Crítica | Tudo Sobre Minha Mãe

As mães de Almodóvar

E tudo sobre elas


A maioria dos filmes de Pedro Almodóvar trata diretamente da relação de personagens com suas mães, quase sempre com tragédia, e todas as vezes com uma ternura possível apenas para alguém que, filme após filme, tenta pintar algo intangível. Logo, talvez seja possível dividir a carreira do diretor espanhol como antes e depois da morte de sua mãe, em 1999, poucos depois do lançamento deste filme.

Nesse sentido, seu Cinema se aproxima do de Alfred Hitchcock, ambos assombrados por uma figura feminina que, em Hitchcock, surge como inimiga, e em Almodóvar como um ponto de fuga. É uma aproximação que pode ser principalmente percebida pela idealização espectral de Vertigo, Rebecca e, claro, pela trama absurda de Psicose. E Almodóvar, assombrado pela presença remanescente de sua mãe - que volta à vida em Fale Com Ela e Volver, é reconstruída em A Pele que Habito e re-escalada por sua musa em Dor e Glória - ele dedica seus filmes à tentativa de registrar na memória, na efemeridade duradoura da imagem em movimento, a idealização que tinha da pessoa mais importante de sua vida.

Nela, ele encontra não apenas a alma de seus filmes, mas sua representação estilística que se tornou tão característica.

Gosto de pensar que minha paixão por cor é a resposta da minha mãe para os anos de luto. Mesmo que ela estivesse vestida de preto quando me teve, nela estava gestando a vingança contra o monocromático escuro, obrigatório por tradição. Eu era a vingança dela, e espero que eu tenha sido bom o suficiente. Por 35 anos, eu tenho tentado com todo meu coração.

Os ângulos esquisitos e a alternância de enquadramentos em movimento seguem a natureza da narrativa. Se dois personagens estão separados no cômodo, eles vão se aproximar, e a câmera compreende essa aproximação. Afinal, é um filme sobre isso, sobre criar novos laços onde antigos foram decepados, onde as relações se entrelaçam como em uma novela - outra forte inspiração de Almodóvar -, e mesmo não bem entendendo as necessidades, intuitos ou vontades daquelas pessoas, somos convidados a nos fragilizar com seus estados. “Por que com Lola?”, pergunta uma mãe à outra, ambas mães de filhos do mesmo pai, uma mulher transgênero que trabalha como prostituta.

ALGO PARA QUAL NUNCA ESTAMOS PREPARADOS

O amor de Almodóvar por sua mãe só pode ser rivalizado pela própria arte, esta a única maneira possível de eternizar este amor. Na Literatura do rapaz que quer ser escritor, no camarim do Teatro que surge como uma câmara que aproxima todas elas, no Cinema visto de casa, naquele que para mim é o momento mais forte do filme: Esteban faz a tradução correta de All About Eve para sua mãe Manuela (uma prática que tenho com minha mãe) e anota o título do filme em seu caderno, a última lembrança de sua essência.

E é claro que o filme, mesmo que precedendo a morte da mãe do diretor, lida com a perda. Essa a única certeza que temos em uma vida que vai e vem, e que se apresentava para ele, mesmo antes de acontecer, como algo inevitável e assombroso. Mas que, como Tudo Sobre Minha Mãe indica, possui mais cores do que as associadas ao luto. Uma dor que pode ser repassada e, inevitavelmente, ressentida, mas que só se faz tolerável quando partilhada.

Assim, Almodóvar faz um filme para a mais bela entidade de todas, que desconstrói as limitações impostas ao que ser mãe significa - algo que a brilhante cena de Agrado contando como se tornou o que é representa perfeitamente -, ligando a palavra à pura capacidade de se doar por alguém. Um filme onde todas são mães e filhas.

Tudo sobre Almodóvar é tudo sobre sua mãe, nessa que é uma das mais belas homenagens que já assisti no Cinema e que conversa com cada um de nós.

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Algumas coisas sobre minha mãe:

Minha mãe é o principal motivo por eu, hoje, ser apaixonado pelas duas coisas que sou: Cinema e Esporte.

Foi ela que me fez gostar de ver filmes (me pegou no colo quando chorei com ET, me via correr pela casa cantando a música do Rocky) e de praticar e acompanhar esportes (a paixão por Space Jam que se tornou tão fundamental na minha vida, a proximidade com as Olimpíadas, o Inter, a Seleção).

Curiosamente, ela sempre falava sobre Almodóvar: os filmes desse cara são muito loucos (pra ela, um elogio).

Então, em 2022, a Netflix adiciona vários de seus filmes no catálogo e ela prontamente assiste dois, três em seguida. “Eu acho que amo o Almodóvar”, ela me manda por mensagem.

Alguns dias depois assisto, sozinho, Tudo Sobre Minha Mãe, semanas depois do falecimento da minha vó paterna, e dias antes da mãe da namorada do meu melhor amigo falecer repentinamente. “Eu sei o que essa menina está passando”, ela diz com dor na voz mesmo não a conhecendo.

Minha mãe perdeu a mãe dela aos 23 anos, de câncer, no dia em que começou a faculdade. Ela guarda até hoje uma foto da minha vó, com toga de formatura, do lado da cabeceira da cama, junto com uma minha quando criança, uma imagem da Mãe de Jesus e, mais recentemente, uma foto do primeiro neto, meu cachorro Brian, que nos deixou em 2021.

Uma coisa tão pequena, mas que, de certo modo, representa um pouco da bagunça que Almodóvar tenta comunicar em seus filmes. Ser mãe é algo que vai além.

Mãe, obrigado. Eu te amo.

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