Crítica | Raio Verde
A desolação do cotidiano
Em Raio Verde, Rohmer dá imagem àqueles que não gostam de tê-la
Delphine é o tipo de pessoa que não se sente confortável em nenhuma situação. Ao longo dos 90 minutos de Raio Verde, ela viaja para lugares paradisíacos onde encontra diversos tipos de pessoas, algumas com histórias interessantes, outras no mínimo curiosas, outras que merecem ao menos que se pare para ouvir o que conversam com os amigos.
Mesmo interagindo com os arredores do cotidiano, e se atraindo por eles no melhor jeito Janela Indiscreta móvel, ela não parece sentir prazer em nenhum desses momentos, ou melhor, sequer parece procurar qualquer coisa enquanto passeia com suas pernas e seu olhar. Essa sucessão de momentos, diferentes apenas em detalhes e nunca em natureza, escancaram a natureza da própria personagem: ela até consegue, mas não compreende a ponto de tolerar essas interações que compõem uma relação em sociedade.
Rohmer e seu estilo quase presente, onde o zoom da câmera é percebido na mesma medida que seus leves desenquadramentos (em certo momento, a câmera parece até se interessar pela amiga loira que ela faz na praia), segue seus movimentos situando um realismo desolador, de uma sinfonia urbana que pode trocar de cenário, mas nunca de efeito. Para Delphine, da mais radiante amiga pelada que faz na praia, até o mais canastrão dos paqueras, a barreira é a mesma, uma que, como disse, nem ela própria entende direito.
Meu palpite é que Marie Rivière - a atriz co-escreveu o roteiro - e Rohmer também não entendem, mas procuram investigar em um filme sobre um tipo nem tão incomum. Conheço, ao menos, umas três versões similares de Delphine, e todas exalam a mesma energia que este filme que, mesmo composto com as cores alegres de Rohmer (qualquer filme com cor no nome é um convite para você procurar a tal cor em todas as cenas, e este aqui é inundado de verde) e situado em cartões postais, soa como seu mais devastador retrato de tempo.
Tempo esse que surge de maneira subtextual em filmes como Pauline na Praia, mas que aqui ganha até letreirinhos pintados em verde. Para Delphine, cada segundo explicando sua escolha pelo vegetarianismo (o verde) é uma eternidade, enquanto suas perambulações aleatórias surgem quase como uma forma de liberdade. Quando ela para com o único ser capaz de lhe arrancar um sorriso sincero (as plantinhas nascendo nos troncos atrás deles sendo um toque delicado e fabuloso que remete ao tal conto de fadas que os velhinhos falavam), eles precisam esperar o tal raio verde, um momento daqueles onde o tempo para ao mesmo tempo que passa extremamente rápido, justamente por estarmos perdidos em emoções mais importante que a percepção.
É uma cena transcendental, mesmo que não faça sentido completo pra mim. Seguindo a lógica narrativa do livro de Jules Verne, a libertação seria Delphine perder o raio verde ao encontrar o amor nos olhos do rapaz… ou um caminho contrário, com ela olhando para o raio enquanto ele olha para ela (ou vice-versa). É curioso também a despreocupação de Rohmer em manipular a luz no plano dos dois, sendo que o sol se põe mas continua dia - algo que não estraga a cena, mas talvez seja um desperdício de oportunidade (vale a pena mencionar que Boyhood, outro filme essencialmente verde, rouba o final deste de maneira brilhante).
É curioso porque, se Pauline na Praia soa mais como o que inspiraria Hong Sang-soo formalmente, este possui a mesma energia que o meu favorito de seus filmes. As semelhanças entre Delphine e a menina que caminha Na Praia À Noite Sozinha indo além de suas relações de musa com seus diretores. Ambas caminham e procuram, nas ruas e nas pessoas, algo que não conseguem achar em si mesmas para amenizar o poder daquilo que as afastam de tudo.