Crítica | O Fim da Viagem, O Começo de Tudo

Entre o trauma e a terapia

Em seu filme menos característico, Kiyoshi Kurosawa disserta livremente sobre a natureza da experiência


Ao longo de sua rica e subestimada carreira - no ocidente -, Kiyoshi Kurosawa fez filmes que estreitaram a relação entre a realidade e ficção, e entre o físico e o sobrenatural, de maneira que as experiências de seus trágicos personagens sirvam como principal ponto de análise entre estas diferentes dimensões.

Por isso, meu estranhamento com O Fim da Viagem, O Começo de Tudo, um filme que demorei dias para sequer me reaproximar com o intuito de escrever.

Longe de contar uma história propriamente fantástica e/ou sobrenatural, e mais longe ainda do suspense característico do diretor, o longa serve quase como um experimento livre pelas ruas do Uzbequistão, emulando o próprio objetivo da viagem da protagonista - ela, uma jornalista gravando um programa de variedades sobre o país.


A REJEIÇÃO DOS COSTUMES (do diretor)

Não há um grande trauma, mistério ou sequer direcionamento na premissa. Yoko está lá a trabalho, parece contente com seu relacionamento no Japão, e apesar do estranhamento da cultura diferente, não demonstra qualquer necessidade urgente e irremediável de finalizar logo o que veio para fazer. Quando a vemos rodando no brinquedo gigante em um parque pequeno - que por si só serve como uma simbologia clara -, a sensação é quase de terror pelo que a vemos passar, mas a própria parece ok com tudo.

Talvez seja uma lembrança distante demais para sequer fazer sentido, mas ao relacionar o trabalho da equipe à um documentário, e ao mostrar momentos como esse de maneira documental - a roda só fica girando, três vezes, sem firulas -, Kurosawa talvez - talvez - remeta à Encontros e Desencontros, onde Scarlett Johansson também acompanhava pessoas envolvidas à filmagens, em um Japão estrangeiro onde a comunicação parece algo impossível. Se esse for o caso, Kurosawa não parece amargo com a maneira que o seu país foi mostrado naquele filme (algo que, na época, causou polêmica), sendo que ele projeta no Uzbequistão o mesmo estranhamento comum de alguém perdido na tradução - seja ela verbal ou meramente física.

Apesar da ausência do subtexto de Horror, seu estilo inconfundível torna as caminhadas de Yoko pelas entranhas das cidades em uma experiência que beira a tensão, onde todos a olham a todo momento e a lateralidade dos planos sugere que alguém vai se desgarrar da multidão, ou de um grupo, e abordá-la. A câmera até assume uma posição mais central - ala Mãe - para nos situar na posição de Yoko, um jogo que gera estranhezas óbvias e que torna um filme, em tese realista, em uma experiência de caos em um cotidiano desconhecido. O que, pensando na lógica do Cinema de Kurosawa, poderia bem ser o auge de suas experiências narrativas (tal qual o filme de um diretor que vou mencionar mais abaixo), mas o próprio parece querer se distanciar dessas sugestões.

Há a perseguição com a polícia, mas ela é resolvida de maneira protocolar - e que desarma nosso pré-julgamento sobre as leis do lugar. Há uma preocupação com o selvagem e o descampado, mas eles jamais esqueceriam dela lá. Há mesmo o seu tradicional jogo de sombras, mas logo Yoko volta à seu apartamento com ajuda da edição. Mesmo o confronto com os donos do bode é resolvido de maneira simples, quase anti-climática.


UMA JORNADA DE RENASCIMENTO

Se Christian Petzold já havia brincado de Kurosawa (Yella sendo a principal tentativa, mas Jerichow não muito longe) e os dois encontram em Hitchcock um passado em comum (uma mesa redonda deles, Fincher e Shyamalan seria uma experiência maravilhosa para o amante de Cinema), o diretor japonês parece estar atento ao que seus contemporâneos fazem.

Apesar de ser - bem - menos melodramático que o cineasta Alemão, seu Para o Outro Lado já parecia buscar na relação emocionalmente carregada do casal algo similar, e todo o subtexto sobrenatural daquele filme, aliado à pegada documental deste, lembram também Shyamalan e suas aventuras por terrenos desconhecidos. No fim, são cineastas que acreditam no poder de revitalização da imagem, seja ela um filme-presente para a mãe ou a câmera devolvida pelas autoridades. Em um momento que se aproxima ainda mais à Petzold (e ao próprio Encontros e Desencontros e à uma passagem de A Visita) enquanto se afasta de um Eric Rohmer, Yoko canta para si mesma em um auditório. Uma cena boba, praticamente avulsa do filme, mas que representa as emoções e descobertas que aquela jornada, em busca de imagens em primeiro lugar, proporciona.

Ao final da viagem, após Kurosawa rejeitar mais um conflito no incêndio (visto pela TV com suas chamas em CGI), Yoko parece encontrar naquele lugar estranho pelo menos algo para se agarrar, algo que a torne mais completa do que quando o filme se inicia. Como toda grande viagem, ela vai lembrar dos perrengues e das dificuldades, mas o que fica é a relação quase espiritual, se não sobrenatural, que criou com a natureza daquele lugar diferente. Menos nos centros abarrotados de pessoas, e mais no vazio de um teatro ou no absurdismo de uma montanha onde, ao ver o bode que havia ajudado a libertar, ela parece finalmente encontrar o que precisava em si mesma.

Ela canta, o filme termina, e o resto de sua vida começa.

8.4

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