Crítica | Profissão: Repórter

o vertigo de antonioni

Em filme sobre identidade e olhar, Antonioni atinge o seu mais referencial sem perder sua essência


Na cena da foto acima, vemos um enfeite cor de rosa, e uma composição quase que inteira verde - camiseta, plantas, pilar, toalha de mesa. Conforme a câmera se aproxima do casal, mexendo apenas o suficiente para percebermos que não se trata de um zoom, mas um movimento dianteiro, o enfeite vai desaparecendo.

O que isso revela sobre Profissão: Repórter? (aliás, que tradução fumada essa)

Se qualquer coisa, que o diretor que antes havia se inspirado em Vertigo para fazer A Aventura, agora se aproximou de vez do legado deixado pelo filme de Hitchcock - que se fez onipresente nos anos 60 e ainda ecoava fortemente nos 70.

O ponto V da questão: durante todo o longa, o verde e tons de rosa/vermelho/vinho se complementam em cena, talvez como meros detalhes, mas trazendo visualmente a carga do filme de Hitchcock. Então o enfeite “desaparece” por completo, atraindo minha total atenção, mas (além das flores pequenas ao fundo), o close revela as listras rosas da blusa da garota (a personagem não ser nomeada é das melhores referências à mulher que assombra a filmografia do Mestre do Suspense).

Pode ser apenas mais um detalhe em um filme cheio deles, mas a preocupação de Antonioni com essas composições ajudam a tornar ainda mais intensa a mise-en-scène do filme, que ditado pelo ritmo de tempo único do diretor, oferece ideias e sugestões, mas mergulham as respostas em um mar de incertezas sobre o que é e o que não é.

O próprio incidente incitante se desenrola de maneira confusa: em uma prévia de O Iluminado, Jack Nicholson (que linda essa época onde atores mundializavam e atuavam) supõe com um voyeur imaginário na diegese, e que é tratado como uma construção de significados e momentos ala Alain Resnais (cuja tríade de Hiroshima Mon Amour, Ano Passado em Marienbad e Muriel é obrigatória pra esse aqui), a vida do homem de quem rouba a identidade, mas esquece de deixar junto a seu cadáver toda a estagnação que reside dentro de si.

“Prefiro pessoas à paisagens”, ele diz, e a fisicalidade de Nicholson até sugere um conforto maior andando por ruas movimentadas do que a estressante atolada do carro no deserto, mas prefere tanto que quer se desligar delas para sempre. A abordagem de Antonioni, que horas assume algo até meio jornalístico - a câmera na mão, a qualidade duvidosa (pelo menos a que eu assisti), as panorâmicas lentas e quase óbvias que se deslocam para onde mira o olhar - horas se carrega e dissolve suas referências, remete diretamente ao seu próprio Blow Up, e várias vezes senti como se alguém filmasse tudo com o mesmo interesse ativo do protagonista daquele filme.

E, claro, como não poderia faltar, ela: uma guria bonita e que nem nome tem, mas que surge como uma representação do ideal de fuga.

A cena final é daquelas coisas que só um mestre consegue fazer: a menina, de verde, caminha por um pátio com um portão, vermelho, e vemos tudo pelo olhar de David. Que se aproxima e passa pelas grades da janela do quarto, até que gira para revelar o domínio da mise-en-scène se: um carro chega, todos correm, e nós seguimos com o mesmo olhar. Vemos então o corpo de David, irreconhecível para a própria mulher, mas não para a garota, morto na cama - e, claro, todas aquelas pessoas presas pelas mesmas grades que o olhar invisível conseguiu passar.

Estaríamos nós agora vendo por ele, assumindo a identidade espectral de um homem que finalmente conseguiu desaparecer?

Li no LetterBoxD (tenho passado tempo demais lá…), um comentário que resume bem:

Os filmes de Antonioni existem como que em um estado de animação suspensa, como se o próprio tempo diminuísse de velocidade e os sentimentos se anestesiassem. Coisas são feitas de espécime, não bem real, não bem certo, mas ainda assim reconhecível. Tem um sentimento de distância, não bem ali, com uma letargia que desce como jet lag.


E que melhor sistema para comunicar as incomunicabilidades da arque-trama de Vertigo do que este, onde o personagem que assume uma outra identidade, passa então a se cegar com as possibilidades infinitas que a liberdade oferece. Sim, é um filme sobre a necessidade de fugir, mas não importa o quanto se tente, a única maneira de fugir de si mesmo - e de tudo que isso traz - é a morte.

9.5

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