Crítica | Na Praia À Noite Sozinha - O Runaway de Hong Sang-soo

um brinde a si mesmo

Encontrando o que há de pior, Hong Sang-soo faz filme mais implacável da década


Perdido no LetterBoxD, encontro um comentário (nem crítica era), que compara o filme de Hong Sang-soo com Runaway, de Kanye West.

Depois de um leve esforço, fica até meio difícil de não conectar as duas obras, ambas sobre homens que reconhecem seu comportamento destrutivo e fazem arte sobre si mesmo pra se desculpar (Sang-soo ainda usa Kin Min-hee, atriz com quem teve um caso, na desculpa), e a música em si não deixaria de fazer sentido na mise-en-scène de Na Praia À Noite Sozinha, filme que, como diz a descrição do MUBI, tem nome de quadro.

Talvez um quadro que converse mais com a desolação melancólica entre o tribal e a tecnologia de 808s & Heartbreak, do que com a megalomania maximalista de My Beautiful Dark Twisted Fantasy, mas que se encontra justamente na ponte entre estes dois trabalhos. E por mais que tenha procurado (sou no máximo um curioso por Pintura, por hora), não encontrei estilo de qualquer artista que pintaria algo próximo da imagem de Kim (as coincidências são fortes demais) na praia, à noite sozinha.

As paisagens cotidianas de Georges Seurat me lembram Éric Rohmer, mas não justificam a ligação que há entre ambos os diretores; o sul-coreano Tschoon Su Kim pinta cores semelhantes, mas não formas; e O Grito, de Edvard Munch comunica algo que me parece próximo ao que Younghee sente, com o Expressionismo ao menos dialogando com o Surrealismo de sutilezas de Hong, fruto de seu tratamento Ozueiro (não há termo melhor) do Cinema de Buñuel e, como propõe o ótimo texto de Pedro Lovallo, do onírico banal de Lynch.

Mas talvez… não, talvez não, nenhum desses provoca o mesmo tom que o filme que, de acordo com o próprio, o inspirou a se tornar diretor. Diário de Um Pároco de Aldeia, de Bresson, logo se torna um ponto não apenas de influência, mas de conexão de Hong com todos estes surrealistas e com o próprio Kanye. Ao proclamar que o inexplicável em seus filmes (o rapto, o limpador de vidro) não importa porque tudo é ilusão, tudo é falso e, portanto, tudo é graça, Hong conecta sua cosmologia do cotidiano à distorção deste, com fundamentação na fé e na desoladora resposta que ela pode oferecer, ou não.

E como não pensar no homem que começou a carreira falando sobre a vontade e o medo de falar com Deus, e anos depois atingiu o auge de sua solidão se referindo às fotos que ela encontrou em seu e-mail?

Conexão que evidencia, também, a auto-destruição sugerida nas duas obras. Enquanto Kanye podia ter para si uma boa garota, mas segue viciado nas ruins, Hong ilude nossa percepção já no primeiro plano, quando o vapor da boca de Younghee parece ser do frio, mas se revela do cigarro.

Aliás, a própria música que Younghee toca no piano momentos depois não difere muito dos minutos finais, inteligíveis, de Runaway, interpretados por muitos como a maneira de Kanye mostrar como suas opiniões são percebidas pela mídia. Composição assombrosa e simples que, primeiro, surge fora da diegese, mas se desnuda com o corte para se tornar parte auto-fabricada desta.

Os une também a paranoia adjacente, fruto da mania de perseguição desenvolvida pelo ego, que um responde com citações diretas (em Power e Gorgeous, por exemplo) e o outro com sugestões (de novo, o esquisito que segue Younghee).

Se um ouve o outro, e se o outro assiste o um, não faço ideia - embora ache mais provável Hong ouvir Kanye que o contrário.

O que consigo imaginar… ou melhor, visualizar, é Younghee correndo de si mesma, enquanto seu diretor a engole em sua estética opressiva ao mesmo tempo em que a avisa para seguir correndo. Nenhum raio verde será visto naquele pôr-do-sol coberto por nuvens, pois não há no filme alguém que a convença a buscar o mítico no natural. Mesmo que Younghee se divirta jogando os jogos sociais que deixam Delphine desconfortável, ambas possuem em si mesmas um campo de força que as afasta de qualquer estabilidade. A primeira parece conseguir controlá-lo à vontade (os impulsos, as alterações na voz, a acidez, o beijo), mas nunca eliminá-lo, enquanto a segunda é refém dele a todo momento.

Na Praia à Noite Sozinha, portanto, é dos filmes mais desoladores da última década, por sugerir uma solidão implícita em tudo à volta de sua protagonista. Ela que, por sua vez, serve o propósito de seu diretor maniqueísta, de examinar a própria natureza enquanto tenta se desculpar por ela.

E não há estilo mais apropriado para buscar não os raios verdes, mas os que anunciam tempestades, do que o de Hong. Sua câmera passeia pelas cenas à vontade, presta atenção no que quer e, convenientemente, expõe o que interessa. Apesar de sugerir que a espontaneidade de seus atores seja parte essencial, ela nada mais é do que uma resposta à sua autoralidade opressiva, claustrofóbica, que permite expressões apenas com o intuito de analisá-las em prol da sensação principal. Sim, longe da Música de excessos de MBDTF, mas não distante de suas notas isoladas de piano, suas batidas mudas de 808, e suas alterações óbvias na voz - talvez o traço técnico mais semelhante entre os dois seja justamente esse, se apropriar de obviedades para comunicar complexidades.

A pergunta proposta pelo texto de Ray Gardnier me parece questionar tudo o que há para questionar: não seria nesse limiar entre o humano e o monstro, nessa pesquisa incontida pelos caminhos e descaminhos do humano que se instalaria todo o projeto de ficção de Hong Sang-Soo (e, complemento, a música de Kanye West)?

Dois artistas que, em espectros diferentes do cenário artístico contemporâneo, parecem buscar a mesma coisa. Perdão - moral ou divino - e aceitação - coletiva ou própria - por serem quem são. Brindemos.

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