Artigo | Aphex Twin - Come To Daddy (Universidade de Edinburgo)

CLAMANDO CHRIS CUNNINGHAM PARA O CINEMA BRITÂNICO

O videoclipe mais assustador da história e sua influência no cinema britânico


Nota do tradutor:

A influência de Richard D. James no cenário musical é inegável. Sua importância vai muito além da música eletrônica, impactando profundamente a música como um todo. Desde artistas consagrados como Radiohead e Björk, que publicamente o admiram, até Kanye West, que utilizou a melodia marcante de "Avril 14th" como peça central na faixa "Blame Game" de My Beautiful Dark Twisted Fantasy — James, mais conhecido por seu pseudônimo Aphex Twin, deixou uma marca indelével.

Mesmo que você não reconheça o nome, é bem provável que já tenha tido contato com sua identidade visual intrigante e provocadora. No entanto, muitos talvez não tenham dado a devida atenção aos seus álbuns extensos, sem elementos vocais, focados em sons ambientais e altamente experimentais. Esses trabalhos desafiadores podem ser difíceis de abordar à primeira vista, mas revelam uma profundidade sonora rara.

Ao mesmo tempo em que cria algumas das músicas mais emocionantes e sensíveis da música contemporânea, Richard D. James, unindo forças ao diretor Chris Cunningham, é responsável por uma das peças audiovisuais mais perturbadoras de todos os tempos. Para quem se arrisca a assistir pela primeira vez, é uma experiência que, sem dúvida, causa impacto.

A história por trás de uma de suas músicas mais desconfortantes é tão estranha quanto fascinante. Em uma entrevista concedida em 1997, James compartilhou o curioso relato:

"Essas palavras estavam em uma carta que recebi de um fã há muito tempo. Veja, eu fiz a faixa em sua forma original há cerca de dois anos e meio, no mesmo dia em que recebi essa carta maluca. Ela terminava com 'Eu quero sua alma, eu vou comer sua alma, eu quero sua alma'. Eu não consegui entender o que aquilo significava, mas achei que soava bem."

Esse relato de origem já estabelece o tom desconcertante da música, que, quando unida ao videoclipe, cria uma experiência audiovisual quase apocalíptica. Desde o primeiro segundo, a sensação de desconforto se instala. Elementos dissonantes e industriais se sobrepõem, criando uma atmosfera claustrofóbica e ameaçadora que se intensifica até o fim, sem um momento sequer de alívio.

Richard D. James desafia nossos sentidos, nos conduzindo por paisagens sonoras e visuais que alternam entre o sublime e o perturbador. Essa dualidade é o que o torna não apenas um ícone da música eletrônica, mas uma figura essencial na música contemporânea.


"As letras da faixa do Aphex Twin são claramente influenciadas por Hellraiser (1987), de Clive Barker, em que o personagem Frank repete a frase 'Come to Daddy' (Venha para o Papai), e o personagem 'Pinhead', quando diz as palavras 'Vamos despedaçar sua alma'. O uso da frase 'Come to Daddy' em outros filmes de terror (por exemplo, quando é dita por Freddy Krueger em A Nightmare on Elm Street 4: The Dream Master (1988)) reforça a ideia de que Cunningham/James estão explorando o potencial de choque/cômico ao transplantar um clichê do cinema de fantasia para os espaços monótonos da decadência urbana."

Filmado em um conjunto habitacional em Thamesmead, no leste de Londres, Come to Daddy é, para mim, a produção de Cunningham mais nativa em termos de sua iconografia e seu engajamento com ideias associadas à delinquência e aos 'efeitos da mídia' na imaginação popular britânica (embora não exclusivamente). Mesmo que seja facilmente classificado como um videoclipe, dado seu papel na promoção de um EP homônimo de Aphex Twin, Come to Daddy apresenta desde o início um desafio sutil à ortodoxia dos videoclipes, ao impor o nome do diretor, do músico e do título quase subliminarmente sobre as imagens por meio de flashes rápidos e cores atenuadas. Além disso, o símbolo familiar de Aphex Twin – um logotipo de marca que não carrega nenhuma referência conhecida – é visto mudando rapidamente de um lado para o outro para um sinal (reminiscente dos associados a banheiros públicos) que sugere a forma humana; isso antecipa não apenas a imagética que está por vir, mas também a tensão mais ampla do vídeo entre abstração e figuração.

"O videoclipe de seis minutos começa com enquadramentos que estabelecem uma atmosfera de suspense – acompanhadas por sons eletrônicos inquietantes – de um bloco de apartamentos cinza e de concreto e a chegada de uma mulher idosa, que parece vulnerável, acompanhada de seu grande grande cachorro inquieto que fareja uma pilha de lixo e, em seguida, urina em um pequeno televisor abandonado. Isso traz à vida uma imagem digitalmente mutável de um rosto na tela recém mijada. A face transmutada é de Richard James, e a faixa musical, descrita como 'horror jungle' (Young 2005: 78), começa com sua voz agressivamente processada gritando 'Eu quero sua alma'. Isso chama a atenção de um grupo de algumas pessoas pequenas (daqui em diante, crianças Aphex), todas com o sorriso característico de James em seus álbuns (Matthews 2004), apenas identificadas como femininas ou masculinas através de seus uniformes escolares ou casacos parka (uma referência, talvez, às evocações cult britânicas da cultura 'mod', notavelmente em Quadrophenia (1979)). Elas correm descontroladamente, brigam entre si e assustam um morador em uma área de estacionamento. O televisor com o rosto de James é acidentalmente derrubado, e isso libera o “nascimento” de uma criatura esquelética, semelhante a um humano, através de uma tela membranosa, que então – agora com o familiar rosto de James – se coloca orgulhosamente sobre seus 'filhos' em uma névoa que obscurece qualquer sentido de um local específico. Os últimos 40 segundos do vídeo cortam rapidamente entre a criatura se movendo de forma rígida e flashes abstratos da imagética anterior: o rosto da TV, estático, a velha aterrorizada, os blocos de apartamentos, flashes de luz, respingos e as crianças Aphex em fúria. Em um momento, a criatura coloca as mãos sobre a cabeça em uma posição de submissão, como se estivesse espelhando a própria subjugação do espectador ao ataque sonoro e visual avassalador do vídeo; além disso, em um dado momento, é vista usando um pano sobre suas genitais que pode ser tanto uma fralda infantilizadora quanto uma tanga, reforçando a interpretação da criatura como uma figura de Jesus que sofre."

Embora o vídeo seja principalmente editado de forma associativa aos ritmos intensos da música, em vez de seguir o estilo de continuidade cinematográfica tradicional, há instâncias de construções de plano-contraplano para transmitir o ponto de vista e evocar suspense ou ameaça. Por exemplo, antes que as crianças Aphex sejam reveladas, uma série de tomadas utiliza a convenção do horror/thriller de um observador invisível – significada por uma visão levemente obscurecida de onde a mulher percebe um movimento. O nascimento pegajoso da criatura da televisão, uma evidente homenagem a Videodrome (1983), conecta-se claramente com uma tradição de “horror corporal” focada anatomicamente, ligada a figuras como Cronenberg e Clive Barker; a criatura é revelada de forma incremental por meio de imagens fragmentadas que geram ansiedade sobre sua forma e o que ela pode fazer com a mulher.

Para Tristan Fidler, ao se basear em paradigmas relacionados à construção do corpo cinematográfico, Come to Daddy é um emblema da visão “pessimista” de Cunningham – como visto em outras obras como Only You e Afrika Shox –  sobre a ‘relação negativa entre o corpo humano e o espaço urbano, repleta de tensão e desconforto’ (2007: 130). Assim, as crianças Aphex personificam uma experiência de alienação no conjunto habitacional por meio de seu comportamento fisicamente e socialmente disruptivo, enquanto a criatura da televisão também fica sozinha e alienada, enfatizando uma ‘sensação geral de desconforto diante do Outro espetacular’ (ibid.: 141). No entanto, interpretar Come to Daddy como meramente um ‘grito contra a decadência urbana’ (Hanson 2006: 15) é uma leitura excessivamente reducionista de sua investigação mais complexa das ansiedades na imaginação popular britânica relacionadas aos conjuntos habitacionais, lugares que têm sido explorados na mídia impressa e visual como 'cifras... abreviações para fazer um ponto sobre a sociedade em que vivemos’ (Hanley 2007: 183). Na época de Come to Daddy, o conjunto habitacional já estava firmemente estabelecido como um cenário recorrente para um certo tipo de cinema britânico socialmente consciente, com uma postura ambivalente sobre questões de agência e aprisionamento: pode-se contrastar, por exemplo, a maneira como os personagens são sobrecarregados por seu ambiente em Raining Stones (1993) de Ken Loach com o senso de direito das adolescentes exibicionistas de Rita, Sue and Bob Too! (1987). No entanto, com sua abordagem mais lúdica do que didática, Come to Daddy é melhor apreciado como um precursor de representações ‘fantasiosas’ como a comédia dramática de televisão Shameless (Channel 4, 2004–13) e o filme de terror Attack the Block (2011), que em grande parte evitam o naturalismo, mas ainda assim intervêm em debates políticos em torno da ‘classe subalterno’. Embora o vídeo seja atípico de Cunningham em sua utilização de um cenário ‘do mundo real’ reconhecível, o conjunto habitacional oferece uma plataforma ideal para sua fusão característica de figuração e abstração. O conjunto habitacional foi definido como um ‘encontro do modernismo arquitetônico com os ideais do estado de bem-estar britânico’ (Taunton 2010: 176), e Cunningham encontra uma equivalência à violência sônica da faixa em composições e edições que exploram as linhas e formas brutalistas do ambiente, ao mesmo tempo em que utiliza personagens para sugerir um cenário de proteção paternal alternativa àquela do estado. Em um ponto, perto do final do vídeo, uma tomada das paredes do conjunto habitacional se torna inesperadamente sujeita a um efeito de degradação, como se a interferência vista anteriormente no monitor de televisão tivesse sido transferida, assim como a criatura dentro dele, para o 'mundo real'. Embora o efeito contribua para a progressiva confusão do vídeo entre realidades mediadas e não mediadas, também alude à vigilância de espaços públicos por meio da tecnologia de CFTV, ou pelo menos ao colapso de tal monitoramento."

"Ao retratar entidades físicas sem uma clara “classificação como criança ou adulto’ (Fidler 2007: 135), Come to Daddy complica uma leitura simples de sua narrativa em termos de efeitos da mídia. Enquanto são as imagens agressivas na tela da televisão que dão origem a uma ameaça monstruosa e física para a mulher idosa (que pode ser interpretada como representativa do tecido social mais amplo), e que aparentemente impulsionam as crianças Aphex em direção à delinquência, a criatura da televisão também traz calma e unidade para os menores. Para o espectador britânico, pelo menos, esses elementos de Come to Daddy podem remeter ao pânico dos ‘video nasties’ do início dos anos 1980, relacionado aos medos sobre o possível impacto do conteúdo explícito e não regulamentado sobre as crianças (veja Egan 2007). Curiosamente, o próprio Cunningham delineou, no contexto da imposição de classificações de idade pela British Board of Film Classification em vídeos online, o impacto formativo do material ‘extremo’ em sua própria criatividade:

"Eu costumava assistir a video nasties. Foi uma má ideia? Eu não sei, mas poder tomar essa decisão por si mesmo é mágico... Quando criança, eu realmente não fazia distinção entre olhar um livro sobre pintores surrealistas, um livro sobre como Tom Savini fez efeitos de gore ou um videoclipe. Para mim, tudo é arte... Durante um tempo, os videoclipes foram um substituto do que o cinema de vanguarda estava fazendo. Se você quisesse ver algo de vanguarda ou surreal, era mais provável que visse em um videoclipe do que em um filme." (Monroe 2015)

"No entanto, a música ‘Come to Daddy’ tende a ser vista, em parte, como uma crítica paródica aos ‘hits de dança eletro-rock’ da época, particularmente o sucesso techno de 1996, ‘Firestarter’, do The Prodigy (Fidler 2007: 131). E, como mencionado anteriormente, o vídeo também é uma continuidade do uso de Aphex Twin de seu próprio ‘rosto e corpo [na arte de capas e vídeos] como um ataque brutal à imagética excessivamente cosmetizada do pop contemporâneo’ (Shaughnessy 2005: 81). Nesse sentido, Rob Young observa como o desconforto de Richard James com sua crescente reputação levou a uma “decisão consciente de retaliar, despedaçando sua imagem, cortando imagens digitais suas, fazendo-se parecer um louco borrado” (2005: 77–8). Um precursor notável do vídeo de Cunningham é o clipe promocional de David Slade para ‘Donkey Rhubarb’ (1995) de Aphex Twin, que também possui um cenário urbano e apresenta três pessoas vestidas em trajes de ‘urso’ peludos, personalizadas com os rostos idênticos e planos do músico, que brincam, brigam e fazem gestos sexuais – incluindo um movimento de ‘impulso de quadril’ que é repetido (a intertextualidade é presumivelmente deliberada) por uma das crianças Aphex em Come to Daddy. Embora totalmente inesperados, os seres aqui, às vezes filmados interagindo com crianças ‘reais’, são estranhamente semelhantes aos personagens do programa infantil da BBC, Teletubbies, que estreou em 1997. Dado que Teletubbies e Come to Daddy compartilham uma concepção de figuras infantis que recebem e internalizam transmissões de vídeo, talvez não seja uma ideia tão descabida sugerir que Aphex Twin e Cunningham estão canalizando uma ideia mais ampla tanto na cultura popular quanto na teoria pós-moderna sobre crianças e formação cultural. De fato, a análise de Jonathan Bignell sobre Teletubbies como uma representação da infância como familiar e alienígena tem alguma aplicação em Come to Daddy, especialmente em como “coloca a televisão como um mediador das fronteiras incertas entre a idade adulta e a infância, o familiar e o alienígena, o humano e o inumano’ (2005: 374)."

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