Crítica | Harry Potter e O Cálice de Fogo

Crítica - Harry Potter e o Cálice de Fogo

A saga “Harry Potter” teve papel importante em meu crescimento como amante do cinema e, principalmente, como ser humano. Decidi, então, revisitar a franquia com olhos mais treinados com o objetivo de descobrir o porquê destes filmes terem me marcado tanto e o porquê de parecerem mais relevantes do que nunca agora, em 2020.

As críticas dos outros capítulos da saga podem ser lidas aqui: A Pedra Filosofal, A Câmara Secreta, O Prisioneiro de Azkaban, A Ordem da Fênix, O Enigma do Príncipe As Relíquias da Morte: Parte 1, As Relíquias da Morte: Parte 2.


Se considerados filmes sobre a adolescência e as experiências do ensino médio, todos os “Harry Potter”, a partir de “O cálice de fogo”, deveriam ser incluídos nas listas mais seletas envolvendo os melhores do gênero.

Pois, apesar de comporem juntos a segunda melhor série fantástica da história do cinema (atrás de “O Senhor dos Anéis”), as sete histórias criadas por J.K. Rowling envolvendo o jovem bruxo são, em sua essência, um exemplo quase perfeito do coming of age, gênero tão recorrente e surpreendente no século 21.

E neste, que tinha a difícil missão de superar o praticamente perfeito “O Prisioneiro de Askaban”, é quando os hormônios finalmente parecem aflorar, após pequenas sugestões apontadas naquele filme. Por isso, quando Harry é colocado em meio ao torneio Tribruxo para enfrentar alunos de outras escolas (que chegam com direito a entradas triunfais) é quase como se víssemos um inter-classes na tela, envolvendo todas as escolas de uma mesma rede onde as relações extra-campo parecem tão importantes e grandiosas como as competições dentro dele. Afinal, quando somos adolescentes, ou ainda pior, quando estamos na transição para a adolescência, é como se a menor das desavenças com nossos amigos e o mais sútil sorriso de nossas crushes fossem o suficiente para desviar completamente nossas atenções daquilo que está em jogo, mesmo quando aquilo é nossa própria vida. E o fato de, ao redor destas tramas adolescentes termos um universo tão fantástico, torna “Harry Potter” uma experiência verdadeiramente mágica.

Recentemente revi o quarto filme da saga, “O Cálice de Fogo”, e pude perceber muitas das coisas que me fizeram amar este filme quando saiu, mas que me fazem admirá-lo ainda mais hoje, quando julgo ter uma noção consideravelmente mais afiada sobre cinema do que tinha na infância. E é curioso pensar que, mesmo o tendo assistido três vezes nos cinemas e de imaginar que meu ensino médio poderia ainda ser daquele jeito, afinal, ainda não tinha idade para receber minha carta para Hogwarts e a esperança é a última que morre, talvez minha experiência mais marcante relacionada a este filme tenha sido esta última, quando finalmente compreendi o que estava assistindo.

Não, este não é o meu favorito nem o melhor da saga, tampouco um filme perfeito, mas não deixa de ser um exemplo sublime do cinema fantástico que, mais frequentemente que não, entrega trabalhos tão bobos e superficiais que as únicas coisas que têm a mostrar são dragões, sereias e cavalos voadores. Pois se neste “Harry Potter” todas estas criaturas estão presentes na narrativa, a mesma nunca se transveste de desculpa para um show de efeitos visuais vazio, e jamais coloca aquele que deveria (deveria por suposição, mas não deveria) ser seu principal elemento, a magia, como razão central da história. Justamente por isso que, até aqui na saga, estes filmes funcionaram tão bem, pois “Harry Potter” funciona primeiramente como uma trama bem costurada envolvendo personagens interessantes e perigos reais, apenas para, então, termos a magia.

Rabo Córneo - O Cálice de Fogo

Logo, é impossível não se maravilhar com os muitos feitos que a mesma possibilita, pois desde os mais sutis, como livros que encontram seus lugares sozinhos nas instantes, à momentos de leveza envolvendo transfiguração de alunos, ou a imponência do melhor dragão em tela que já tive o prazer de assistir (a forma como se esgueira pelas torres de Hogwarts, por exemplo, é um detalhe tecnicamente desnecessário, mas que confere realidade ainda maior para criatura). Todos estes se justificam oferecendo não apenas elementos necessários para seu segmento, mas enriquecendo momentos triviais da narrativa.

Nesse sentido, Mike Newell, terceiro diretor da saga em quatro filmes, consegue injetar ideias renovadas sem destoar dos trabalhos de Columbus e Cuarón, apresentando o extraordinário de modo tão natural ao olhar de todos aqueles acostumados com isso desde a infância (todos, menos Harry) que ele (o extraordinário) se torna quase trivial. Por isso, é genial que neste, assim como em todos os filmes da saga, Newell apresente a pureza da admiração de Harry pela magia nem que seja em apenas uma cena, pois, acima de todas as responsabilidades que cada vez mais se somam em seus ombros, não é como se este jovem que cresceu na nossa frente (e junto de muitos de nós) fosse preferir qualquer outra vida que não esta. E mesmo que ele expresse sua admiração com um expositivo “Eu amo magia” (quando entra em uma cabana que é muito maior por dentro do que por fora), devemos nos lembrar que é um adolescente e adolescentes normalmente verbalizam coisas, teoricamente, desnecessárias.

Nas mãos de Newell, “O Cálice de Fogo” mantém este mundo continua vivo e vibrante, mesmo que pouco a pouco a presença ameaçadora de Voldemort comece a tomar conta da antes tão encantada Hogwarts, outro elemento abordado com eficácia pelo diretor.

A própria cinematografia de Roger Pratt, responsável também por “A Câmara Secreta”, não deixa de ser bela e colorida - mesmo que não se equipare ao trabalho quase barroco em “O Prisioneiro de Azkaban” -, mas frequentemente paira um céu cinzento sobre as terras de Hogwarts, além de apresentar um elemento que seria utilizado em abundância no futuro da saga: a paleta esverdeada. E sobre isso, considero justa uma das muitas mudanças em relação ao livro (as quais comentarei mais abaixo) que faz Harry torcer pela Bulgária e não pela Irlanda, pois se ao ler já podemos fazer associações sensoriais apenas imaginando, ao assistir faz muito mais sentido que Harry esteja do lado vermelho (que representa suas vestes e seu feitiço principal) do que daquele que representa seu maior inimigo. Além disso, não considerem coincidência que tanto o lago, como o labirinto (percebam como Newell aplica planos holandeses em abundância nesta sequência, para enfatizar os conflitos sombrios de cada personagem), como a porta da casa do caseiro assassinado, sejam tomados pelo mesmo verde, que se mostra presente em todos os momentos mais tensos do filme, sempre associando qualquer perigo à Voldemort. Não considerem coincidência, também, o fato de Harry, Fleur e Cedrico vestirem as cores primárias e de Krum, personagem com as intenções duvidosas, não apresentar cor nenhuma em especial (afinal, é facilmente moldado, como apontado por Moody).

Além disso, se Harry representa o fogo do Dragão com o seu vermelho, é Fleur quem, ao ser derrotada no lago (teoricamente associamos água com azul) tem destaque na sequência, enquanto Krum, com vestes bejes e quase incolores, lembra o ar, afinal, é um apanhador e é mostrado inicialmente voando ao passo que Cedrico, vestindo o amarelo que pode representar a terra, é assassinado aonde? Sim, em um cemitério.

Essa rima visual se mostra poderosa e enriquece de forma importante os temas do longa que, infelizmente, deveriam ser mais aprofundados.

Desta vez apenas, isto não é culpa do diretor ou do roteirista Steve Kloves, sabiamente mantido após o excelente trabalho nos capítulos anteriores (em uma saga dessas trocar o roteirista seria muito pior do que trocar o diretor), mas sim dos estúdios que acabaram não tomando a decisão de separar o filme em duas partes. E por mais que a decisão, caso fosse tomada, pudesse ser movida a dinheiro, artisticamente faria sentido tornar a adaptação do primeiro livro realmente grande de Rowling em uma experiência maior que as anteriores, pois é inevitável comentar como tanto personagens, como elementos pontuais do livro, tiveram de ser modificados e poupados afim de cumprir um tempo de tela menor. Este é um filme que deveria, sim, ter mais de três horas, talvez até quatro, pois não deveríamos ser roubados de assistir ao duelo entre Bulgária e Irlanda na final da Copa do Mundo de Quadribol, ou termos de ver apenas um dos quatro majestosos dragões concebidos pela equipe de efeitos especiais, ou roubados de ver mais momentos introspectivos e triviais do trio principal em Hogwarts que, por vezes, acabam sendo nossas cenas favoritas destes filmes.

Inevitável, também, que a narrativa se torne um tanto episódica, pois ao pular de evento em evento - e são muitos neste filme - as ligeiras mudanças e nuances daquelas relações ficam em segundo plano, e se isso não lhe parece claro, tente imaginar “O Cálice de Fogo” como uma junção dos principais momentos de uma série de dez episódios e me diga se não é praticamente visível este efeito. O fato de ter sido feito com maestria em cada canto de sua exibição e de, ainda com pouco tempo (sejamos honestos, as duas horas e meia passam voando mais rápido do que as vassouras), conseguir explorar ainda mais aquele mundo e o caráter de Harry, são atos de magia que impedem o filme de ser qualquer coisa menos que ótimo.

Harry, por sua vez, segue sendo interpretado com fidelidade por Daniel Racliffe, que consegue conferir ao personagem o balanço quase perfeito entre sua vontade de ser normal e as grandes responsabilidades que vêm com seus grandes poderes e desde já reparo em diversas semelhanças suas com o Peter Parker de Tobey Maguire. Desde seu já comentado olhar maravilhado ao ver como uma cabana é muito maior por dentro do que por fora (assim como este próprio filme, de certo modo), à forma como se surpreende ao ver uma Hermione até então inexistente em sua mente - e é revelador como seu olhar para ela é como o de um irmão orgulhoso por ver-la desabrochar -, à determinação que surge em seu rosto quando encara Voldemort frente a frente. Se engana quem acha que o único motivo de amarmos o Harry Potter de Rowling seja a própria, pois o ator o encarna com uma complexidade de emoções que cada vez mais me surpreendem, sempre que revisito suas performances.

E então, por mais que os outros personagens fiquem escanteados em termos de desenvolvimento, não é como se já não os conhecêssemos o suficiente para simpatizarmos, ou não, com cada um.

Rupert Grint está hilário como Rony, mais que em qualquer outro filme - inclusive, este é o filme que mais faz rir em toda a saga, muito graças a inabilidade de Harry e Rony em lidar com o sexo oposto - e sua relação com Harry toma tons complexos quando este é invejado pelo melhor amigo. E se Emma Wattson quase deixou seus estudos de interpretação (ela viria a se tornar uma excelente atriz, eles valeram a pena) influenciarem sua naturalidade como Hermione, a imersão de Michael Gambom (Dumbleodore) - que está um pouco mais agitado do que deveria, é verdade, mas comove com seu discurso final - e Alan Rickman (Snape) em seus papéis compensam. Sim, a ausência do Sirius Black de Gary Oldman machuca o longa, mas a não saturação de personagens como Hagrid - que vive um romance divertido e bonitinho com a diretora da Beauxbatons - e Minerva os salva para instalações futuras, assim como os Malfoy.

Porém, nem Krum nem Fleur se destacam, o que é uma pena pois nunca surgem como competidores à altura de Harry. Ao menos o Cedrico de Robert “Homem Morcego” Pattinson (não resisti) consegue ser empático o suficiente para sentirmos por seu destino. Das novas adições, um dos destaques fica claramente com Brendan Gleeson (sim, pai de Domnhall, que apareceria na saga no futuro) e seu excêntrico e magnético Alastor Moody, auxiliado por um trabalho impecável de maquiagem e figurino. Já o outro merece um parágrafo separado.

O Lord Voldemort de Ralph Fiennes é um exemplo perfeito de construção cinematográfica. Antes um parasita, depois uma memória, para então apenas uma ideia, o Senhor das Trevas fora construído de forma exemplar durante os três primeiros filmes como uma figura maior do que sua própria existência. Seus efeitos sempre foram sentidos além de suas ações, como se sua influência maligna sobre os outros sempre fosse sua maior arma. Portanto, ao ser apresentado - naquele cemitério (tomado do verde), que não sei como não me traumatizou quando jovem, e renascido por um feitiço macabro - o impacto de sua imagem vista pela primeira vez em sua totalidade é aterrorizante. O trabalho de maquiagem + efeitos é essencial, mas o olhar e a linguagem corporal de Fiennes, que expressam o sadismo ao ver o sofrimento alheio, sua pressa em se livrar de Harry e o descaso com seus aliados, tornam este vilão não apenas um ser cruel e real, mas ameaçador em toda sua essência.

E se há outro ponto deste filme que, particularmente, poderia apontar como duvidoso, vem da própria história do livro, que segue conferindo à Harry tarefas maiores do que um jovem de 14 anos, mesmo que mágico, deveria suportar. Não sei se considero sabedoria de Dumbleodore em deixar que Quirrell, Lockhart e, agora, o falso Moody tenham tomado o posto de professores contra a arte das trevas por saber que seriam fundamentais para o crescimento de Harry como pessoa, ou se uso a lógica e julgo impossível o mago mais poderoso e sábio daquele universo ser enganado tantas vezes. Krum é um jogador profissional de Quadribol - “o melhor apanhador do mundo” - mas passa o ano inteiro estudando em Hogwarts: como funciona o Quadribol, instituição esportiva, neste mundo, afinal? Porém, como gosto de dizer, precisamos ter o filme e em qualquer história com o cunho fantástico, ou melhor, na maioria das histórias, precisamos derrubar a lógica para apreciá-las por completo.

“Harry Potter e O Cálice de Fogo” foi, ao mesmo tempo, uma nova injeção de energia e jovialidade em um universo cada vez mais complexo e extenso que, apesar de não responder ao esplendor do terceiro capítulo da saga, faz o melhor possível com o pouco tempo em tela para apresentar a jornada épica de seu livro. É, também, o último filme antes das garras de Voldemort se mostrarem fortes demais naquele mundo, portanto considero um presente para os fãs de cinema e, ao mesmo tempo, uma mensagem de esperança para os tempos sombrios que estão por vir que, na última cena, Harry, Rony e Hermione aceitem que nunca terão um ano convencional em Hogwarts e terminem juntos, sorrindo, olhando para o horizonte que, por acaso, mostra acalorados raios de sol finalmente vencendo as nuvens cinzentas enquanto, casualmente (desta vez não em itálico), uma carruagem de cavalos voadores sobrevoa um gigantesco navio que se submerge por completo embaixo da água.

Neste universo maravilhoso, até a menor das cenas continua sendo mágica.

8.8

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