Crítica | O Sexto Sentido

CINEMA DE LUZ

Em filme icônico, M. Night Shyamalan dá as caras


O Sexto Sentido não é o primeiro filme de M. Night Shyamalan, mas parece ser.

Não só por ser seu primeiro sucesso, mas por servir como uma espécie de sombra que impede que qualquer outro de seus trabalhos seja visto sob a luz adequada. Para seus detratores, O Sexto Sentido representa o auge de Shyamalan, um filme do qual ele se afastou durante a carreira e que tinha todos os elementos de um grande filme - boas performances, boa cinematografia, boa direção e um roteiro redondinho.

E se o final do parágrafo lhe surge como ironia, então deve imaginar para onde iremos.

O curioso pra mim, que nunca cheguei a detestar seus novos filmes, mas embarquei na onda de considerá-lo um cineasta irregular, é que O Sexto Sentido não surge como uma sombra, mas sim um princípio. Uma tese de mestrado de um cineasta ainda jovem, que aprimoraria seu discurso e suas teorias ao longo da carreira, mas do qual a ideia base seria desenvolvida e testada aqui.

Dai, me parece haver uma espécie de cegueira não muito diferente da referenciada em A Vila (2004), daqueles que enxergam seu Cinema como esse parque de diversões abandonado e habitado apenas por criaturas esquisitas. Desde os elementos técnicos e textuais: as resoluções melodramáticas que herdou de Hitchcock, as resoluções de cenas violentas que cada vez mais me parecem Mizoguchianas, a cafonice dos olhares Spielbergianos, a grande reviravolta que ressignifica um filme inteiro, e as pequenas que surgem como idiossincrasias que muitos ignoram. Aos teóricos e semânticos: a morte como uma sessão de psiquiatria, a patologia como meio de purificação, o poder restaurador da imagem e, mais importante que todas essas, a importância da fé.

Já está tudo ali.

O erro, portanto, é enxergar O Sexto Sentido como um suspense que pisa em um território sobrenatural, quando o filme é, na verdade, um drama familiar que o habita. Assim como Corpo Fechado. E Sinais. E A Vila. E A Dama na Água. E Fim dos Tempos. E Depois da Terra. E A Visita. E a Trilogia Vidro. E Tempo. E Batem à Porta.


A VIDA (E A MORTE) DEPOIS DE O ILUMINADO

Na biografia do twitter de Shyamalan ele classifica Kubrick, Hitchcock, Ray e Kurosawa como seus diretores favoritos, o que é curioso pois a não ser que esteja falando de Kiyoshi, os últimos dois não são exatamente a primeira coisa que penso quando vejo um filme seu.

O Sexto Sentido, porém, me parece uma mistura quase exata entre os dois primeiros - com pitadas do “jovem” mestre do Horror Japonês -: o misto de sobriedade e caos da encenação de Kubrick, com a câmera que foca e potencializa rostos e gestos de Hitchcock. O uso de espaços, e a própria natureza mórbida e espectral do filme, definitivamente lembram o Inglês, mas a maneira como os fantasmas se tornam algo além da sugestão sugere uma continuação para O Iluminado (1980), e não Rebecca (1940) ou Vertigo (1958).

De certo modo, o longa poderia ser tranquilamente resumido com a seguinte logline:

O que acontece quando Danny Torrance volta pra casa com a mãe, e a cada nova visita do outro mundo se lembra do horror que passou no Overlook Hotel?

O curioso porém é que Shyamalan nunca transforma os ambientes do filme em uma entidade tal qual o hotel no meio da montanha, mas sim os internaliza nos quadros. Os cenários certamente são importantes - o trabalho de cenografia do filme é delicado em como compõe casa, escola e igreja como lugares sem vida e desconfortáveis, que com certeza se beneficiam da fotografia de baixa saturação e de tons musgueados (não é uma palavra) de Tak Fujimoto, que curiosamente estreou com os planos abertos, mas semelhantemente agridoces de Badlands (1973) -, mas ao contrário de Kubrick (ou Malick), que abre seus planos, Shyamalan utiliza esses cenários como elementos adjacentes do centro de cada cena (os rostos, as emoções). Quase como se o horror, que antes rondava os personagens, agora se encontrasse dentro deles.

De todos, diria que Corpo Fechado e A Vila parecem ser seus filmes mais Kubrickianos, filmes com planos alongados e/ou uma encenação mais movimentada dentro destes. O que destaca a edição de Andrew Mondshein, justamente indicado ao Oscar (e surpreendentemente quando pensamos nos vencedores dessa categoria), por fazer com que o filme pareça menos econômico do que realmente é. Apenas o essencial é visto: são poucos planos, mas muitos contra-planos, em cenas que se resolvem dentro de seus respectivos cenários (uma mesa de restaurante, uma mesa de casa, um carro) e tempos, mas possuem uma dinâmica frontal e que comunica sem a necessidade de ver o que não vemos - e aqui até acho que o filme falha na tentativa de emular um voyeur perseguidor, ou acaba cortando certos planos cedo demais (a cena mais famosa do filme sendo um exemplo, julgo que se fosse vista inteiramente do ponto de vista de Bruce Willis o impacto seria maior).

Ainda assim, essa decisão meio que se torna um componente de alívio: enquanto a estética das cenas emprega essa carga maior para cada imagem, a edição intervém para tornar aquele drama minimamente suportável. A energia do longa me remete a O Exorcista (1971), um filme talvez ainda mais implacável por jogar sua jovem protagonista de um lado pra outro na busca de uma solução. Aqui, ainda existe esperança no relacionamento entre Malcolm e Cole, de que um pode ajudar o outro a, literalmente, encontrar a luz.

O que, por sua vez, é uma característica puramente Shyamalana, delegando não à praticidade da fuga e dos espaços as chances de sobrevivência, mas aos relacionamentos de seus personagens.


contos de rebecas

Esses dias vi alguém comentar como Batem À Porta “fala o Mizoguchi”, um elogio que não fica na sombra de nenhum outro quando o assunto é Cinema. E, como ensinou Hitchcock (me sinto honrado de poder listar os dois maiores diretores da história em duas linhas com o que julgo ser uma analogia que tenha pelo menos algum valor), após sermos condicionados, nossos olhos passam a procurar as manchas no dia a dia.

Kenji Mizoguchi, em seus melhores filmes (todos os 15 que vi), transforma sua câmera nessa testemunha inabalável, e Shyamalan explora isso em momentos pontuais de sua carreira. Quando o guri fala com a mãe à mesa, o plano-contraplano logo dá lugar a um movimento de câmera que vai de um a outro lentamente, como que explorando a cena de modo independente ao peso que aquele ritual tão comum carrega no momento - era para ser um café da manhã comum, mas as coisas não estão bem, e nossa atenção não mais é guiada pelos cortes, mas por um movimento de interesse que beira o sádico.

O que torna ainda mais absurdo quando um crítico comenta como sua direção é boa, mas o roteiro não ajuda, sendo que o cara simplesmente se comunica com esses movimentos, zooms e composições. Quando a cena avança e volta para o plano-contraplano de Toni Colette (bela em como balanceia sua aura atormentada com seu amor pelo filho) e a marca da mão invisível desaparecendo na mesa, voltamos para o Hitchcock, para o olhar e a mancha, e o filme assume de maneira física sua dimensão sobrenatural.

Entre outros momentos, há uma inversão do olhar de Vertigo e talvez da própria premissa de Contos da Lua Vaga (1953), onde é Malcolm (morto) que idealiza sua esposa (viva). Uma inversão que, obviamente, é apenas revelada na conhecida reviravolta do filme, mas que ganha força justamente por isso - a reviravolta em si, uma outra referência a ambos os filmes. E Shyamalan acha espaço também para algumas decisões mais maneiristas e conectadas ao cânone do terror: as lentes angulares que tornam o professor uma criatura distorcida e ameaçadora, o enfoque nos dentes irregulares do guri, o vômito ala-Exorcista da guriazinha fantasma, os eventuais mortos que andam por aí livremente como se aparecer na imagem os fixassem nesse mundo - tal qual um filme de Buñuel.


O CINEMA POR DEBAIXO DO “BOM FILME”

Cinefilia pode ser uma condição patológica ou um poder extremamente valioso, e Shyamalan a usa de maneira esplêndida, fazendo um malabarismo de referências sem nunca perder a ideia central de seus filmes. Pelo contrário, colocando essas referências sob seu próprio estilo, e explorando a cada novo trabalho os temas que listei no começo deste texto.

O que torna O Sexto Sentido ainda mais especial para entender sua obra - e mesmo a recepção de seus filmes. Aqui, ele ainda estava aprendendo a lidar com a morte, a conversar com esses fantasmas, a revelar a pureza sob e pelas lentes do horror. Quem julga esse ser um filme à parte de tudo que fez depois, está com a visão turva, limitada a ponto de cair em um plot twist que se entrega logo na primeira cena. Basta estar atento ao toque (ou, na cena do restaurante, em sua ausência), ao isolamento emocional e físico de Malcolm, a como sua única chance de comunicação com o mundo é pelo gurizinho que vê os fantasmas, que O Sexto Sentido se torna quase o anti-plot twist (e eu sou péssimo em perceber essas coisas).

O momento chave, portanto, não é a revelação, mas o ato de purificação que a relação de seus dois protagonistas proporciona. Um pai que descobre um registro de sua filha recém-falecida, uma tentativa dela de fazer um filme (!) que acaba revelando uma verdade que ficaria escondida para sempre (sim, Shyamalan com uma única cena fez A Visita já aqui). É o poder purificador da imagem, e o leve zoom que mostra o rosto do pai enquanto assiste é das coisas mais bonitas que o homem fez na carreira.

Mas claro, a iluminação quasi-sépia que toma conta do rosto de Bruce Willis, conforme este entra em paz com sua verdade e se permite ascender (no melhor estilo Ghost), é o final ideal para um filme que começa literalmente o enquadrando no reflexo de uma premiação tão mundana (para não dizer coisa pior). Aqui, Shyamalan quase cria uma dialética com o próprio filme: enquanto o pequeno Cole tem de aprender a lidar com a morte para seguir com a vida, Malcolm precisa aprender a lidar com a vida para seguir com a morte. E o mais bonito é que, em um Cinema sobre a fé, ambos os caminhos são cheios de luz.

9

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