Crítica 2 | Corpo Fechado

o herói comum

Em um de seus filmes mais celebrados, Shyamalan subverte o gênero sem fugir do clássico


Na cultura pop do século 21 - mais precisamente, do fim da década de 2010 - poucas teorias são tão pseudo-aplicadas como a Jornada do Herói. A teoria, como o nome já sugere, pode ser resumida assim: um herói tem seu cotidiano abalado e tem de enfrentar algum obstáculo extraordinário, retornando com lições e aprendizados.

Apesar de ser nomeada por Joseph Campbell em seu livro, O Herói de Mil Faces, ele não foi o principal, muito menos o primeiro nome, a reconhecer estar semelhanças - o psicólogo Otto Rank e o antropologista Lord Raglan desenvolveram conceitos similares -, mas é a ele quem se deve o termo. No livro, Campbell disserta sobre os componentes da tal jornada, comparando religiões, mitos e histórias, utilizando de conceitos da psicanalise de Freud e dos arquétipos de Carl Jung. Estes, influenciados pelas Ideias de Platão, categorias de Kant, e protótipos de Schopenhauer.

Muitos nomes de pessoas inteligentes, em busca de uma mesma resposta: de Jesus Cristo à Luke Skywalker, de Tolkien à Pixar, de religiões Africanas ao Folclore Nórdico. Por que o mesmo padrão sempre aparece?

Dezenas de YouTubers e criadores de conteúdo nerd já brincaram de aplicar a jornada do herói - se conhecem suas origens ou o próprio conceito, vai além de mim - em seus filmes favoritos, e embora seja tentador tentar encaixar Corpo Fechado, ou até mesmo toda a trilogia de Shyamalan nas 17 etapas de Campbell, não é o intuito desta crítica tanto quanto entender como o conhecimento da teoria enriquece a experiência com este filme e suas sequências.

M. Night Shyamalan, embora não tão claro lá em 2000 como em 2006 (e em anos subsequentes, é claro), é um aficcionado pela arte de contar histórias - paixão que, diga-se, provavelmente limita sua própria percepção pelo que escreve e constantemente afeta seus filmes. Lógico então que ele escolhesse subverter convenções de um gênero que parece cada vez mais seguir tudo que Corpo Fechado sugere, enquanto trilha a jornada do herói da maneira mais clássica possível (apresentando aqui a primeira de tantas dualidades no filme).

Se há alguém mais comum que David Dunn, é provavelmente qualquer um de nós.


COMO EM UM QUADRINHO

Não sei se é possível chamar Shyamalan de um diretor minimalista. Mesmo em seus filmes mais podados (Sinais, A Visita) há um senso de importância que torna a simplicidade de suas imagens em eventos grandiosos. Sejam eles um Alien flagrado em uma câmera caseira, uma vó arranhando uma porta, ou uma menina ruiva retornando para seja lá o que acontece em A Dama na Água.

É indiscutível porém como, diferente de outros filhotes de Hitchcock (Fincher, Petzold, K. Kurosawa), ele acaba sendo mais econômico. É uma economia pensada na decupagem para representar expansões: a conversa em plano sequencia de Dunn com a mulher no trem revela informações cruciais sobre ele com um tom julgador, mesmo sem sabermos qualquer contexto sobre sua vida. Bem a cara do Shyamalan iniciar o filme com o olhar de uma criança curiosa e provavelmente entediada que, como completa o Sr. Vidro em seu respectivo filme: tem o superpoder de poder ver o mundo como ele é.

Essa alternância de pontos de vista, inclusive, me lembrou um quadrinho e suas muitas janelas, coisa que os planos mais lentos acabam remetendo também. Ficamos com aquelas imagens por um tempo além, absorvendo o diálogo enquanto passeamos o olho pelas composições. A conversa do Dunn com a mulher no restaurante, a câmera se aproximando de leve, os aproximando na cena e aumentando o quadro no fundo, é dos planos mais bonitos dele.

Ao fazer essa economia, Shyamalan também simplifica nossa relação com a jornada de Dunn. Vemos sua vida, despedaçada como ela está, clamando por algo que o tire da mesmice. Algo esse que nem o acidente, e as sugestões de terror que fizeram Shyamalan famoso (a cena no hospital, plano único, sangue borrando o avental), são capazes de atingir. É uma simples carta, com tom arroxeado, que finalmente entrega a premissa Hitchockiana: alguém observa Dunn.

Me parece até que é uma inspiração meio acanhada, que Shyamalan apressa um pouco os jogos de plano-contraplano e não atinge todo o potencial de suspense que o filme possui. Se proposital, ou questão de estúdio (o filme ficaria ainda mais lento), não sei, mas acaba entrando mais num campo Bressoniano, de rejeitar o espetáculo e questionar a fé enquanto se nega a abdicá-la. A própria simplicidade das imagens, e a obscuridade dos planos, fala mais com Bresson, um cineasta que se brincasse um dia de super herói provavelmente teria uma imagem não muito distante do sobretudo que lembra a morte vestido por Dunn.


DUALIDADE ARQUÉTIPA

Para Carl Jung, a experiência humana oferece uma espécie de consciência coletiva, para além do que experienciamos, mas nascemos com. Dentre tudo, conceitos que chama de arquétipos: uma ideia ideal de mãe, não apenas uma mãe. Apesar de não haver uma lista concreta, alguns dos Eventos, Figuras e Temas destacados por Jung são facilmente reconhecidos em Corpo Fechado e suas duas sequências:

O Nascimento de Elijah é a primeira coisa que vemos, e o acidente causado por ele serve como A Criação de Dunn e Kevin. Todos passam por uma Iniciação, onde aceitam suas identidades: o Herói, o Trapaceiro, a Criança (tanto Kevin como Joseph), a Mãe (Audrey, Casey), a Sábia (Dra. Fletcher), e a própria fraqueza de Dunn ser a água conversa com um dos temas mais famosos e recorrentes, A Enchente. De mais interessante, o conceito de Si - abordando tanto as crises existenciais de Dunn e Elijah, como a extrapolação em Kevin -, da Sombra - que Shyamalan usa como as trevas de Kevin, e o heroísmo de Dunn - e, em Corpo Fechado, o principal deles: A União dos Opostos, como o Sr. Vidro verbaliza no início e no final do filme, em uma rima poderosa que evidencia a importância do tema.

O mais divertido é como Shyamalan brinca com essas dualidades. A figura cansada de Dunn oposta à figura fantástica de Elijah. O verde musgo que vai lentamente ganhando cor, o roxo onipresente. As imagens digitais que retiram imperfeições e captam o além do real, a imperfeição do mundo sendo vista como que de uma câmera parada, um voyeur indesejado. A trilha eletrônica que cria uma cínica antecipação, a orquestra que cria emoções quase Spielbergianas. Se o poder de um é o toque, esta é a fraqueza de outro.

E justamente por caminhar neste limiar entre o extra e o ordinário, utilizando ambos os personagens como conceitos de ambos, as pequenas vitórias de Corpo Fechado impactam tanto. Se hoje nos impressionamos quando um Deus Nórdico sobe aos céus e joga trovões em uma tela verde, 20 anos antes Shyamalan transformava uma sessão de treinos com latas de tinta em um evento quase onírico. O que poderia ser intuição, com as palavras certas, se torna habilidade; o que poderia ser proeza física, se torna super-força; o que poderia ser acaso, se torna dádiva. Assim a própria natureza do filme se torna dualista, e cabe a nós, identificados com a fragilidade do vilão e com o esplendor do herói, definir a qual lado pender.

Em suma é um filme que nos faz duvidar do acreditar, apenas para construir uma narrativa que nos convence a tal. Shyamalan, aquém de qualquer religião, tem fé no incrível poder de contar histórias e de que, mesmo que perdido na máquina comercial, um bom quadrinho pode resgatá-lo.


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