Crítica | A Vila
ISOLANDO A FANTASIA
Primeiro filme polêmico de M. Night Shyamalan é metáfora para os EUA
A primeira cena… ou melhor, o primeiro plano de A Vila é um enterro. Testemunhado por pessoas vestidas como no fim do século 19, e que conforme o zoom nos aproxima do aspecto prático do ritual (literalmente, enterrar o caixão) vão desaparecendo por trás da câmera - ou melhor, da câmera descorporificada, pois esta não muda de lugar.
É um movimento quase Hong Sang-sooniano, que exclui da cena aspectos que ainda fazem parte dela. Testemunhas de um ritual social, participantes em espírito no ato de passagem da carne para o espectro.
Mas se em O Sexto Sentido (1999) os mortos ainda permanecem nesse mundo, em Corpo Fechado (2000) a fé ainda é um elemento sobrenatural, e em Sinais (2002) o medo do desconhecido também carrega uma realidade fantástica, é natural que, na progressão dos filmes de M. Night Shyamalan com o mundo que acontece ao seu redor, A Vila seja o mais implacável de todos até então.
Seu primeiro após os atentados de 11 de Setembro (Sinais foi concebido antes) é claramente um exercício de analogias: uma vila isolada, onde todos acreditam cegamente no sobrenatural que os cerca, e preferem acreditar na proteção de seu experimento social a tentar descobrir se o que existe lá fora é realmente perigoso - ou se esse algo sequer existe.
Tornando A Vila quase um filme de Shyamalan ao contrário, onde seus protagonistas já acreditam no fantástico e precisam passar por um processo de aprendizado, trocando os mitos e as figuras gigantescas da caverna de Platão pela ciência.
O que, à primeira vista (piada não intencional), pode sugerir um filme com uma moral complexa, mas que fica ainda mais complicada conforme esta é desvendada.
Spoilers à seguir
CINEMA DE EXPERIMENTOS
Shyamalan é facilmente o grande diretor da Hollywood contemporânea que mais experimentou com seu Cinema ao longo da carreira. Nolan abusou de truques e tecnologias, Villeneuve parece ser uma extensão levemente mais conceitual, PTA foi de um adolescente tarado a um senhor de meia idade nostálgico, Fincher não impressionou quando se afastou de seu estilo característico e Wes Anderson descobriu um mundo de idiossincrasias que provavelmente vai abastecê-lo por toda a carreira.
Mas Shyamalan, além de fazer sempre o mesmo filme, em busca da representação máxima do que acredita em seu Cinema, explorou conceitos, teorias e subversões que fazem seus colegas parecerem os próprios habitantes da vila. Fechados em seu cerco megalomaníaco (característica que Shyamalan divide), sem nunca se aventurar de verdade fora dele.
Em Tempo (2021), ele coloca esse Cinema de experimentos à vista: seus personagens são literalmente parte de uma investigação supervisionada por ele, o diretor do filme e os olhos no filme. Nesse e em A Vila, ele faz algo que me lembrou Kurosawa em High and Low (1963), um filme sobre a cegueira daqueles que participam do experimento, sobre ameaças invisíveis e confinamentos físicos e psicológicos.
Não que a vila em si seja um lugar desagradável - ao manter a farsa pela maior parte do filme, somos convidados a entender os modos daquela sociedade tão diferente, mas ainda tão comum (o Cinema de época era algo forte no início dos anos 2000, o que também mostra a atenção de Shyamalan ao que ocorre ao seu redor, ao mesmo tempo que cria um anacronismo de percepções que se faz crucial pro filme). O trabalho de cenografia é simples, mas cuidadoso em estabelecer a riqueza daquele lugar limitado. Se afastando do que havia feito em Sinais, aqui Shyamalan abre os planos de modo que os personagens possam explorar os campos abertos, onde podemos ver as casas grandes que uma vida reclusa permite, ou podemos nos aproximar de flores que surgem como um refúgio para jovens que sempre precisam de algo de romance e rebeldia.
A encenação aqui, no entanto, se afasta de Hong Sang-soo por não ser tão aguda: por mais que os personagens preencham o campo em diferentes linhas, estes também se movimentam de maneira mais coletiva, sempre em grupos, de modo que respeitam essa ideia de controle espacial, que remete à Kubrick. Daí quando as cenas se limitam aos protagonistas - ou mesmo aos coadjuvantes -, a sensação é de uma lógica Mizoguchiana, de resolver tudo em um único plano que até muda de lugar e de tamanho, mas sempre procura um enquadramento simbólico - as cenas na varanda exemplificam isso. Algo que, aliado à fotografia pastel e com profundidade de campo aumentada de Roger Deakins (cujos melhores trabalhos são justamente estes mais homogêneos), me lembra Cinzas do Paraíso (1978) e o Cinema de Terrence Malick. De novo, uma progressão natural de todos os seus filmes anteriores.
Até mesmo o suspense é integrado de maneira natural. A perseguição na floresta, e o visual macabro e sombrio desta, nos aproximam do Cinema de Horror que Shyamalan tanto gosta. Um suspense que funciona em diversas camadas, tanto na prática - a lógica da cena é algo realmente tenso, um misto de câmera na mão que emula um A Bruxa de Blair (1999) com o olhar fantasioso e maravilhado de Shyamalan, e um uso específico da falta de visão de Ivy para potencializar a tensão (como ela não enxerga, nós enxergamos mais ela do que qualquer outra coisa) - quanto na semântica - a possibilidade de uma criatura realmente existir derruba tudo que fomos condicionados a acreditar sobre aquele mundo.
Orgânico não seria bem a palavra, mas a relação da “vila” com o espaço do plano é algo intrínseco ao comentário do filme: uma liberdade condicionada, uma coletividade limitadora, um ao redor ameaçador, que transforma aqueles que pensam diferente em criaturas deslocadas. Estes, os protagonistas.
CINEMA DE PURIFICAÇÃO
No começo da minha cinefilia, costumava dizer que “nada em um grande filme é por acaso”. Algo que mantenho em certo grau, mas que certamente é um conceito desafiado por vários diretores - de Sang-soo a Buñuel.
Em A Vila, o lábio de Joaquin Phoenix se torna um detalhe curioso dentro da lógica interna do filme, mas colossal quando em vista o Cinema de purificação de Shyamalan. Um lábio que a pequena de Batem À Porta também traz, uma marca que aproxima os dois da protagonista de Fragmentado (2017), onde ser “marcado” é algo que eleva o ser - não há melhor palavra do que benção, nesse caso, pois é uma marca de nascença. É claro que Lucius tem o recorde de ficar de costas para a floresta, onde as supostas criaturas habitam, ele já nasceu (para o Cinema de Shyamalan) com um poder especial.
Mas se algo tão pequeno como uma cicatriz o torna alguém que acredita em algo além das criaturas (pois os outros jovens também acreditam, mas apenas no que lhes é dito), o que dizer da aparente esquizofrenia do personagem de Adrian Brody? O próprio Phoenix verbaliza esse Cinema de purificações ao teorizar que, por conta dessa condição, as criaturas não o atacam por pena. Mas se a relação do filme com as patologias de seus personagens é turva (inicialmente elas sugerem uma proteção especial, mas logo se tornam apenas uma passagem para a verdade do ceticismo (que esta verdade os leve, também, à liberdade, torna o resultado do cálculo algo positivo, eu acho)) - é graças à Ivy de Bryce Dallas Howard que A Vila não se desmonta - literal e figurativamente.
Em uma resolução Hitchcockiana de eliminar o aparente protagonista com uma faca no meio da produção - um choque de patologias, David Dunn contra A Besta -, Shyamalan abre caminho também para entendermos que a verdadeira protagonista de A Vila é justamente a guria que, nascida com os cabelos ruivos (o mais próximo do perigoso vermelho que nossa biologia permite), simboliza tudo o que o filme se propõe a examinar.
Naturalmente linda, Bryce Dallas Howard é alma e olhos de um filme sobre a cegueira. De pouco importa se ela “convence” como cega (uma convenção de atuação que Hollywood ainda se agarra), quando sua performance é de uma magnitude esplendorosa. Quase como que habitando uma dimensão diferente dos outros personagens (ela, literalmente, vê o mundo de um modo diferente), sua aparência etérea (que remete a Jessica Chastain em A Árvore da Vida (2012)… a arte imita a arte!) e visível bondade que beira a ingenuidade a fazem parecer um anjo, enquanto a descoberta da idade e tentativas de flerte a tornam uma jovem comum, com desejos carnais e humanos e que a prendem ao mundo que aqueles ao seu redor vivem como raízes.
O plano dos dois na varanda já é maravilhoso por mostrar este aspecto mundano, e a cena onde ela estica a mão para o escuro, acreditando que o que irá alcançá-la é seu amado e não uma das criaturas, é provavelmente a principal de todo o filme e uma das maiores cenas de todo o Cinema de Shyamalan. A pureza do acreditar, permitida apenas pelas marcas que tornam seus personagens, aos olhos desse Cinema, criaturas puras.
O SHOW DE SHYAMALAN
É curioso porque, apesar de considerar a concepção de A Vila algo complexo e substancial, acho que é, ao lado da resolução de Sinais, um dos momentos onde Shyamalan, o roteirista, começa a ficar no caminho de Shyamalan, o diretor.
Seja pelo cálculo duvidoso que comentei acima, seja pela decisão de permitir que sua protagonista enxergue o que há além apenas para decidir ficar com a caverna que tinha antes, sinto como se a mensagem final fosse menos do que valiosa - fora o fato de que o cara com problemas mentais acabar sendo o “vilão” do filme é um estereótipo negativo do próprio Cinema norte-americano. Além disso, toda a ideia por trás de revelar a verdade e mandar Ivy para “a cidade” não faz muito sentido, a não ser que esperassem que ela morresse no caminho, o que mostra uma fragilidade no roteiro que poderia ser facilmente contornada com um diálogo.
E, após refletir muito, sigo não gostando do final abrupto que sugere que o experimento não terá o fim que merece - a revelação da farsa para todos e libertação daqueles inocentes ignorantes -, mas não posso fechar os olhos para o motivo de Ivy retornar.
Assim como em qualquer filme de Shyamalan, as relações humanas são o que movem seus personagens em suas jornadas. Daí, a manipulação da verdade - para Ivy, ela pode muito bem ter encontrado uma criatura -, surge como uma arma imbatível daqueles que detém a informação e o controle. De certo modo, A Vila é o único filme de Shyamalan onde o estabelecimento supera a magia. Algo que não me agrada - e não deveria agradar ninguém -, mas não deixa de ser simbólico em um filme justamente sobre a cultura do medo que tanto modificou os Estados Unidos nos anos 2000.
Dentro das possibilidades, A Vila ainda encontra coisas para se agarrar. A bondade no coração de um guarda, o amor entre dois jovens. Sentimentos e sensações que tornam possível viver em um mundo corrosivo, corrupto e injusto, onde a ilusão de conforto supera a curiosidade pelo desconhecido.
Nem todos são Truman, pois nem todos tem nos céus sua porta para a liberdade.
… ou tem?
Retornando para o início do filme, uma rima é feita com o final. A morte é a única libertação que aquelas pessoas podem conhecer, então porque a recuperação de Lucius é para ser algo positivo? Talvez Shyamalan acredite que viver com amor em um lugar de mentiras é melhor do que ascender para um outro plano. Afinal, diferente de O Sexto Sentido, feito naqueles ingênuos e caóticos anos de final de milênio, A Vila foi feito em um mundo diferente. Cinzento, esfumaçado, em ruínas psicológicas (o 11 de Setembro) e físicas (a guerra no Iraque), onde o fantástico (muitos realmente acreditavam que algo iria acontecer na troca do milênio) deu lugar ao trágico.
Talvez a morte, para um Shyamalan que viu de perto este novo mundo, não seja mais algo libertador. Talvez ele, aqui, acredite que é preciso viver com o que temos. E se é possível ficar horas debatendo e teorizando em cima disso, é apenas porque A Vila é um experimento bem sucedido.