Crítica | Red - Crescer é uma Fera

É incrível a facilidade da Pixar de produzir filmes relevantes.

O último lançamento do estúdio “Red – Crescer é uma Fera” surpreende por vários motivos, o principal é a diferença dos lançamentos recentes do estúdio visualmente e na proposta narrativa, mantendo o padrão de qualidade e da cartilha de histórias da Pixar. Dirigido pela estreante em longas Domee Shi, “Red” é um coming of age que conta a história de Mei Lee, uma pré-adolescente canadense com ascendência chinesa que precisa equilibrar sua vontade de ser dona de si mesma e, ao mesmo tempo, a obrigação de ser a filha perfeita. Apesar do tema sério, o filme tem atmosfera mais leve que seus antecessores como “Soul”, se distancia também de “Luca” ao apresentar estética que lembra desenho animado de TV, uma fuga da reprodução da realidade que o estúdio vinha fazendo. Com tudo isso, “Red” é uma das obras que melhor faz a diversão genuína e sentimentos profundos e sérios conversarem com bons personagens e situações bem construídas.

O roteiro apresenta a história com narração em off que lembra mais “Os Bons Companheiros” que “Toy Story”, de maneira descontraída e energética a protagonista nos conta da pressão sobre as famílias chinesas em agradar seus antepassados e que, apesar disso, ela é uma pessoa independente, para momentos depois explicar para o público que ela escolhe conciliar sua independência com ser a filha perfeita, nesse momento a narração é contrastada pela fala de uma de suas amigas que diz que Mei é manipulada por sua mãe. Ming Lee é mãe de Mei e cuida do templo da comunidade chinesa da cidade, ela conta a história de sua família para turistas e preserva a tradição quase matrilinear de cuidados com sua filha. Quando Ming abre um caderno de Mei e vê desenhos da filha beijando um menino mais velho e vai confrontar o rapaz em público, Mei chega no limite do seu esforço para não decepcionar a mãe. No outro dia ela acorda transformada em uma panda vermelho gigante, símbolo de sua família. Ainda no primeiro ato, descobrimos que todas mulheres da família passam por isso, no começo da adolescência se transformam no urso vermelho sempre que suas emoções se exaltam, até que um ritual para reverter o dom seja realizado.

Chama atenção a diretora, que já havia escrito e dirigido Bao (2018) excelente curta-metragem sobre uma mãe chinesa e sua complicada relação com seu filho, tenha escolhido o ano de 2002 para ambientar a trama, sua idade nesse ano era semelhante a da protagonista de “Red”. Nitidamente se trata de uma motivação profundamente pessoal e há vários elementos no roteiro que evidenciam isso, e como de costume nos filmes da Pixar, é na navegação dos sentimentos da diretora sobre sua adolescência e sua família que surgem os estímulos mais fáceis para o público se conectar. Se o longa-metragem fala sobre uma família chinesa no Canadá e a relação de uma menina com a sua cultura, há certa universalidade na sobrecarga de uma criança que se sente responsável pelo futuro de sua família, se Mei precisa encontrar um meio-termo entre sua personalidade forte frente suas amigas e a menina comportada que sua mãe vê, bom esse é um dilema comum na adolescência e, por fim, se Ming tem a carga do trauma emocional passado por sua mãe para ela e dela para sua filha como base para os problemas de relacionamento com Mei, essa, com certeza, é uma experiência particularmente universal.

Aliás, apesar da protagonista do filme ser, por vários motivos, Mei frente a história ela e sua mãe dividem o fardo de carregar as tramas narrativas, possivelmente uma metáfora sobre a divisão da carga emocional que as mulheres da família precisam fazer no clímax do filme, pois a resolução do conflito temático está muito mais na lição que a mãe precisa aprender do que sua filha. O ponto de destaque de “Red” é justamente na maneira lúdica que os problemas de saúde mental são resolvidos, os problemas impostos pela sociedade, as expectativas que criam a ansiedade de Mei (e de sua mãe, avó, tias) a faz transformar literalmente num panda vermelho gigante. E a grandeza da diretora aqui é mostrar Mei aprendendo a lidar com as transformações que está passando como uma experiência positiva junto as suas amigas e cria o contraste disso com o que sua mãe passou, no terceiro ato descobrimos que foi quando Ming começou a se transformar em urso que a relação entre mãe e filha se estremeceu. 

A estética me lembrou um pouco a minha animação favorita do ano passado “Os Mitchells e a Revolta das Máquinas”, especialmente o ritmo equilibrado entre sequências divertidas e emocionais, as três melhores amigas de Mei são ótimas personagens que oferecem contraponto temático e de tom à família da protagonista, toda subtrama envolvendo o show da boy band (lembrando que o filme se passa em 2002), apesar de depender de uma situação bastante inverossímil, é divertida e consegue demonstrar na prática a evolução de Mei. A escolha pelo estilo de animação com traços arredondados que pontuam a atmosfera infantil do filme também cria um universo visual que o estúdio pouco explorou na sua existência. Mei é uma criança e uma panda muito fofa, o que torna a trama dela virar uma sensação na escola mais plausível. Além disso, a trilha sonora que mistura clássicos dos anos 2000 com as músicas compostas por Billie Eillish e FINNEAS para a película com estética de N’Sync e Backstreet Boys são excelentes e os temas compostos pelo produtor de música pop Ludwig Göransson ajudam a puxar “Red” para seu lado mais lúdico e divertido.

Esse filme serve como um atestado do bom trabalho realizado pela Pixar não só enquanto produtora de filmes, mas formadora de talentos, ao optar por apenas dar longas para artistas que já trabalham no estúdio há alguns anos e desempenharam diversas funções antes de assinar o primeiro filme se garante que aquilo que o jeito Pixar de contar histórias se mantenha existindo e que os e as diretoras responsáveis pelas películas sigam essa identidade mesmo com liberdade para contar suas próprias histórias. “Red – Crescer é uma Fera” mostra isso ao apresentar ritmo próprio e história completamente original e pessoal, que fala sobre o profundo tema da pressão imposta especialmente sobre as mulheres para regular seus corpos e sentimentos, e como essa carga pode ser carregada por gerações e causar ansiedade, raiva, tristeza e outros sentimentos ruins. “Red”, porém, termina não só com a aceitação desses sentimentos, mas mostrando como Mei é capaz de encontrar o próprio caminho dentro da própria família. Num clímax emocionante, Mei e Ming demonstram diferentes maneiras de aceitarem sua ascendência e mesmo assim trilharem seu próprio caminho, a mensagem escolhida por Domee Shi para seu público.

8,5

Anterior
Anterior

O Que É Oscar Bait: Como Harvey Weinstein quebrou Hollywood (outra vez).

Próximo
Próximo

Crítica | Profissão: Repórter