade e o vocal político e direto viriam a ser o som do grindcore dali em diante, músicas curtas e soco na cara. Em relação a temática, outra forma se destaca. A banda Carcass de Liverpool, como o nome sugere, cantava literalmente sobre morte. A capa de seu debut Reek of Putrefaction (1988) é uma colagem feita com imagens de cadáveres e de autópsias retiradas de literatura médica. O álbum tinha um objetivo simples: ser o mais nojento e abjeto possível. E conseguiram, tanto é que nos relançamentos de alguns anos depois, a capa era outra. Dessa vez, a original ficava na parte de dentro do CD. A medida que a primeira geração de punk e a NWOBHM se tornava mainstream na Europa, os novos subgêneros se espalharam ao redor do globo. Do outro lado do oceano Atlântico, as cenas eram bem mais esparsas, naturalmente, e continuavam se proliferando com o status de movimento underground. Washington D.C., Nova Iorque, Los Angeles, Boston e oeste de Massachusetts; Ontário e Colúmbia Britânica; São Paulo, Belo Horizonte, Santiago, Bogotá, Lima, Cidade do México, para citar alguns eixos. Nos Estados Unidos a versão mais pesada do punk foi chamada de hardcore e trasbordou pras outras nações americanas, além de ter influenciado a cena underground dos europeus, como exemplificado anteriormente.
De Flint, Michigan, Matt e Scott tinham interesses em comum. Os jovens eram entusiastas da cena hardcore e amantes de Celtic Frost e Slayer. Formaram uma banda em 84, primeiro foram Tempter, depois Genocide, Ultraviolence e Genocide de novo, mas sempre buscando tocar rápido. Apesar de altos e baixos, em 86 já tinham certa popularidade localmente. Apesar disso, o agora quarteto, trocou o nome pra Repulsion e com as habilidades mais amadurecidas, viriam a se estabelecer como precursores do grindcore nos EUA. Mas foi em 1989 que o compilado de demos, Horrified, chegaria na Europa, lançados pelo selo da Carcass, Necrosis Records (subsidiária da Earache Records, aquele selo da Napalm Death). Não é a toa que foram notados. A banda tinha um timbre semelhante a Slayer porém mais rápida e compartilhavam da temática gore com os britânicos. The Stench Of Burning Death e várias outras, são sobre apocalipse zumbi, por exemplo. Apesar da vida curta, a banda foi assertiva e deixou seu nome na história do grind americano.
Com apenas 15 anos de idade os amigos de escola formam a banda que anos depois criaria o termo death metal. Os garotos norte-americanos da Possessed buscavam o som e aura sombria dos debuts de Slayer e Venom, satanismo incluso. Se agruparam em 1982 e amadureceram suas habilidades ao participar ativamente da cena de thrash metal em Bay Area, Califórnia. Essa cena também é conhecida por gestar nomes do thrash como Metallica e Exodus. O som era bem semelhante ao thrash, porém bem mais satânico e com vocal muito distorcido. Daí, plantaram a demo Death Metal, em 1984, e no ano seguinte colheram a gravação do álbum Seven Churches. Assim, Possessed influenciaria tanto a cena do thrash metal como a ainda inexistente cena do death metal. São duas as bandas consideradas precursoras no subgênero. Além de Possessed, contribuindo com o nome, atmosfera e vocal mais agressivo que o thrash, Death foi quem deu o passo adiante na brutalidade.
Também criada por amigos da escola, inspirados em Venom e Motörhead. A primeira iteração da banda se chamava Mantas, em homenagem ao guitarrista da Venom. Em 1984 a banda já tinha uma demo, mas tudo mudou quando eles tiveram acesso a demo Death Metal, da Possessed. A epifania gerada nos garotos foi tanta que mudaram o nome da banda pra Death e trataram de engrossar mais a música. No fim do mesmo ano se apresentariam pela primeira vez como uma banda de death metal. No ano seguinte um dos guitarristas sai da banda e em busca de novos integrantes, tentam juntar esforços com os amigos de Michigan da banda Repulsion (Genocide na época). A dupla vai até a Flórida, mas logo desistem e voltam pra reagrupar a banda. Diferenças criativas os separaram, porém acabaram por fazer uma troca importante. Chuck, da Death, tinha em mãos uma demo Surrender or Die da banda underground canadense Slaughter. Era um som ainda mais rápido que o disponível anteriormente e viria a influenciar tanto Repulsion como Death. Em seguida Chuck vai até São Francisco atrás de um bateirista mas acaba voltando em menos de dois meses. Então tenta com uma banda em Toronto mas em dois meses, pula pra outra. O nômade finalmente consegue um parceiro para gravar uma demo, Mutilation (1986), o que rendeu um contrato com a gravadora indie Combat Records. Mais uma vez Chuck retorna a Flórida, mas não sozinho. Em novembro de 1986 nasce o álbum Scream Bloody Gore. Apesar do bom resultado, o baterista acaba retornando a califórnia, deixando Chuck sozinho mais uma vez.
Paralelamente as idas e vindas da Death, a Morbid Angel ia pra lá e pra cá. Formada pelo amor compartilhado por Black Sabbath e Iron Maiden, Mike e formam a banda Morbid Angel. A banda começa oficialmente em 1984. Até 1988, o grupo sofreria diversas mudanças, sendo o único membro constante o guitarrista Azagthoth. O início não foi nada fácil. Eles se mudaram pra Charlotte em função de um estúdio. De dia trabalhavam num lava-jato e de noite ensaiavam e compunham. Foi nessa época que descobriram o álbum Scum dos britânicos da Napalm Death, o que os incentivou bastante. Em 1987, com a demo Thy Kingdom Come em mãos, retornam a Flórida. No ano seguinte já se sentiam prontos para colocar a Morbid Angel no mapa e, depois de muitos telefonemas, saem para sua primeira tour, viajando em um ônibus escolar velho. Os shows eram pequenos, obviamente, mas ainda assim ajudaram a dar forma a cena underground dos Estados Unidos.
A banda Obituary começou ainda mais cedo que as outras bandas mencionadas. Idealizada pelos irmãos Tardy. Apesar da educação católica, a inclinação pra música extrema veio desde cedo. Eles começam na infância com a bateria de um amigo e nos anos seguintes se inspirariam na cena underground local. Em 1984 já tinham uma banda, Xecutioner junto com um colega do ensino fundamental. Inspirados inicialmente pelas bandas emergentes, como Venom, Slayer e Metallica, foi com a descoberta de Morbid Tales, da Celtic Frost, que a imaginação fluiu. Entre 85 e 87, os garotos gravam algumas fitas-demo, que acabam parando nas mãos do editor de zines e futuro jornalista do site blabbermouth, Borivoj Kgin, que se impressionou com o vocal abrasivo de John Tardy. Com sua ajuda, os garotos garantiram um espaço no split Raging Death (1987), abrindo muitas portas pra futura banda Obituary.
Nesse caldeirão com os primórdios do thrash, death, black, grindcore, punk, hardcore música brutal surgia de todos os cantos. Esses jovens rebeldes não são os únicos. Na Suécia, fortemente influenciados pela Bathory e por hardcore local e americano, uma onda de novos artistas surgia e viria a dar a região a alcunha de país do death metal. Entombed, Dismember, Unleashed, Grave e Tiamat, também fundadas por jovens artistas, influenciaram muito no contágio do death pela Europa. Exemplos de bandas notáveis são Fear of God, de Suíça; Disharmonic Orchestra, da Austria; Vader, da Polônia; Krabathor, da antiga Tchecoslováquia; entre muitos outros. Nas Américas, nomes como Sepultura e Sarcófago, de Belo Horizonte; Vulcano, de Santos; Mystifier, de Salvador; Pentagram, do Chile; Mortem e Hadez, do Peru; Autopsy e Cannibal Corpse, nos EUA;
É importante lembrar que distinguir entre primeira e segunda geração é interessante a fim de clareza acerca de diferentes linhagens de black metal, porém tais termos podem dar a entender que são dois conceitos distintos. Na realidade a transição foi gradual à medida que fitas-demo e álbuns eram, de mão em mão, lançados e distribuídos; e interpretados, replicados e/ou expandidos. Esses termos vieram a ser aplicados a posteriori e com distanciamento histórico. Talvez uma melhor interpretação seria a de que, na época, cada artista era considerado mais extremo ou obscuro, do que pertencente a essa ou aquela linhagem. Exemplos perfeitos de elos entre a primeira e segunda geração do black metal são Slayer, dos EUA e três dos Big 4 do thrash teutônico: Sodom, Kreator e Destruction. Com a exceção de Tankard, que segue uma linhagem mais leve, os alemães intensificam bem a temática sobre satanismo, violência, guerra e antifascismo. Outro diferencial é a velocidade e a abrasividade das composições que se equiparam ao punk hardcore da época.
No Brasil, em 1984 e 1985, duas bandas importantes são formadas: Sepultura e Sarcófago. Ambos são considerados os precursores do black, do death, e no caso de Sepultura, do groove e do nu metal. Walter começa na Sepultura mas após desavença com os irmãos Cavalera, sai da banda. No ano seguinte foi convidado pra Sarcófago. Tiveram forte influência de bandas como Black Sabbath, Celtic Frost, Bathory, Napalm Death, Slayer, Exodus, Motörhead além de hardcore gringo e brasileiro. Sepultura sai na frente com o álbum Morbid Visions (1986). Lançado pela Cogumelo Records. O álbum tem uma produção fraca, assim como a performance. Em 1987, lançam Schizophrenia, já com o som mais polido e mais definido pra linha do thrash metal. No ano seguinte assinam com a Roadrunner Records e lançam o álbum internacionalmente. Também em 1987, os mineiros da banda Sarcófago lançam o debut I.N.R.I., pela Cogumelo Records. O álbum também sai do país e viria a ser particularmente influentes na cena do black metal norueguês, influenciando sonicamente com o blast beat e aprimorando no visual malvado e pretensioso, como na capa do debut. Se trata de uma foto dos integrantes num cemitério, usando corpse paint, cruzes invertidas e acessórios de pregos e balas, dando início a tradição das capas de álbum soturnas e monocromáticas, nesse mesmo estilo.
O Silêncio do Morto – 2ª Geração do Black Metal (1990)
Voltamos à Suécia. O ano era 1987 quando Quorthon, com 21 anos, lançava o terceiro álbum da Bathory, o último da trilogia satânica. Under the Sign of the Black Mark é obscuro e cavernoso como os anteriores mas inova na utilização de sintetizadores, elemento que viria a influenciar bandas como Sigh e Samael. A partir daí Quorthon começa sua segunda trilogia, dessa vez focando em cultura nórdica pré-cristianismo. Os álbuns seguintes impulsionaram um novo subgênero, o viking metal. Ao que parece acidental, a segunda trilogia inspiraria o nacionalismo fascista das bandas nórdicas que viriam a incorporar signos ligados a cultura nórdica em seus anseios nazistas. Quorthon nega ter tal ideologia e alega que nessa época seu interesse é exclusivamente na história antiga. É preciso ressaltar que a partir daqui neofascismo é muito recorrente, então é recomendável, a quem tiver interesse em black metal, que pesquise sobre os artistas. Até mesmo aqueles que não aparentam podem compartilhar dessas ideologias. Um bom exemplo atual é a Deathspell Omega que tem atitude suspeita. NSBM (black metal nacional-socialista, essencialmente black metal nazi) é o termo utilizado para se referir ao subgenero dos fascistas. Os seguintes compilados são um bom ponto de partida pra pesquisa: Black Metal: Is it sketch? (“Esse é suspeito?”) https://rateyourmusic.com/list/ChadWorthington1/black-metal-is-it-sketch/3 e Black Metal bands and their politics (“Bandas de BM e suas políticas”) https://rateyourmusic.com/list/HelloInquisitor/black-metal-bands-and-their-politics/3/.
Nesses compilados não consta o perfil de uma banda que será mencionada. Sarcófago é sketchy. São racistas e homofóbicos conforme a entrevista no Fúria Metal em 1997, disponível no Youtube. O entrevistador pergunta pra eles sobre a faixa Purification Process cuja a letra diz “fuck off the gays, fuck off the indians, fuck off the browns”. Eles afirmam se referir apenas a estilos musicais, mas tem que ser muito trouxa pra acreditar nessa resposta. O vocal da música é praticamente inaudível mas o que dá pra escutar não corrobora com a explicação. O álbum em si, pra além de ser bem ruim, trem uma vibe bem reacionária. Enfim, vamos ao que interessa.
No início dos anos 90, Wagner Antichrist, da Sarcófago, já trocava correspondências com o responsável pela atenção negativa em torno do black metal e por sua disseminação. É por aqui que inicia a segunda geração de black metal. E não era o único. Oysten, conhecido como Euronymous, já havia reunido em torno de si popularidade na cena musical da Noruega e em outras cenas mundo afora, como da Colômbia, Japão, EUA e outros. Especialmente depois de abrir uma loja de discos e dar início a Deathlike Silence Records em Oslo. Ele e seu infame grupo, o Inner Circle, viria a chamar atenção pro black metal norueguês das formas mais abjetas e criminosas, incluindo fogo criminoso, suicídio e assassinato. Tudo começa em 1984, quando três adolescentes rebeldes de classe média se encontram. Unidos pelo interesse comum em Black Sabbath, Venom, Motörhead e Celtic Frost, os jovens formam a Mayhem. Eles gravam diversas fitas-demo nessa época. Buscavam fazer música de maneira mais abrasiva possível. Além de utilizarem de agressividade, como seus ídolos, buscavam intencionalmente fazer gravações em péssima qualidade. A transgressão não era só sonora, mas estética, sempre de maneira desconfortavelmente porca. E até aí, tudo bem. Foi em 88 que a situação começa a ficar absurda. Ingressam na banda um bateirista e um vocalista sueco. De pseudônimo Dead, logo de cara já apresentava um comportamento notoriamente evasivo, depressivo e uma estranha obsessão por morte. Isso que só piora quando eles se mudam para uma casa numa região rural. Em 1991, ele tira a própria vida. Ao encontrá-lo, supostamente, Euro retorna para buscar uma câmera e então fotografa o cadáver antes de chamar a polícia. A foto viraria capa de um bootleg. Em luto e enojado pelo comportamento do guitarrista, o baixista deixa a banda, sendo o único virar as costas ao grupo. O comportamento dos integrantes dali em diante piora ainda mais, especialmente de Euronymous que frequentemente se portava como uma pessoa cheia de ódio e malvada, o que, segundo os mais próximos, se tratava de um personagem. Seu discurso envolvia promover um satanismo “real”, anticristianismo e discurso de ódio, sempre em função de criar uma aura em volta de si. De certa forma, funcionou. Em entrevistas e até conversas privadas com as revistas underground da época, Euro performava dessa maneira. No mesmo ano ele abre uma loja de discos, que vira um ponto focal para a cena. Os mais próximos, integrantes de outras bandas, viriam ser conhecidos como o Inner Circle. Se instaurava ali uma aura de culto, com Euronymous como charlatão. E, assim como antes, chegada de outra personalidade problemática tensionou ainda mais a situação. Varg é o nome por trás do projeto Burzum. Ele ganhou atenção do grupo e admiração de Euronymous ao colocar em prática o que antes era apenas discurso. Diversos crimes foram cometidos nessa fase. Incêndios criminosos em igrejas cristãs por autopromoção. Um assassinato de um homossexual. E pra fechar com chave de ouro, em 1993, Varg assassina Euronymous a facadas por uma desavença envolvendo questões financeiras, supostamente. Ele é sentenciado a 21 anos de prisão, levando junto dois cúmplices e o outro assassino. As bandas mais próximas a essa situação foram Thorns, Emperor, Immortal, além da Mayhem e Burzum.
Toda essa situação vira publicidade para o grupo, expondo-os não só para a noruega como para outros países. Apesar dos crimes, o som cortante e obscuro feito nessa época foi extremamente influente, pro bem e pro mal. O black metal já tinha tomado muitas formas diferentes e os eventos ocorridos na Noruega viriam a catalisar muitos outros projetos, com a expansão dos conceitos já estabelecidos, a criação de novos e a fusão com outros. As mais variadas temáticas viriam a ser abordadas para além do satanismo. Religião, filosofia, política, história e ciência. Supremacismo e neonazismo, com o nacional socialist black metal (NSBM); anarquismo e marxismo, com o red and anarchist (RABM). Linhagens formaram um black mais melódico e sinfônico, como em Cradle of Filth. Outras se misturam com música folclórica, como Ulver, Moonfog, Enslaved e Negura Bunget. Outros inovam no campo da música eletrônica, como Beherit, Mysticum e Striborg, todos os três mudando drasticamente seus estilos. Outros tão inovadores e ecléticos que nem me arrisco a classificar, como Sigh, In the Woods... e Solefald. Isso sem falar dos que continuam a expandir as fronteiras, como Krallice, com uma abordagem progressiva, explosiva e atmosférica; Jute Gyte, com música atonal e de ritmos incompreensíveis; Cult of Fire, com mantras dedicados a Kali; Liturgy, com a subversão e superação do “black”; The Botanist, com um dulcimer e uma profecia; Violet Cold, combinando blackgaze, eletrônica e folk azeri. Existem muitos tons de black.
50 Tons de Morte – Nu Metal
No fim do milênio, música extrema já era bem difundida tanto no underground, black, death grind, hardcore; como no mainstream, como glam metal, NWOBHM, punk. Outro gênero musical transgressor muito importante não foi mencionado até aqui. Nos anos 80, assim como o metal e o punk, a cena do hip-hop crescia muito nas margens da cultura contemporânea, cenário perfeito para a formação de mais linhagens inovadoras. Em 1984, início da era de ouro do hip-hop, Run-D.M.C. lança um álbum autointitulado com a música Rock Box, uma das primeiras músicas a fundir rock com rap e o primeiro clipe de hip-hop a tocar regularmente na MTV. Em 1986, é lançado o sucesso Walk This Way, uma colaboração da Aerosmith e Run-D.M.C. Em 1987, o guitarrista da Slayer colabora com a música No Sleep Till Brooklyn dos Beastie Boys. Também em 87, a banda Anthrax lança o EP de rap metal I’m the Man com samples do Run-D.M.C. e dos Beastie Boys. Em seguida, Public Enemy lança a música Bring the Noise com a participação da Anthrax. A colaboração também rendeu uma tour. Em 1989, Faith No More lança o eclético The Real Thing. Em 1990, Primus lança Frizzle Fry. Em 1991, vem o autointitulado Mr. Bungle. Em 1992, tem o rap metal do Body Count, autointitulado. Em 1994, Korn abre a caixa de pandora. Assim se formou o nu metal, simplificando muito. Depois vem Rage Against the Machine, Deftones, P.O.D., Limp Bizkit, Sepultura, System of a Down, Slipknot, Linkin Park e por ai vai. Mais uma vez o underground transborda no mainstream.
Esse artigo não risca nem a superfície do tema, mas espero muito que desperte a curiosidade. O objetivo principal foi catalogar, sobretudo aqueles entre 1980 e 2000, de maneira introdutória os diversos subgêneros para que seja um ponto de partida para uma melhor compreensão da história do heavy metal e também para o descobrimento de novas formas de perceber, sentir e compreender o mundo e tudo aquilo que a arte pode refletir. Além de pesquisar bastante pra tentar ser acurado e sucinto, preparei a playlist com carinho e com muito cuidado para tentar não incluir nenhum artista de má índole ou de ideologia criminosa. Ainda assim vale relembrar que é sempre bom fazer uma pesquisa sobre os artistas do metal extremo. Em seguida, darei uma breve apresentação de álbuns que acho muito interessantes. Eles estão separados entre clássicos e modernos e estão em ordem de ano de lançamento. Caso queira escutá-los enquanto lê, todos eles aparecem ali na playlist.
Os clássicos
Venom | Black Metal (1982)
Newcastle, Tyne and Wear, Inglaterra
Além de dar nome ao gênero, o começo do satanismo explícito é aqui. Nesse caso é de tom satírico, nada de se levar a sério. Levemente mais picante que o rock da época, é energético e animado ao contrário do que a capa sugere. Em comparação ao álbum anterior, Welcome to Hell, um álbum demo disfarçado, é bem melhor produzido e mais refinado. Se é que dá pra chamar de refinado.
O menos black dos metais é bem sombrio mesmo assim. A caveira diabólica da capa não mente. Mas não é exatamente como os outros da primeira geração do black metal. É bem mais sério e filosófico que os outros. Por natureza, afinal é mais sobre um satanismo ateísta, Satanás aqui é mais um símbolo do que qualquer outra coisa. O álbum conta com momentos épicos de vocal de falsete bem agudo e limpo, tipo Iron Maiden e longos solos de guitarra.
Bathory | The Return….. (1985)
Estocolmo, Estocolmo, Suécia
A atmosfera é sombria, a guitarra é bem chiada e embolada; a batida é desleixada e oscilante e o vocal é moribundo e amargo. Black metal 101. Esse álbum é considerado da primeira onda de black metal e é o mais influente nas características sonoras da segunda onda. Com certeza é uma antiobra-prima.
Slayer | Reign in Blood (1986)
Huntington Park, Califórnia, EUA
Da galera do thrash norte-americano, Slayer é de longe o mais rápido, o mais sombrio e o mais satânico de todos. A capa é do artista Larry Carroll. O álbum não chega a ser tão sinistro e grotesco quanto um black metal, mas, com certeza, é pra lá que ele aponta. Tem a batida clássica do thrash, só que mais rápida e com mais pedal duplo. O vocal é bem agressivo e melódico, estilo Metallica. É um clássico do black/thrash que inspirou a maioria dessa lista e provavelmente vai continuar assim. Reign in Blood é o Sgt. Peppers do metal extremo.
Napalm Death | Scum (1987)
Birmingham, Midlands Ocidentais, Inglaterra
Desde o início é bateria a todo vapor. Os riffs são simples e efetivos, como no punk rock, porém com tanta distorção que em momentos nem se entende. Pra combinar o baixo é cheio de distorção, o que ajuda a criar essa onda gigante sonora onde o vocal surfa loucamente. A onda quebra e em seguida vem outra, de novo e de novo. As músicas são bem curtas mesmo, é coisa de dois minutos em média. Cada uma joga na cara do ouvinte duras verdades sobre a nossa sociedade, nada de satanismo e ocultismo. A realidade já é sinistra o suficiente.
Sigh | Scorn Defeat (1993)
Tokyo, Kantō, Japão
Segue bem a fórmula do black metal da segunda geração. Aura fantasmagórica, guitarra opressora, batida pesada e vocal demoníaco. Em contraste, chama a atenção o uso de piano e órgão em momentos chave, dando continuidade a melancolia porém de maneira graciosa, mostrando uma faceta virtuosa do compositor. Outro diferencial vem do uso da mitologia Hindu como pano de fundo. O álbum descreve o apocalipse ou o fim do quarto yuga, segundo hinduísmo. Ready for the Final War descreve o momento em que Kongoyasha, Fudo, Gundali, Daiituko e Gouzanze empunham suas espadas antes do fim. “Adentrando no vazio, onde nem mesmo a escuridão pode existir, então apenas chore nesses destroços”.
Ulver | Bergtatt (1995)
Oslo, Noruega Oriental, Noruega
Apesar de ser contemporâneo e conterrâneo dos artistas mais problemáticos da noruega, aqui a pegada é bem menos caricata. Não que não seja sombrio mas a produção é bem mas apurada, as músicas são mais polidas. A atmosfera não é desconfortável, mas também não é amigável. Como a floresta da capa, onde, segundo a letra das músicas residem trolls sedentos por cristãos. Também diferente dos outros, o vocal limpo é predominante. O vocal distorcido é dedicado somente aos trechos mais rápidos e barulhentos. Chama a atenção o contraste atingido ao trazer trechos complexos de violão logo após o rugir da guitarra. Chama atenção também a dinâmica, o álbum conta com momentos de maior volume e de menos volume, criando uma espacialidade rara nos primórdios do black metal. A quarta faixa, Een Stemme Locker, é um dos momentos mais marcantes do álbum. São dois violões, uma simples percussão e vocais etéreos e sombrios, criando uma atmosfera melancólica e opressora.
Death | Symbolic (1995)
Altamonte Springs, Flórida, EUA
When did it begin? (Onde começou?) É contra intuitivo, mas é sobre a vida. O álbum começa com Symbolic que começa com um andamento bem contido, porém manco; com uma conversa filosófica e séria. Logo em seguida a velocidade aumenta e o pedal duplo come solto. Um breve respiro e começa de novo. E assim segue, filosófico e cerebral, com solos complexos. Mesmo nos momentos mais fictícios o álbum, como em Misanthrope, serve ao terreno sempre. Nessa faixa fala sobre um ser estelar que nos observa coletivamente e ele odeia o que vê. De certa forma o álbum inteiro é assim, reflexões sobre conflitos da humanidade, simbólico.
Sepultura | Roots (1996)
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Um clássico do nosso país. Mistura música indígena e africana com o peso da guitarra, groovado e agressivo que traz das profundezas um ódio milenar. Para a criação do clássico, os mineiros buscaram se voltar as raízes da nossa cultura, então viajam até o Mato Grosso conhecer a comunidade Xavante na terra indígena Pimentel Barbosa em Canarana. Eles saem de lá inspirados e com duas faixas, Itsári e Canyon Jam. Lá ocorre uma troca muito importante pra história da música nacional.
11Meshuggah – ObZen (2008)
Umeo, Västerbotten, Suécia
ObZen é tão influente que é discutível a criação de um novo subgênero do metal: o Djent. O nome é em referência a onomatopeia do palm mute numa guitarra de 8 cordas. É basicamente o som percussivo estranho como no verso de Electric Red. Por mais estúpido que pareça, esse tipo de guitarra deu origem a inúmeras bandas que buscam imitar esse rugido grave para ser usado de maneira rítmica. Pra que usar um baixo se existem guitarras de 8 cordas, não é mesmo? Faz perfeito sentido. Pra além desse timbre peculiar, o ritmo consegue ser mais absurdo ainda. Esse é o tipo de coisa que é melhor mostrar do que explicar, então não vou nem tentar explicar. Adianto aqui que o baterista não é um robô, é de fato um humano, por incrível que pareça. Fato curioso e menção honrosa: o baterista, o Thomas Haake, é casado com a Jéssica Pimentel. Ela é mais conhecida por seu papel em Orange is the New Black mas também é vocalista das bandas Alekhine’s Gun e da clássica Brujeria (ella es La Bruja Encabronada), ambas do death metal.
Os Modernos
Krallice | Years Past Matter (2012)
Nova Iorque, NY, EUA
Esse é uma montanha-russa do início até o fim. Uma não, muitas emendadas. As músicas não tem uma estrutura clara, a cada trecho vai avançando e avançando, com um trecho mais forte que o outro. O ritmo é abstrato como o nome sugere e fluido como a lava retratada na capa. “Anos Após a Matéria” é uma viagem sem volta pra além da existência da vida nesse universo.
Solefald | World Metal. Kosmopolis Sud (2015)
Kristiansand, Agder, Noruega
O nome da banda significa “pôr do sol” na língua nórdica antiga. As temáticas da banda tendem a ser mais cabeçudas, são sobre filosofia, política, história e coisas do tipo. E pra combinar, o som é bem eclético. A faixa de abertura é sobre a história da humanidade e incorpora vários tipos de música ao longo dos oito minutos. A faixa dois questiona a história moderna. A quarta conta a história moderna. As mais pesadas são a seis e a sete, que falam sobre o atentado em Oslo de 2011 e sobre luto. As letras são em inglês, francês e norueguês, colocando ainda mais variedade pro mix. É um álbum muito detalhado e interessante, assim como os outros da banda.
Al-Namrood | Diaji Al Joor (2015)
Arábia Saudita
Al-Namrood é uma das bandas mais underground que existem e não é por opção. Num país onde religião é política, a sharia wahbabita, não existe nenhuma possibilidade da banda ver a luz do sol. Nesse caso, desafiar a religião é punível por lei, quem dirá em forma de black metal. Ainda assim, desde 2008 o trio lança suas músicas na internet. No início, no estilo lo-fi e cru característico do gênero, mas com o passar dos anos as produções foram melhorando cada vez mais. O quinto álbum da banda, Diaji Al Joor, representa fortemente a crescente da banda, em termos de composição, produção e emoção. Logo na primeira faixa a atmosfera desértica é posta. O vento sopra, uma harmonia de neys, um oud, um canto sinistro é a prenuncia de que algo sombrio está por vir. Em seguida a percussão e o oud anunciam o começo. Outros instrumentos marcantes desde a primeira faixa são o qanun, semelhante a uma harpa; o darbuka, tipo um tambor; e o violino. Em entrevista com a Vice, Mephisto revela: “Não há o que explicar, os conceitos envolvidos no black metal descrevem o que estamos experienciando. (…) O que pode ser mais motivante do que viver num país onde tudo é controlado pela religião?”
Zeal & Ardor | Devil Is Fine (2017)
Nova Iorque, EUA/Basileia, Suíça
Manuel Gagneux conta em uma entrevista sobre seu post em um fórum sobre música que gera a temática que muda o conceito de black no metal. E se os escravizados trazidos pras Américas tivessem se revoltado contra a imposição ao cristianismo? E se buscassem aliança com o inimigo para a destruição de seus mestres? Daí surge a mistura de gêneros afro-americanos estadunidenses (da ancestralidade de Gagneux) com o black e death europeu. A banda formada na suécia seguiu essa linha no álbum seguinte, Stranger Fruit, e mais recentemente divergiu dessa formula em favor de novas misturas de gêneros bem interessantes.
Botanist | Collective: The Shape Of He To Come (2017)
São Francisco, Califórnia, EUA
Diferente dos outros álbuns de Otrebor, a primeira faixa entrega a identidade do instrumental. Não existem guitarras em suas composições. O baterista, buscando dar forma ao conceito, escolhe o dulcimer de martelo como instrumento tonal e começa a praticar. É uma espécie de harpa em uma caixa trapezoide tocada com martelos de madeira semelhantes a baquetas de bateria. Dessa forma ele conseguiria transferir seus conhecimentos percussivos e compor black metal sobre plantas. O conceito da banda gira em torno desse personagem perturbado, o botanista, que busca exílio na floresta por odiar o avanço tecnológico as custas da destruição dos ecossistemas. Em solitude, o botanista recebe mensagens proféticas sobre o apocalipse Verdante. Infelizmente, no momento da escrita desse artigo, o site que explicava a história e os termos utilizados nas músicas encontra-se fora do ar. Todavia, em Collective, a mensagem é clara em relação a profecia. Essa obra inova muito em cima de conceitos básicos do black metal. Como sugerido em outro álbum, a obra de Otrebor se trata de green metal.
Alien Weaponry | Tangaroa (2021)
Waipu, Bream Bay, Nova Zelândia
A primeira vez que eu vi uma seleção neozelandesa performando um haka (num dos jogos olímpicos, eu acho) eu me impressionei muito. “É muito do rock”, eu pensei. Experienciar todo o poder do haka em um álbum de metal é absolutamente incrível. Tangaroa é cheio dessa energia empoderadora. O instrumental se encaixa perfeitamente com o canto de guerra, é groovado e dançante, a guitarra é bem pesada e percussiva. E colocando no contexto lírico, faz mais sentido ainda. O álbum é cantado em inglês e em maori e fala sobre a mitologia local e da colonização sangrenta do império britânico. Pra quem gosta de metal, esse aqui é obrigatório.
Wormrot | Hiss (2022)
Singapura
Singapura é o país dos precursores do metal védico, Rudra. Mais recentemente, os mais populares são da Wormrot, desde 2010 assinados com a lendária Earache Records. Hiss não é só grindcore, é hardcore, é thrash, é black. Vocal ora furioso ora poderoso; riffs memoráveis, riffs porrada, riffs black; blast beats insanos e várias batidas diferentes; e um violino absurdo. É um álbum muito versátil considerando que o foco deles é grindcore, gênero que por vezes não tem muita nuança e variedade de emoções. É muito memorável considerando que tem 21 faixas e só 32 minutos. Na verdade parece ter bem menos faixas de tão bem que uma leva a outra. Fato curioso: Wormrot tinha uma fã muito fofa e excepcional. Seu nome era Biquette (~2003 – 2013), também conhecida como a cabra do punk rock. Ela teve um momento de fama em 2012 quando postaram fotos suas na internet. Até onde sei, é a primeira fã de grindcore não-humana já registrada.
Liturgy | 93696 (2023)
Brooklyn, Nova Iorque, EUA
Haela Hunt-Hendrix é provavelmente uma das artistas mais inovadoras da lista. A americana vem trabalhando seu estilo de composição desde 2008 a fim de virar o conceito de black metal do avesso. Em 20xx em um manifesto, Transcendental Black Metal – a Vision of Apocalyptic Humanism, a compositora define o que busca fazer como transcendental em oposição ao que chama de hyperbolean black metal, fazendo referência a segunda onda de black metal. Ali ela define a filosofia de seu trabalho em busca de superar a tradição de ampliar cada vez mais a intensidade para além do círculo vicioso depressivo que não tem início ou fim. A saída, dentre outros aspectos, seria se desfazer do uso do blast beat em troca do que chama de burst beat. Em resumo, seria mais fluido e mutante que o “um-dois, um-dois, um-dois” do blast beat tradicional. Esse papo cabeçudo, por mais pretensioso que pareça, deu força pra que Haela fizesse esse tipo de metal de luz, empoderador, pulsante e fluido. Isso sem falar da questão espiritual trazida por sua filosofia, que, francamente, eu não compreendo. A pesar da noção de ritmo mais fluido não ser coisa criada aqui, certamente a versão proposta chama a atenção, não só pela complexidade mas pela intensidade e sinceridade emocional que as transições, viradas e erupções proporcionam. Os elementos trabalhados nos cinco álbuns anteriores se convergem nesse, que é facilmente um dos melhores álbuns dessa lista.
Arka’n Asrafokor – Dzikkuh (2024)
Lomé, Maritime, Togo
Arka’n é muito assertiva em seus feitos. Se trata da primeira banda de metal de Togo, pequeno país da África ocidental, próximo da Nigéria e da Costa do Marfim. Dzikkuh traz elementos da cultura Jeje pro universo do metal. A fusão de elementos do thrash, groove, nu e metalcore, com padrões rítmicos complexos criam o que chamam de afro metal ou asrafocore (asrafo significa guerreiro em jeje). Esse álbum tem a atmosfera única da Terra-mãe, empoderadora e feroz como o rugido da leoa. Assim como fazem Alien Weaponry e Sepultura, furar a bolha da hegemonia rítmica ocidental é fundamental para a difusão da música extrema ao redor do planeta. Esse álbum é obrigatório pros metaleiros e curiosos.
Oranssi Pazuzu – Muuntautuja (2024)
Tampere, Bircária, Finlândia
Um sonho febril. Aparição alien ou alucinação sideral? Logo de cara o ouvinte é apresentado com esse ritmo estranho, pulsante, que vai até o fim da música e ainda sim a construção atmosférica do clímax segue com riffs graves e rítmicos. O vocal absurdo e a letra em finlandês corroboram muito pra uma vibe psicodélica e alienígena. Quando cheguei em Valotus, a sexta de oito faixas, achei que era o fim. O que diabos poderia vir depois da morte. A cada sequência de ghost notes, um pouco mais perto do centro do pesadelo. Provavelmente uma das músicas mais catastróficas que já escutei. Mas realmente tem vida após a morte. As últimas duas faixas mostram justamente a contemplação do resultado da bad trip astronômica.
O que faz a Música Soar Assustadora (The Beat)
Artigo escrito por Zoe Sones, e publicado em 9 de junho de 2022 no blog The Beat, que pode ser conferido aqui.
O que é exatamente que faz músicas soarem tão assustadoras? Vamos mergulhar na teoria por trás das trilhas sonoras de Terror para entender como elas provocam medo.
Todos nós estamos familiarizados com o tipo de música dos filmes de terror que causa angústia e ansiedade. No momento em que uma trilha tortuosa começa a tocar, sabemos que o destino dos personagens na tela não é promissor. Mas você já se perguntou o que exatamente torna as trilhas sonoras tão assustadoras?
Como compositora, escrever música que deixa o público desconfortável e carrega um tom sinistro é algo que eu realmente aprecio. Por isso, vamos reservar um momento para explorar as técnicas que os compositores usam para alcançar esse mundo sonoro específico e como usar essas teorias a seu favor ao adicionar trilhas sonoras ao seu próprio filme de terror.
O Poder da Dissonância
Dissonância refere-se à falta de harmonia na música. A dissonância faz com que seu público se sinta inquieto e ajuda a criar tensão e um senso de movimento nas composições. Normalmente, temos tonalidades maiores e menores na música. A tonalidade maior comumente proporciona um clima positivo e alegre, enquanto a menor está associada à sensação de tristeza ou escuridão.
Tudo isso está relacionado aos intervalos entre cada uma das notas em uma tonalidade específica: em uma tonalidade menor, as notas são rebaixadas, o que altera muito a sensação geral.
A dissonância é uma técnica fundamental usada em trilhas sonoras de horror para aumentar esse desconforto e medo. Isso é alcançado por meio de duas ou mais notas tocadas juntas, que não soam muito agradáveis ao ouvido. Na Teoria Musical Clássica Ocidental, a dissonância geralmente é resolvida para aliviar a tensão, mas neste caso, ela permanece ali, permanentemente pairando sobre nós.
Um exemplo de dissonância pode ser encontrado na trilha sonora de Bobby Krlic, no filme Midsommar. A faixa "Gassed" começa com uma nota longa e sustentada de violino enquanto outra entra, movendo-se ao redor da nota fundamental em completa dissonância. Impactante, não é?
Contraste e Transição
O princípio do contraste afirma que as músicas devem apresentar ideias opostas à medida que progridem. Enquanto Midsommar possui seu mundo sonoro escuro e assustador, Bobby Krlic também utiliza tonalidades que soam mais esperançosas, mas ainda assim têm um subtexto perturbador. Isso é alcançado por meio da transição entre trechos contrastantes. Quando vamos em direção ao final do filme, existe tanto a sensação de alívio misturada com um receio perturbador; a música transmite isso perfeitamente.
A peça “Fire Temple” é inicialmente calma, com cordas suaves tocando acordes lentos. Embora tenha um longo desenvolvimento, ela se torna amarga com a introdução de tremolo (repetição rápida de notas) e cordas agudas que soam como gritos. Essa mistura entre dois mundos sonoros opostos deixa uma sensação angustiante, assim como o que você vê na tela.
Texturas Ásperas e Ritmos Pulsantes
A textura musical é como as camadas de som são construídas e como interagem entre si. É muito semelhante a como você sentiria um objeto tátil com suas mãos. A suavidade de um cobertor macio é reconfortante, mas a textura de uma cama de pregos é muito menos acolhedora. O mesmo acontece com o som.
A combinação de texturas inclui drones baixos com sussurros sinistros de outros sons, texturas de acordes mais densas com progressões de acordes mais ásperas e gritos instrumentais de alta frequência. Muitas trilhas sonoras terão explosões súbitas para complementar sustos repentinos.
O exemplo mais famoso é a trilha sonora de Bernard Herrmann para a cena do chuveiro em Psicose. Não apenas as cordas agudas tocam em completa dissonância, mas elas tocam cada nota acentuada, em uma dinâmica alta, provavelmente tocadas com o calcanhar do arco para um som mais áspero e agressivo. O ritmo constante imita o efeito da facada, outra maneira de implementar um medo indefinido!
Uma das técnicas de composição mais populares utilizadas são os drones baixos. O desenvolvimento lento e profundo proporciona uma textura ambiental sombria, que contribui para a construção da tensão. Para aprimorar ainda mais isso, colocar um ritmo pulsante por cima também pode adicionar antecipação e criar o efeito de um batimento cardíaco.
Os compositores podem explorar essa ideia alterando o ritmo; ter um ritmo de batimento cardíaco irregular pode aumentar a ansiedade, mas manter um ritmo constante também pode ter o mesmo efeito. Howard Shore, que compôs a trilha sonora de O Silêncio dos Inocentes, utiliza essa técnica. Não apenas a linguagem harmônica é assustadora com sua natureza dissonante, mas a adição dos timbales sobre a sequência de acordes destaca a angústia do que está acontecendo na tela.
O ritmo pulsante também pode ser interpretado no tema de Tubarão. John Williams compôs um tema cromático característico, alternando entre duas notas a meio tom de distância uma da outra, acelerando gradualmente como se um enorme tubarão estivesse prestes a atacar!
Instrumentação
Entre todas as características musicais técnicas já discutidas, não devemos esquecer a escolha dos instrumentos. Embora haja uma vasta quantidade de opções de instrumentação, uma escolha popular é a Família de Cordas. Ela oferece uma paleta muito versátil de tons, texturas, timbres e dinâmicas para incitar o medo. As cordas mais baixas (contrabaixo e violoncelo) podem tocar drones rumorejantes muito baixos, com a capacidade de aumentar dinamicamente ao adicionar mais pressão ao arco.
As cordas mais altas (violinos e violas) podem tocar passagens alarmantes, imitar gritos, uivos e até facadas! O uso do arco pode mudar o som de muitas maneiras: tocar mais perto do calcanhar do arco para um timbre mais agudo, tocar mais perto da ponte para um som semelhante ao vidro (conhecido como sul ponticello) e repetir rapidamente os golpes do arco para um som tremulante (conhecido como tremolo).
Não apenas instrumentos acústicos são utilizados, mas as maravilhas da tecnologia musical ampliaram ainda mais as possibilidades de encontrar outros sons para criar uma atmosfera assustadora. A criação das DAWs (estações de trabalho de áudio digital) permite que os compositores melhorem a experiência do ouvinte, incluindo mundos sonoros mais imersivos. Os métodos de edição de áudio tornaram o processo de composição muito mais empolgante, já que criar essa paisagem sonora de horror com mais parâmetros disponíveis pode, em última análise, levar o ouvinte a outro mundo.
Voltando a Midsommar, a faixa “Hålsingland” tem esse incrível drone pulsante lento, acompanhado por ondas de som sinistras, que só foi possível graças à tecnologia musical atual.
Os sintetizadores proporcionaram uma gama mais ampla de sons para explorar. John Carpenter, que compôs as trilhas sonoras de Halloween e The Thing, demonstra a versatilidade do sintetizador na criação de trilhas sonoras assustadoras. Mais recentemente, Stranger Things ressuscitou aquele som de sintetizador dos anos 80 na cena de horror, não apenas nos levando de volta à década, mas ainda assim alcançando aquela sensação creepy.
Portanto, da próxima vez que você decidir ter uma noite de filmes de terror, preste atenção àquelas riffs dissonantes, às texturas perturbadoras e aos ritmos pulsantes, e permita que elas inspirem o tema musical perfeito para seu próximo filme ou curta-metragem de terror. Estude como elas te fazem sentir desconfortável e como funcionam dentro da edição e da história. Isso, sem dúvida, levará sua cena assustadora para o próximo nível.
Artigo | Aphex Twin - Come To Daddy (Universidade de Edinburgo)
CLAMANDO CHRIS CUNNINGHAM PARA O CINEMA BRITÂNICO
O videoclipe mais assustador da história e sua influência no cinema britânico
Nota do tradutor:
A influência de Richard D. James no cenário musical é inegável. Sua importância vai muito além da música eletrônica, impactando profundamente a música como um todo. Desde artistas consagrados como Radiohead e Björk, que publicamente o admiram, até Kanye West, que utilizou a melodia marcante de "Avril 14th" como peça central na faixa "Blame Game" de My Beautiful Dark Twisted Fantasy — James, mais conhecido por seu pseudônimo Aphex Twin, deixou uma marca indelével.
Mesmo que você não reconheça o nome, é bem provável que já tenha tido contato com sua identidade visual intrigante e provocadora. No entanto, muitos talvez não tenham dado a devida atenção aos seus álbuns extensos, sem elementos vocais, focados em sons ambientais e altamente experimentais. Esses trabalhos desafiadores podem ser difíceis de abordar à primeira vista, mas revelam uma profundidade sonora rara.
Ao mesmo tempo em que cria algumas das músicas mais emocionantes e sensíveis da música contemporânea, Richard D. James, unindo forças ao diretor Chris Cunningham, é responsável por uma das peças audiovisuais mais perturbadoras de todos os tempos. Para quem se arrisca a assistir pela primeira vez, é uma experiência que, sem dúvida, causa impacto.
A história por trás de uma de suas músicas mais desconfortantes é tão estranha quanto fascinante. Em uma entrevista concedida em 1997, James compartilhou o curioso relato:
"Essas palavras estavam em uma carta que recebi de um fã há muito tempo. Veja, eu fiz a faixa em sua forma original há cerca de dois anos e meio, no mesmo dia em que recebi essa carta maluca. Ela terminava com 'Eu quero sua alma, eu vou comer sua alma, eu quero sua alma'. Eu não consegui entender o que aquilo significava, mas achei que soava bem."
Esse relato de origem já estabelece o tom desconcertante da música, que, quando unida ao videoclipe, cria uma experiência audiovisual quase apocalíptica. Desde o primeiro segundo, a sensação de desconforto se instala. Elementos dissonantes e industriais se sobrepõem, criando uma atmosfera claustrofóbica e ameaçadora que se intensifica até o fim, sem um momento sequer de alívio.
Richard D. James desafia nossos sentidos, nos conduzindo por paisagens sonoras e visuais que alternam entre o sublime e o perturbador. Essa dualidade é o que o torna não apenas um ícone da música eletrônica, mas uma figura essencial na música contemporânea.
"As letras da faixa do Aphex Twin são claramente influenciadas por Hellraiser (1987), de Clive Barker, em que o personagem Frank repete a frase 'Come to Daddy' (Venha para o Papai), e o personagem 'Pinhead', quando diz as palavras 'Vamos despedaçar sua alma'. O uso da frase 'Come to Daddy' em outros filmes de terror (por exemplo, quando é dita por Freddy Krueger em A Nightmare on Elm Street 4: The Dream Master (1988)) reforça a ideia de que Cunningham/James estão explorando o potencial de choque/cômico ao transplantar um clichê do cinema de fantasia para os espaços monótonos da decadência urbana."
Filmado em um conjunto habitacional em Thamesmead, no leste de Londres, Come to Daddy é, para mim, a produção de Cunningham mais nativa em termos de sua iconografia e seu engajamento com ideias associadas à delinquência e aos 'efeitos da mídia' na imaginação popular britânica (embora não exclusivamente). Mesmo que seja facilmente classificado como um videoclipe, dado seu papel na promoção de um EP homônimo de Aphex Twin, Come to Daddy apresenta desde o início um desafio sutil à ortodoxia dos videoclipes, ao impor o nome do diretor, do músico e do título quase subliminarmente sobre as imagens por meio de flashes rápidos e cores atenuadas. Além disso, o símbolo familiar de Aphex Twin – um logotipo de marca que não carrega nenhuma referência conhecida – é visto mudando rapidamente de um lado para o outro para um sinal (reminiscente dos associados a banheiros públicos) que sugere a forma humana; isso antecipa não apenas a imagética que está por vir, mas também a tensão mais ampla do vídeo entre abstração e figuração.
"O videoclipe de seis minutos começa com enquadramentos que estabelecem uma atmosfera de suspense – acompanhadas por sons eletrônicos inquietantes – de um bloco de apartamentos cinza e de concreto e a chegada de uma mulher idosa, que parece vulnerável, acompanhada de seu grande grande cachorro inquieto que fareja uma pilha de lixo e, em seguida, urina em um pequeno televisor abandonado. Isso traz à vida uma imagem digitalmente mutável de um rosto na tela recém mijada. A face transmutada é de Richard James, e a faixa musical, descrita como 'horror jungle' (Young 2005: 78), começa com sua voz agressivamente processada gritando 'Eu quero sua alma'. Isso chama a atenção de um grupo de algumas pessoas pequenas (daqui em diante, crianças Aphex), todas com o sorriso característico de James em seus álbuns (Matthews 2004), apenas identificadas como femininas ou masculinas através de seus uniformes escolares ou casacos parka (uma referência, talvez, às evocações cult britânicas da cultura 'mod', notavelmente em Quadrophenia (1979)). Elas correm descontroladamente, brigam entre si e assustam um morador em uma área de estacionamento. O televisor com o rosto de James é acidentalmente derrubado, e isso libera o “nascimento” de uma criatura esquelética, semelhante a um humano, através de uma tela membranosa, que então – agora com o familiar rosto de James – se coloca orgulhosamente sobre seus 'filhos' em uma névoa que obscurece qualquer sentido de um local específico. Os últimos 40 segundos do vídeo cortam rapidamente entre a criatura se movendo de forma rígida e flashes abstratos da imagética anterior: o rosto da TV, estático, a velha aterrorizada, os blocos de apartamentos, flashes de luz, respingos e as crianças Aphex em fúria. Em um momento, a criatura coloca as mãos sobre a cabeça em uma posição de submissão, como se estivesse espelhando a própria subjugação do espectador ao ataque sonoro e visual avassalador do vídeo; além disso, em um dado momento, é vista usando um pano sobre suas genitais que pode ser tanto uma fralda infantilizadora quanto uma tanga, reforçando a interpretação da criatura como uma figura de Jesus que sofre."
Embora o vídeo seja principalmente editado de forma associativa aos ritmos intensos da música, em vez de seguir o estilo de continuidade cinematográfica tradicional, há instâncias de construções de plano-contraplano para transmitir o ponto de vista e evocar suspense ou ameaça. Por exemplo, antes que as crianças Aphex sejam reveladas, uma série de tomadas utiliza a convenção do horror/thriller de um observador invisível – significada por uma visão levemente obscurecida de onde a mulher percebe um movimento. O nascimento pegajoso da criatura da televisão, uma evidente homenagem a Videodrome (1983), conecta-se claramente com uma tradição de “horror corporal” focada anatomicamente, ligada a figuras como Cronenberg e Clive Barker; a criatura é revelada de forma incremental por meio de imagens fragmentadas que geram ansiedade sobre sua forma e o que ela pode fazer com a mulher.
Para Tristan Fidler, ao se basear em paradigmas relacionados à construção do corpo cinematográfico, Come to Daddy é um emblema da visão “pessimista” de Cunningham – como visto em outras obras como Only You e Afrika Shox – sobre a ‘relação negativa entre o corpo humano e o espaço urbano, repleta de tensão e desconforto’ (2007: 130). Assim, as crianças Aphex personificam uma experiência de alienação no conjunto habitacional por meio de seu comportamento fisicamente e socialmente disruptivo, enquanto a criatura da televisão também fica sozinha e alienada, enfatizando uma ‘sensação geral de desconforto diante do Outro espetacular’ (ibid.: 141). No entanto, interpretar Come to Daddy como meramente um ‘grito contra a decadência urbana’ (Hanson 2006: 15) é uma leitura excessivamente reducionista de sua investigação mais complexa das ansiedades na imaginação popular britânica relacionadas aos conjuntos habitacionais, lugares que têm sido explorados na mídia impressa e visual como 'cifras... abreviações para fazer um ponto sobre a sociedade em que vivemos’ (Hanley 2007: 183). Na época de Come to Daddy, o conjunto habitacional já estava firmemente estabelecido como um cenário recorrente para um certo tipo de cinema britânico socialmente consciente, com uma postura ambivalente sobre questões de agência e aprisionamento: pode-se contrastar, por exemplo, a maneira como os personagens são sobrecarregados por seu ambiente em Raining Stones (1993) de Ken Loach com o senso de direito das adolescentes exibicionistas de Rita, Sue and Bob Too! (1987). No entanto, com sua abordagem mais lúdica do que didática, Come to Daddy é melhor apreciado como um precursor de representações ‘fantasiosas’ como a comédia dramática de televisão Shameless (Channel 4, 2004–13) e o filme de terror Attack the Block (2011), que em grande parte evitam o naturalismo, mas ainda assim intervêm em debates políticos em torno da ‘classe subalterno’. Embora o vídeo seja atípico de Cunningham em sua utilização de um cenário ‘do mundo real’ reconhecível, o conjunto habitacional oferece uma plataforma ideal para sua fusão característica de figuração e abstração. O conjunto habitacional foi definido como um ‘encontro do modernismo arquitetônico com os ideais do estado de bem-estar britânico’ (Taunton 2010: 176), e Cunningham encontra uma equivalência à violência sônica da faixa em composições e edições que exploram as linhas e formas brutalistas do ambiente, ao mesmo tempo em que utiliza personagens para sugerir um cenário de proteção paternal alternativa àquela do estado. Em um ponto, perto do final do vídeo, uma tomada das paredes do conjunto habitacional se torna inesperadamente sujeita a um efeito de degradação, como se a interferência vista anteriormente no monitor de televisão tivesse sido transferida, assim como a criatura dentro dele, para o 'mundo real'. Embora o efeito contribua para a progressiva confusão do vídeo entre realidades mediadas e não mediadas, também alude à vigilância de espaços públicos por meio da tecnologia de CFTV, ou pelo menos ao colapso de tal monitoramento."
"Ao retratar entidades físicas sem uma clara “classificação como criança ou adulto’ (Fidler 2007: 135), Come to Daddy complica uma leitura simples de sua narrativa em termos de efeitos da mídia. Enquanto são as imagens agressivas na tela da televisão que dão origem a uma ameaça monstruosa e física para a mulher idosa (que pode ser interpretada como representativa do tecido social mais amplo), e que aparentemente impulsionam as crianças Aphex em direção à delinquência, a criatura da televisão também traz calma e unidade para os menores. Para o espectador britânico, pelo menos, esses elementos de Come to Daddy podem remeter ao pânico dos ‘video nasties’ do início dos anos 1980, relacionado aos medos sobre o possível impacto do conteúdo explícito e não regulamentado sobre as crianças (veja Egan 2007). Curiosamente, o próprio Cunningham delineou, no contexto da imposição de classificações de idade pela British Board of Film Classification em vídeos online, o impacto formativo do material ‘extremo’ em sua própria criatividade:
"Eu costumava assistir a video nasties. Foi uma má ideia? Eu não sei, mas poder tomar essa decisão por si mesmo é mágico... Quando criança, eu realmente não fazia distinção entre olhar um livro sobre pintores surrealistas, um livro sobre como Tom Savini fez efeitos de gore ou um videoclipe. Para mim, tudo é arte... Durante um tempo, os videoclipes foram um substituto do que o cinema de vanguarda estava fazendo. Se você quisesse ver algo de vanguarda ou surreal, era mais provável que visse em um videoclipe do que em um filme." (Monroe 2015)
"No entanto, a música ‘Come to Daddy’ tende a ser vista, em parte, como uma crítica paródica aos ‘hits de dança eletro-rock’ da época, particularmente o sucesso techno de 1996, ‘Firestarter’, do The Prodigy (Fidler 2007: 131). E, como mencionado anteriormente, o vídeo também é uma continuidade do uso de Aphex Twin de seu próprio ‘rosto e corpo [na arte de capas e vídeos] como um ataque brutal à imagética excessivamente cosmetizada do pop contemporâneo’ (Shaughnessy 2005: 81). Nesse sentido, Rob Young observa como o desconforto de Richard James com sua crescente reputação levou a uma “decisão consciente de retaliar, despedaçando sua imagem, cortando imagens digitais suas, fazendo-se parecer um louco borrado” (2005: 77–8). Um precursor notável do vídeo de Cunningham é o clipe promocional de David Slade para ‘Donkey Rhubarb’ (1995) de Aphex Twin, que também possui um cenário urbano e apresenta três pessoas vestidas em trajes de ‘urso’ peludos, personalizadas com os rostos idênticos e planos do músico, que brincam, brigam e fazem gestos sexuais – incluindo um movimento de ‘impulso de quadril’ que é repetido (a intertextualidade é presumivelmente deliberada) por uma das crianças Aphex em Come to Daddy. Embora totalmente inesperados, os seres aqui, às vezes filmados interagindo com crianças ‘reais’, são estranhamente semelhantes aos personagens do programa infantil da BBC, Teletubbies, que estreou em 1997. Dado que Teletubbies e Come to Daddy compartilham uma concepção de figuras infantis que recebem e internalizam transmissões de vídeo, talvez não seja uma ideia tão descabida sugerir que Aphex Twin e Cunningham estão canalizando uma ideia mais ampla tanto na cultura popular quanto na teoria pós-moderna sobre crianças e formação cultural. De fato, a análise de Jonathan Bignell sobre Teletubbies como uma representação da infância como familiar e alienígena tem alguma aplicação em Come to Daddy, especialmente em como “coloca a televisão como um mediador das fronteiras incertas entre a idade adulta e a infância, o familiar e o alienígena, o humano e o inumano’ (2005: 374)."