As Melhores Comédias do Século 21 (até agora)

melhorescomediascapa.jpg

Eu gosto muito de comédias.

Sou fã e sei que não estou sozinho nesse gosto, na minha opinião é o grupo genérico mais específico e ao mesmo tempo mais completo no cinema, isto é, não há dúvidas que ao contrário de gêneros como ação, drama e terror, comédia só existe em um contexto em que os signos da piada são entendidos, esses signos podem ser bastante amplos, claro, mas as piadas sempre acabam falando sobre a maneira que nos relacionamos com o mundo, externamente, mais do que com nós mesmos.

Essa particularidade faz com que eu esteja muito mais acostumado com o humor crítico de arquétipos e costumes feito no Brasil há muitos anos do que um Owarai, estilo japonês de humor que priveligia a rapidez e a crueza. Não são só as situações particulares de um lugar que são mais identificáveis em uma piada, mas a maneira de rir delas que tornam a fronteira cultural do humor mais dura que a de outros gêneros. Refletindo sobre isso e sobre o imperialismo soft que os Estados Unidos exercem em muitos lugares do globo, ficou difícil não ter uma forte presença de filmes hollywoodianos nessa lista, claro que não é a primeira nem a última lista desse site com a predominância de Hollywood por uma infinidade de motivos, mas eu acho importante apontar agora isso porque um fator que também vai ser latente aqui é a presença quase exclusiva da narrativa hollywoodiana clássica.

Narrativa Hollywoodiana Clássica é um termo bem comum em análise de roteiro e, provavelmente, boa parte dos leitores já vai ter visto em algum lugar e mesmo os que não conhecem o conceito pelo nome sabem exaustivamente como funciona. É um pouco autoexplicativo porque representa justamente a forminha com que inúmeros roteiros são escritos em Hollywood desde o marco “O Mágico de Oz” em 1939 (na realidade a fórmula existe desde, no minímo, a Grécia Antiga e foi descrita por Aristóteles por volta de 350a.C), além da famosa estrutura em três atos, dos dois plot twists e outras regrinhas.

Um dos elementos mais importantes para esse tipo de narrativa é a “jornada” do personagem, parte essencial de como funcionam as histórias desde muito tempo. Além de se aliar aos rebeldes para destruir a Estrela da Morte, o mais importante é como isso vai mudar Luke internamente, a aventura é um plano de fundo para que o protagonista aprenda a fazer suas próprias escolhas, para a história de Dorothy, voltar para o Kansas e aprender sobre o seu lar é mais importante que sua jornada por Oz. Esses exemplos são batidos porque eles falam de uma fórmula velha que teve pouca ou nenhuma inovação nos últimos tempos e os filmes de comédia em hollywood seguem amarrados a ela, enquanto outros gêneros como dramas (“Moonlight”, “Projeto Flórida”), terror (“Corra!”, “A Bruxa”) e ação (“Madmax: Estrada da Fúria”) foram renovados nesse século.

Uma reflexão (que vai ser repetida mais de uma vez nesse texto) é sobre “meta narrativa”, conceito popular nos últimos anos. O sentido mais usado é “cinema comentando sobre cinema” ou “assumindo que aquilo é um filme” se deu quase exclusivamente em filmes apontando convenções de gênero, o próprio gênero ou citando nominalmente e visualmente outros filmes, mas o ponto que eu gostaria de refletir daqui pra frente: faz alguma diferença apontar que existe uma convenção e não fazer nada para lidar com isso? Na minha opinião: Não!

Um filme que vai estar nessa lista e colabora com a minha opinião o tempo inteiro é “Anjos da Lei” mas escolhi uma cena específica: a primeira aparição de Ice Cube como Capitão Dickinson. [Que dificuldade traduzir essa palavra] Sassy é uma carecterística comum de personagens negros em histórias, um clichê, ao entrar em cena o capitão definitivamente exibe esse comportamento e em uma das suas primeiras falas justifica que: “eu sou negro e sou sassy, lidem com isso”. Existe uma piada aí? Sim e é até engraçada, mas acabou, a partir desse comentário está justificado que aquele personagem vai seguir um padrão estabelecido em Hollywood para pessoas negras, e não se fala mais no assunsto. Uma piada semelhante que gosto mais é a participação de Jamie Foxx em “Quero Matar Meu Chefe” (2011). Ao decidirem matar seus chefes, os três amigos entram em um bar procurando um especialista em assassinatos que possa auxilia-los e contratam Dean “Motherf*cker” Jones (Foxx), um homem que já esteve preso. Quando seus planos começam a fracassar o trio descobre que apesar das tatuagens pelo corpo inteiro e um visual “sinistro” o personagem foi preso por pirataria e nunca assassinou ninguém, momento que gera a piada “você não entra em um bar e dá 5 mil dólares a um homem só porque ele é negro”.



Antes de irmos para a lista algumas considerações: muitos vão perceber que talvez as comédias que fugiriam a esses apontamentos que eu fiz não estão presentes, casos como “Queime Depois de Ler”, dos irmãos Coen que também assinam “Um Homem Sério”, os filmes “Vice” e “A Grande Aposta” de Adam McKay, até alguns dos filmes de Tarantino e, porque não, “O Lobo de Wall Street” de Marin Scorsese, além dos flmes de Wes Anderson que são tão únicos que achei impreciso listá-los aqui. Outro gênero que não foi incluído foram filmes “coming of age” especialmente porque nós do Outrahora temos carinho imenso por eles e eventualmente faremos uma lista só deles, assim como já temos uma lista de animações por isso não as considerei aqui. O motivo dessa “não-presença” é simples: eu queria falar sobre aquelas comédias mais comédia do dia a dia, que provavelmente não aparecerão muito em listas aqui do site, essas que citei e algumas outras certamente vão ser bem analisadas em outros momentos.

Então é uma lista de comédias-comédias. Antes, algumas menções honrosas (É o Fim; Vizinhos; Se Beber, Não Case; Alguém Avisa?; Asiáticos Podres de Ricos; Super; Sim, Senhor). Agora, a lista:



21- Kick-Ass: foi até citado na nossa lista de super heróis, mas difícil deixar essa comédia de lado. Com imenso coração e muita violência, “Kick-ass” é divertido demais.

20- Ligeiramente Grávidos: o primeiro filme do Judd Apatow nessa lista traz uma graça com excelentes atuações de atores que viriam a se consagrar como Seth Rogen, Paul Rudd e Ken Jeong.

19- A Escolha Perfeita: Por que não um musical? Eu particularmente adoro! Adam DeVine, Rebel Wilson e Elizabeth Banks roubam a cena ajudados por um ácido roteiro.

mclovin.jpg

18- Superbad - É Hoje: Ia ter sido muito difícil deixar de fora, a primeira colaboração de Seth Rogen e Evan Goldberg escrita quando eles ainda estavam na escola traz o melhor que essa dupla apresentou pelos anos, pra morrer de rir com atuações incríveis e claro, McLovin.

17- A Noite de Jogo: Esse thriller parte de um grupo de amigos ansiosos por fazerem festas com jogos. A partir da competição desde a infância de dois irmãos (Jason Bateman e Kyle Chandler) uma brincadeira toma proporções inimagináveis.

16- Zoolander: Outro bom ator e diretor de comédia que tivemos no Século foi Ben Stiller e esse foi o primeiro crédito dele como roteirista. Uma história em que moda e espionagem se misturam, temos algumas das melhores piadas desses últimos anos.


15 - Anjos da lei

anjos da lei melhores comedias seculo 21 jump street

Ensino Médio, policial, ação são alguns dos gêneros que esse filme brinca, ao colocar Jonah Hill e Channing Tatum como dois policiais infiltrados em uma escola para descobrir quem está produzindo uma nova droga que pode matar os jovens que a usam, o detalhe é que os dois personagens foram colegas na escola e não se davam bem. A própria coluna dorsal de humor é sensacional, uma vez que os parceiros descobrem que a escola mudou, ser nerd é o novo cool, uma vantagem para Schmidt (Hill) enquanto ser durão é antiquado, o que faz Jenko (Tatum) se sentir deslocado. Além dos dois protagonistas, Brie Larson, Dave Franco, Rob Riggle e Elle Kemper são alguns dos atores que criam bons momentos engraçados.


14 - eNTRANDO NUMA FRIA

entrando numa fria melhores comedias seculo 21

Gaylord “Greg” Focker (Ben Stiller) precisa conhecer a família de sua namorada Pam (Teri Polo) para ganhar a permissão do seu sogro Jack (Robert DeNiro) e pedir Pam em casamento. Nas 72 horas que Greg fica hospedado na casa da família Byrnes não tem limite para quanto as coisas podem dar errado, especialmente após descobrir que Jack é um agente da CIA de alto escalão aposentado. Típico filme pra toda a família, funciona como uma comédia de situações em que cada cena algo de inesperado acontece para Jack o que tonra o fim de semana um verdadeiro desastre. A química de Stiller e DeNiro é fora de série.


13 - Missão madrinha de casamento

missao madrinha casamento melhores comedias seculo 21

Esse filme do se destacou por dar espaço para mulheres comediantes, aliás o filme que mostra uma relação de duas amigas desde a infância e os conflitos com outras madrinhas de casamento é estrelado praticamente só por mulheres. Annie (Kristen Wiig) não está em um bom momento na vida, vemos ela passando por sua loja de bolos, empreendimento fracassado e agora ela trabalha como vendedora em uma joalheria. O filme abre com um momento que já é uma piada por si só mas estabelece bem Annie, uma cena de sexo entre ela e um homem interpretado por Jon Hamm que para usar um eufemismo, é um babaca, ali a gente vê a característica fundamental: ela não gosta de ser feliz. E esse problema que ela vai lidar durante o enredo quando sua amiga Lillian (Maya Rudolph) fica noiva e convida Annie para ser sua madrinha de casamento. “Missão Madinha de Casamento” é hilário e rendeu uma indicação ao Oscar para Melissa McCarthy.


12 - ted

ted melhroes comedias seculo 21

Um criador de comédia absolutamente engraçado e relevante é Seth MacFarlane. Sua série “Uma Família da Pesada” está aí desde 1999, com altos e baixos, mas firme, para provar. E “Ted” apresenta uma história que só poderia funcionar como comédia: a amizade entre um menino e um ursinho de pelúcia que cria vida, eles estão sempre juntos, inclusive na vida adulta de John (Mark Wahlberg), quando Ted (MacFarlane) começa a se mostrar um estorvo para o protagonista. O drama central consiste num certo triângulo em que John tem que lidar com a vida adulta representada por sua namorada Lori (Mila Kunis) e sua infância representanda pelo seu ursinho de pelúcia Ted, cujo passatempo preferido é fumar maconha, ele tem que lidar também com o fato de estar em um emprego sem rumo numa revendedora de carros. Os mesmos elementos possitivos de “Uma Família Pesada” estão em “Ted”, a velocidade dos diálogos falando coisas absurdas que servem mais para estabelecer trama, as piadas bastante literais e gráficas e claro, uma cena de briga física bem elaborada.


11 - PALM SPRINGS

palm springs melhoes comedias seculo 21

Eu não tenho certeza como um filme de 2020 veio parar aqui, especialmente por flertar com ser uma comédia romântica (gênero que evitei) mas decidi ver no processo de elaborar essa lista e não tinha como não falar dele. Com o estilo narrativo “Dia da Marmota” consegue trazer boas risadas e uma sensação confortável importante nos tempos em que vivemos, não sei é pela escolha de elenco com Andy Samberg, Cristin Milioti, JK Simmons e Camila Mendes, atores que sempre passam uma boa energia, ou até o cenário paradisíaco escolhido. O que eu não tenho dúvida é a fluidez com que a história acontece colabora muito para isso, assim como o bom controle de informações dadas ao público, afinal não sabemos no começo do filme o que está acontecendo apesar de Nyles (Samberg) já estar há mais de uma centena de dias vivendo aquele dia, o casamento da irmã de Sarah (Milioti). Os momentos mais engraçados são descobrir as coisas bizarras que Nyles fez preso nesse dia e o que tem de melhor é a química dos dois atores em tela, de dar inveja em qualquer casal de Hollywood.


10 - escola de rock

escola de rock melhores comedias seculo 21

Pro lado mais focado no público juvenil mas misturado com temas adultos “Escola de Rock” foi a escolha óbvia, enquanto uma criança que nasceu nos anos 1990 e ex-”pré-adolescente rockeiro” esse filme é provavelmente o que mais assisti nessa lista. Jack Black é um ator de comédia a ser destacado e aqui ele entrega uma performance tão elétrica e genuína como o rockeiro fracassado Dewie que toma o lugar de seu amigo Ned Schneebly (Mike White) e vira professor substituto numa escola de elite. Dirigido por Richard Linklater (o nome de mais peso nessa lista), a dualidade entre um ambiente quadrado de uma sala de aula contra a proposta rockeira e caótica cria um contraste incrível nas crianças que embarcam no projeto “Banda de Rock” proposto pelo falso professor por motivos egoístas, a partir daí o vínculo professor-turma se estabelece.

O arco de Dewie eleva a qualidade do roteiro, porque assim como as crianças vivem a contradição entre a escola autoritária e o professor que abole as notas, o protagonista tem uma relação dúbia com seu amigo Ned, que apesar de ter sido colega de banda no passado hoje é professor e namora Patty (Sarah Silverman) funcionária da prefeitura e cria um conflito com Dewie pela sua falta de perspectiva profissional. A falta de dedicação de Dewie também custa sua expulsão da banda de rock que participa. O filme tece uma crítica a maneira com que ainda abordamos a sala de aula no ocidente e, da sua própria maneira, mostra caminhos, pelo menos soluções internas. Rapidamente as crianças “nerds” se veem como parte da turma e os colegas criam uma relação de confiança e não de competição.

Miranda Cosgrove (a Megan, do Drake e Josh) é completamente genial como Summer e Joan Cusack consegue em poucos momentos entregar uma personagem complexa e relacionável, sem mencionar a sua interpretação de “Edge of Seventeen”, Stevie Nicks em uma das melhores cenas do filme que, aliás, conta com uma trilha sonora a altura dos elogios.


9 - o virgem de 40 anos

melhores comedias

Absoluto clássico! Mais um de Judd Apatow, esse se destaca pela atuação fora de série de Steve Carell, que também assina o roteiro, como Andy, o virgem de 40 anos referido no título. Funcionário de uma loja de eletrônicos, seus colegas o acham estranho, sua escolha de transporte é bicicleta (antes de ser legal) e mora em um apartamento lotado por bonecos de ação, mas quando é convidado para completar o jogo de pôquer dos outros vendedores da loja a verdade sobre sua vida sexual é descoberta e eles adotam como missão ajudá-lo.

David (Paul Rudd) nunca superou um término, Cal (Seth Rogen) é o solteirão e Jay (Romany Malco) trai sua namorada regularmente, essa trupe cria as situações para ajudar Andy, como levá-lo a um speed date, uma festa e, a inesquecível, sessão de depilação para tirar os pelos do peito. Impossível não falar o elenco fora de série do filme, com atuais super estrelas fazendo pequenos papéis Jonah Hill interpreta “jovem cliente” e Kevin Hart “cliente irritado” além de Elizabeth Banks, Jane Lynch, Mindy Kalling, Kat Dennings, Nancy Carell, Leslie Mann, David Koechner entre outras grandes estrelas atuais, essa gama imensa de talentos colabora imensamente com a atmosfera do filme, para onde tu olha tem alguma coisa engraçada acontecendo. A vida de Andy muda quando ele conhece Trish (atuação incrível de Catherine Keener), dona da loja “vendemos suas coisas no ebay”, que fica no mesmo centro onde o protagonista trabalha, eles começam um relacionamento sem Trish saber o segredo de Andy que a convence que só devem transar depois do 20º encontro.

Com quiprocós engraçadíssimos, uma trama forte e Steve Carell, mais uma vez, carregando o lado emocional do enredo ao mesmo tempo que traz uma interpretação hilária, “O Virgem de 40 Anos” não poderia estar fora dessa lista.


8 - trovão tropical

melhores comédias tropic thunder

Mais um filme assinado por Ben Stiller, “Trovão Tropical” é o meu filme favorito dirigido e estrelado por ele. Uma paródia tanto de “Apocalipse Now” quando “Apocalipse de um Diretor”, documentário sobre os bastidores do primero e não só esses como a longa gama de filmes que retratam a Guerra do Vietnã em Hollywood. Tem algo de diferente nesse filme e isso é vísivel antes mesmo dele começar, porque Ben Stiller opta por abrir com a apresentação dos personagens: trailers dos trabalhos que os atores fictícios já realizaram, cada um parodiando um estilo específico de cinema e de ator.

Tugg Speedman (Stiller) é uma espécie de Vin Diesel, sua apresentação é com “Scorcher VII: Global Meltdown (Here We Go Again)”. Jeff Portnoy (Jack Black) é um ator de “pastelão” com públicos problemas com drogas, seu filme é “Fatties: Fart 2” uma família em que ele interpreta todos papéis e com muitas piadas de peido. Já Kirk Lazarus (Robert Downey Jr) é o ator de Oscar, metódico, um estilo Daniel Day-Lewis e o seu filme é “Satan’s Alley” um drama sobre dois padres gays no Século XII, com uma cameo sensacional de Tobey Maguire. Ainda tem o rapper Alpa Cino (Brandon T. Jackson) que apresenta um gráfico comercial de energético. Esses trailers jogam com a própria ideia de que existem perfis de atores pra cada papel e como os estúdios usam isso visto que cada comercial joga com algum selo relacionado aquele tipo de história. Esse tom nunca deixa de existir, tão importante quanto a trama dos atores, as relações de bastidores vão ser fundamentais pra história.

Apostando em uma narrativa-dentro da narrativa- dentro da narrativa, um card nos avisa: é a história de uma missão suicida de resgate em que 10 soldados foram enviados, 4 desses voltaram e desses, 3 escreveram livros sobre, sendo que só 2 foram publicados e 1 só fez contrato para o cinema, o livro do Sargento Four Leafs (Nick Nolte), que perdeu suas duas mãos na guerra. Mas é quando o diretor Damien Cockburn (Steve Coogan) se irrita com a falta de comprometimento dos atores e resolve instalar uma série de câmeras pelo Vietnã e largar o elenco a sua própria sorte nas florestas. Momentos de absoluta comédia se misturam com experiências em que os atores descobrem suas camadas mais pessoais. Destaque para a ponta de Tom Cruise como o dono de estúdio Les Grosmann irreconhecível e hilário.


7 - saneamento básico, o filme

saneamento basico o filme melhores comedias seculo 21
Ficção: substantivo feminino, ato efeito de fingir. Construção, voluntária ou involuntária, da imaginação; criação imaginária, fantasiosa, fantástica, quimera, mentira, farsa, fraude.
— Trecho retirado de http://www.casacinepoa.com.br/os-filmes/roteiros/saneamento-b%C3%A1sico-o-filme-texto-inicial

Sob essa definição do dicionário, um grupo de moradores de um distrito da fictícia cidade Santo Antônio de Pádua decidem fazer “Monstro do Fosso”, um filme para garantir uma verba de cultura que chega do governo federal para a prefeitura e com isso construir um fosso para resolver o problema ambiental da região. Com um super elenco de Fernanda Torres como Marina, a diretora do filme e líder do grupo, Wagner Moura como Joaquim, o marido e fiel escudeiro, Camila Pitanga como Silene, a mocinha do filme, irmã de Marina, Bruno Garcia, marido de Silene formado em turismo, Paulo José como Otaviano pai de Marina e Silene, marceneiro local, Tonico Pereira como Antônio, outro empresario do distrito e Lazaro Ramos como Zico, editor de vídeo em Bento Gonçalves, Jorge Furtado executa uma das melhores histórias que o cinema nacional produziu nos últimos anos.

Os diálogos são eficientes e conseguem trazer algo novo sobre cada personagem com piadas inteligentes, a história apesar de brincar bastante trata de coisas muito verdadeiras do interior do nosso país e mostra um pouco das dinâmicas da política institucional à margem da esfera pública, inclusive sob a perspectiva da auto organização das pessoas para construir seu próprio território. A dupla Paulo José e Tonico Pereira interpretam bem o espírito do debate político, apesar de serem amigos vivem brigando, Antonio, até já foi subprefeito, tem uma posição mais a direita enquanto Otaviano flerta com o anarquismo, nos dois casos, se trata do microcosmos do distrito, claro, em nenhum momento a discussão dele ultrapassa o arroio que querem tapar para facilitar a travessia.

Jorge Furtado brinca bastante com o fazer cinematográfico, com roteiro escrito, está na hora de filmar, Silene vai ser a mocinha e Joaquim vai vestir a fantasia feita de objetos caseiros e ser o monstro que surgiu no valão a céu aberto. Com apoio de alguns empresários locais a produção começa a tomar forma, ter figurinos e cenários e a equipe parece não conseguir chegar no tempo de dez minutos exigido pelo edital para ganhar o dinheiro. Com a película quase pronta, eles descobrem que precisa ter edição, o que os faz ir na metrópole Bento Gonçalves contratar os serviços de Zico que aponta uma série de problemas no filme e se oferece para ajudar, sua ajuda e serviços fazem o orçamento do filme bater a casa dos dez mil reais, dinheiro que deveria se destinar ao fosso. Se todo enredo não fosse bom o suficiente, a cena em que Lúcio Mauro Filho e Zéu Britto fazem uma participação especial: “Olha quem vem lá…” já seria suficiente para fazer qualquer pessoa morrer de rir.


6 - Relatos selvagens

relatos selvagens melhores comedias seculo 21

Tive muitas dúvidas sobre colocar essa antologia argentina nessa lista, na própria língua espanhola tinha opções que poderiam ser consideradas comédias mais “puras” como “Os Amantes Passageiros” (2013) de Pedro Almodovar e “A Odisseia dos Tontos” (2019) de Sebastián Borensztein, mas esse ambicioso projeto assinado por Damián Szifron, com créditos de produção a Almadovar, parecia valer o risco de desvirtuar um pouco o objetivo da lista, evidente que o filme é engraçado, e muito, mas cada um dos seus seis contos é apresentado de maneira completamente diferente com diferentes medidas de drama e comédia, diria até que o quinto, “la propuesta” se caracteriza apenas como drama, mas pelo conjunto prefiro considerar “Relatos Selvagens” uma comédia. Mesmo diferentes, os segmentos têm em comum a caracterização de pessoas em situações extremas, em que sua razão fica de lado e apenas as emoções mais primitivas vêm a tona trazendo um lado selvagem dos personagens.

Meu favorito, ouso dizer, é o primeiro “Pasternak” em que um crítico de música ao embarcar num avião conversa com uma moça sentada ao seu lado e os dois descobrem que tem uma pessoa semelhante em seu passado: Gabriel Pasternak, o crítico lembra que foi banca em um conservatório e Gabriel tentou entrar, sendo uma das piores apresentações que já viu, a moça conta que namorou o misterioso personagem. Ao mencionarem o nome, uma terceira passageira interfere na conversa dizendo ter sido a professora que reprovou Pasternak na terceira série, o que desencadeia uma rede de pessoas que de alguma maneira afetaram negativamente a vida de Gabriel Pasternak, piloto do avião.

Outros momentos como a interminável briga de trânsito que vai tomando proporções ridículas até ser decretada como crime passional pela polícia, a pior noite de casamento que um casal pode ter e claro: Ricardo Darin roubando a cena em “Bombita” são motivos para esse brilhante filme entrar aqui.


5- O que fazemos nas sombras

o que fazemos nas sombras comedias seculo 21

Em 2020, após “Jojo Rabbit”, o diretor kiwi Taika Waititi é um nome bem relevante no cinema internacional, o que não era o caso quando “O Que Fazemos nas Sombras” foi lançado. O mockumentary sobre um grupo de vampiros tentando viver a vida nos parâmetros do mundo atual fez imenso sucesso entre o público mais alternativo e alavancou o status do diretor, o filme foi tão aclamado que a Fox o transformou em série de TV, o programa homônimo já foi renovado para uma terceira temporada em 2021. Os vampiros Viago (Taika Waititi), Vladislav, O cutucador (Jemaine Clement, que assina direção e roteiro ao lado de Waititi), Deacon (Jonathan Brucke) e Petyr (Ben Fransham) moram em um triplex no interior suburbano de Wellington, Nova Zelândia. Uma câmera acompanha o noite-a-noite deles que inclui pegar o ônibus à cidade para achar vítimas, uso de inúmeros poderes sobrenaturais e a relação com Jackie (Jackie van Beek) que recebe a proposta de limpar a casa dos vampiros, sangue e pedaços das suas vítimas inclusos, e os ajudar a atrair pessoas para os alimentar em troca do vampirismo e, por consequência, da vida eterna.

A trama se dá após Jackie convidar uma colega de escola que a ofendeu na infância e um ex-namorado também do período escolar, Nick (Cori Gonzalez-Macue), que acaba se tornando o quinto elemento da casa. Sua conversão e insistência em manter algo de normal da vida antiga são acompanhadas pela equipe de câmera que muitas vezes exerce função ativa na trama e, para quem, os personagens nitidamente atuam e tentam mostrar algum comportamento que considerem adequado. Nick leva seu amigo Stu (Stu Rutherford) à casa, ele que é técnico em informática ajuda os imortais a se conectarem na internet e vira grande amigo do grupo. Com entrevistas absurdas, um humor que mistura o gore com uma inocência na visão que os personagens têm do mundo, não há dúvida que todo hype recebido pelo longa é completamente justificável, poucas coisas tão boas foram feitas nos últimos anos no mundo.


4- Meninas Malvadas

meangirls.jpg

Talvez a imagem boba de uma comédia romântica adolescente que as redes sociais deram a esse filme tenha justificativas, mas “Meninas Malvadas” é impressionante tanto pelo seu humor realmente bem escrito quanto pelo seu desenvolvimento de personagens centrado num enredo elaborado. Escrito por Tina Fey, que entre inúmeros créditos importantes precisa ser destacada como primeira mulher roteirista-chefe do programa Saturday Night Live, seu roteiro foi baseado em um livro de autoajuda e ela também interpreta a professora de matemática Sharon Norbury. Esse filme tem uma imensa e persistente base de fãs que mesmo 16 anos depois do lançamento enchem a internet de memes e sustentam um verdadeiro culto à obra. Com um elenco de primeiro nível com Amanda Seyfreid no seu primeiro papel, como Karen, Amy Poehler, como June (mãe de Regina George), Tim Meadows, como o diretor Ron Duvall, Rachel McAdams interpretando a eterna Regina George e, claro, Lindsy Lohan que no longínquo 2004 era uma das maiores estrelas adolescentes do mundo e vivia essa vida ainda longe de polêmicas.

São inúmeros motivos que sustentam esse filme até os dias de hoje, mas acho que o debate sobre bullying, sobre auto aceitação, a protagonista feminina que descobre não precisar de um namorado para ser feliz e que a grande lição é não tratar outras mulheres como competição são os principais. Não só a temática mas a maneira sobrenatural com que ele é construído cumprindo uma tarefa fundamental mas difícil em tramas adolescentes: transformar os pequenos problemas cotidianos nos maiores dramas do mundo. Porque quando estamos na adolescência é costumeira a maneria drámatica de nos relacionarmos com nossos problemas, como se nossa vida tivesse acabado por uma paixão, nossas dificuldades de relacionamento fossem acabar com nossa existência e algumas escolhas erradas fossem o fim do nosso mundo. Eventualmente todo mundo aprende que isso não é verdade, mas é mérito de um roteiro conseguir retratar algo como receber ou não reconhecimento de amigas em forma de doces de natal ser um ponto de virada na relação entre duas personagens.

Se mudando da África (nunca especifica qual ou quais países) a aluna Cady Heron (Lohan) que até então recebeu toda sua educação dos pais em casa precisa se encaixar no mundo das garotas do Ensino Médio. Uma das principais formas de criar humor é borrando os limites da “realidade”, Cady além de protagonista é narradora e o que vemos no filme parte da sua condução da história, em uma cena já bastante referenciada em que se comparam os comportamentos de adolescentes no shopping à animais na savana africana de maneira bastante gráfica. Esse tipo de construção visual é o principal motivo de “Meninas Malvadas” ocupar uma posição tão alta nessa lista, sim eu gosto muito desse filme, mas a maneira criativa que a misancene opera para mediar a relação do público e história, em última medida interferida por Cady, faz esse longa ir muito além da média dos seus pares. Ele é, inclusive, o único filme dos EUA a ficar nas 5 primeiras colocações por isso: aponto com críticas o apego ao texto de filmes como “Anjos da Lei”, “Ligeiramente Grávidos” e até “O Virgem de 40 Anos”, suas eventuais preocupações genéricas são insuficientes se procuramos algo de crítico. Já “Meninas Malvadas” consegue com louros apontar problemas na maneira de representar filmes adolescentes criando novos padrões, ainda se deslocar do realismo visual sem ir para o absurdo.


3- Borat:

aprendizados da américa para grande benefício da gloriosa nação cazaquistão

borat.jpg

Confesso que não gostava muito desse filme até assistir para fazer essa lista, acho que quando assisti a primeira vez não me relacionei com a parte mais crítica da obra e fiquei procurando humor de fácil digestão, o que definitivamente não existe em “Borat”.

No dia 11 de setembro de 2001, quatro aviões foram sequestrados por membros da organização fundamentalista islâmica al-Qaeda, responsável pelos atentados que abalaram o mundo ao World Trade Center e ao Pentágono, o presidente norteamericano da época George W. Bush em resposta lançou o que ele mesmo descreveu como uma nova Cruzada para defender o dito “ocidente” do terrorismo. 906 anos antes, em 1095, o Papa Católico Urbano II convocava a primeira Cruzada contra o Oriente. Nos dois casos, o espírito cruzadístico foi um fenômeno de guerra militar e cultural em que povos cristãos invadiram território muçulmano com objetivos de dominação política. Como apontado já repetidas vezes, pouco da “Guerra ao Terror” propagandeada por Bush teve a ver com combate à al-Qaeda, inclusive um dos primeiros, e um dos mais lembrados, momentos dessa Guerra foi a invasão do Iraque, seguida por deposição e execução de Sadam Hussein, mesmo que o Estado iraquiano não tinha nenhuma ligação com al-Qaeda, nem qualquer grupo militante islâmico, e tampouco possuía armas de destruição em massa.

Alguns Estados do Oriente Médio e a população muçulmana, falando de maneira um pouco grosseira, passam a ocupar o espaço outrora da URSS e do comunismono no imaginário da mídia ocidental, o que acabou criando uma narrativa xenofóbica e racista sobre toda população de uma parte do globo. O comediante britânico com ascendência judaica Sacha Baron Cohen escolhe denunciar essa situação de uma maneira bastante direta e agressiva. O personagem Borat já existia dez anos do lançamento do seu filme com um funcionamento estabelecido: emitir opiniões extremas sobre assuntos do mundo e permitir as reações. Baron Cohen era um comediante bastante conhecido, especialmente na Inglaterra, pelo programa “Da Ali G Show”, então a escolha dos EUA e majoritariamente de lugares mais interioranos foi ideal para que o conceito do filme desse certo.

Disfarçado de um documentário jornalístico, “Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América” (como foi mal traduzido no Brasil, o que me faz adotar tradução livre como título para melhor representar o conceito do longa), Baron Cohen cria momentos para expôr o racismo e os preconceituos da sociedade norteamericana, variações entre simplesmente estar na calçada tentando cumprimentar pessoas que o evitam e até fogem de Borat até o bastante elaborado sequestro de Pamela Anderson (apesar de nunca ter confirmado, a atriz provavelmente estava ciente e concordou em participar da cena). A tese central levantada é que simplesmente ao ligar a câmera e deixando as pessoas falarem sobre o país delas, vão revelar partes mais profundas da suas ideias e personalidade, coisas que teriam vergonha de falar publicamente, mas ao sentirem a segurança de Borat dizem e concordam com absurdos.

Por que “Borat” é tão engraçado se fala de assuntos tão sérios? Porque Baron Cohen entende de comédia como poucos, misturando humor de personagens, com a verdade do documentário, texto brilhante e improvisação, algumas cenas e bordões são completamente inesquecíveis e levantam dúvidas até hoje sobre sua realização, sim, estou falando da cena em que Borat e Azamat invadem uma convenção brigando pelados. E a cena no rodeio (da imagem a cima) é ouro de humor e crítica e uma síntese perfeita dos motivos de eu amar “Borat”.


2 - chumbo grosso

chumbogrosso.jpg

Eu sou alucinado pelo trabalho do Edgar Wright, de verdade, e para mim a trilogia Cornetto é o ápice da comédia no cinema, os três filmes, ligados pelas presenças de Simon Pegg (também roteirista da trilogia), Nick Frost e o popular sorvete da Kibon são exemplos perfeitos do que eu gostaria ver em qualquer filme de comédia, unicamente por motivos de flood que “Chumbo Grosso” é o único representante nessa lista, mas tenho opiniões semelhantes sobre a estrutura dos três filmes, sendo esse, o segundo, o meu favorito. Wright escolheu três sabores populares do sorvete e fez filmes partindo das cores das suas embalagens, “Chumbo Grosso” ganhou a cor azul, embalagem do sabor clássico, e por isso, fez um filme policial, onde a cor azul é predominante não só pelos uniformes das forças de segurança como no céu e casas do ambiente interiorano onde a maior parte das cenas acontece.

Nick (Simon Pegg) é um super policial, o melhor da academia em todas provas possíveis, um detetive brilhante e a encarnação da ética e sonha alto, por isso não fica satisfeito quando é promovido para sargento e transferido para a cidadela rural chamada Standford, muitas vezes ganhadora do prêmio de “Vila do ano”, lugar pacato com índice nulo de crimes. A incompetência de seus novos colegas não impede Nick de ser o grande policial preparado para qualquer situação, seu parceiro Danny (Nick Frost) é filho do chefe de polícia local e viciado em filmes de policial, Nick o prende na sua primeira noite em Standford por embriaguez antes de saber que seria seu parceiro. A parceria dos dois é fundamental para a dinâmica buddy cop elemento importante para o desenvolvimento da história e boa parte da interação dos dois é Danny perguntando para Nick se já reproduziu algumas das cenas mais clássicas dos filmes do gênero, o protagonista não conhece a maioria dos filmes. Uma série de mortes aparentemente acidentais faz os policiais desconfiarem que há uma conspiração em curso na cidade.

O que mais me anima em ver filmes do Wright é a criatividade dele para situações de comédia, ele tem um jeito mágico de olhar o cinema pelas infinitas possibilidades oferecidas pelo meio, a edição de seus filmes sempre é um espetáculo a parte, capaz de contribuir muito com a história e ser executada de maneira a dar mais tempo para o roteiro se desenvolver e várias das boas piadas decorrem dos truques de edição. Outra força de “Chumbo Grosso” é um elenco fortíssimo, destaque para Jim Broadbent como Inspetor Frank Butterman, um dos melhores vilões twist do gênero, alguns atores excepcionais fazem pontas memoráveis como Olivia Colman, Steve Coogan, Cate Blanchett e Stephen Merchant responsável por introduzir o grande personagem do cisne na trama. Algumas cenas por si só são dignas de nota, como uma motagem horrorosa de atores locais de Romeu e Julieta finalizada com uma performance de certo mau gosto da música “Lovefool - The Cardigans” e todo terceiro ato, vibrante e jogando referências a todos filmes de policial que Wright imaginou.

Os três filmes Cornetto compartilham um autor ambicioso que escolhe partir de pequenas dinâmicas pessoais para narrativas de larga escala, em última análise, Wright cria roteiros excepcionais para embasarem suas fantasias estéticas, algo que muitos criadores falham cada vez mais tentam fazer e falham, em “Chumbo Grosso” cada referênncia, cada escolha de trilha sonora, cada truque de câmera e cada piada se encaixam de maneira que poderíamos analisar cada uma delas no contexto do filme e chegarmos nas motivações para suas escolhas. Toda a profundidade temática e complexidade intelectual não excluem um elemento muito importante numa budy cop de ação: a capacidade imensa de proporcionar entretenimento que “Chumbo Grosso” e seus pares da Trilogia possuem.


1 - o auto da compadecida

oautodacompadecida1.jpg

Que fenômeno é “O Auto da Compadecida”, a minha vida inteira lembro desse filme sendo aclamado unanimente no Brasil. Dirigido por uns maiores dos maiores diretores de comédia brasileiro, Guel Arraes e baseado na peça do mestre do teatro popular Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida” é o suprassumo da brasilidade misturando a cultura popular, os conflitos rurais, a religiosidade e os causos urbanos com algumas das piadas mais ácidas ditas com assertividade e rapidez típicas da tradição repentista e da sabedoria popular do interior brasileiro. Centrado na história de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) dois homens que vivem de sobreviver no interior da Paraíba, os dois trabalham na padaria do mesquinho padeiro Eurico (Diogo Vilela) e de sua adúltera esposa Dora (Denise Fraga) onde são tratados pior que a cachorra. A morte do animal de estimação faz a dupla entrar em uma série de aventuras subsequentes, como é típico do auto, as ações são fragmentos de história que possuem resolução rápida, satirizam situações do cotidiano e apresentam aspectos éticos e morais encorporados pelos personagens.

Um destaque necessário a ser feito sobre “O Auto da Compadecida” é a habilidade fenomenal de seu elenco, a interpretação de Nactergaele como João Grilo é inesquecível, o ator rouba a cena interpretando um dos personagens mais carismáticos da literatura brasileira, mas muito além dos seus golpes, truques e enganações pensados em centésimos de segundos para sair das mais adversas situações, o ator entrega uma das cenas mais emocionantes do nosso cinema. O juízo final protagonizado por João Grilo, Emanuel (uma versão de Jesus interpretado por Mauricio Gonçalves), o Diabo (Luis Melo) e uma aparição salvadora de Fernanda Montenegro interpretando Nossa Senhora é o motivo desse filme clamar a primeira posição dessa lista. A maior atriz brasileira de todos os tempos redime os pecados dos brasileiros, comparando a vida de Jesus com a de João, a fome e a miséria do sertão que ainda assim exaltava a Deus quando via sua terra “por ser um sertanejo forte e cheio de vida”, no que é, para mim, o texto mais emocionante do cinema brasileiro a nossa própria Nossa Senhora da atuação Fernanda Montenegro relembra a humanidade e o perdão de um povo marcado pelo sofrimento. Selton Mello como Chicó é ainda um dos grandes destaques, interpretando com alegria a ingenuidade do parceiro de João, já se destacava como um dos grandes atores brasileiros, além dele Marco Nanini como Severino, o cangaceiro e Denise Fraga como a mulher do padeiro trazem momentos espetaculares para esse grande filme.

Comecei esse texto falando sobre a particularidade da comédia como um gênero mais que usamos para nos relacionarmos de forma mais racional e externa ao mundo. Em termos de psicologia de boteco a comédia tende a lidar mais com o nosso modo observador de mundo enquanto o drama se relaciona com os nossos valores, uma questão de moral e ética para repetir um clichê, “O Auto da Compadecida” ao encenar o texto de Suassuna ganha muita potência nos sentidos subjetivos que podemos construir com os personagens. Se eu não fosse brasileiro eu gostaria tanto desse filme? Acho muito difícil, o filme é uma obra excelente de direção, com grandes interpretações, uma direção de arte que além de impecável se tornou referência para o cinema brasileiro nos últimos 20 anos em jogo de cores e construção de cenários, a trilha sonora também é pronunciada e relevante, mas todos esses méritos técnicos não mudam o fato de que o filme de Guel Arraes conversa comigo e com muitas outras pessoas naquela parte do cérebro responsável pela nossa subjetividade e identificação. “O Auto da Compadecida” é, também, um fenômeno psicológico, o sertanejo, o padeiro, o coronel, o padre, nossa senhora e os diversos arquétipos utilizados por Suassuna compõem uma pintura fundamental do imaginário cultural brasileiro e por isso uma adaptação feita tanto carinho e primor técnico da obra se torna tão importante na história cinematográfica do país. E por isso também, é o primeiro lugar dessa lista.

Eu até ensaiei fazer um texto “objetivo”, mas a ideia de fato sempre foi explorar diversas maneiras que a comédia pode representar o que vivemos e por isso não tinha como fugir de abrir meu coração para filmes que falam sobre temas caros para mim. O gênero de comédia é parte tão importante do que consumimos regularmente, nas séries, nos filmes de super-herói, nas animações e até nos filmes de terror as influências da comédia são explícitas e fazendo essa lista e refletindo sobre minhas escolhas para ela revejo um pouco minhas colocações sobre o humor ser um elemento de análise externa, não para me corrigir, mas para complementar: a comédia faz a mediação entre o que vemos e o que sentimos, por isso é tão potente e tão difícil de ser reproduzida.

Anterior
Anterior

Crítica | Amor e Monstros

Próximo
Próximo

Crítica | O Hóspede