Crítica | Harry Potter e As Relíquias da Morte: Parte 2

O PRIMEIRO FILME DA SAGA “HARRY POTTER” SEMPRE SERÁ UMA LEMBRANÇA MÁGICA.

Lembro não apenas de ter assistido nos cinemas com minha mãe, mas também de minha prima me contando sobre a história. Minha mãe havia perguntado se era um filme apropriado para crianças, enquanto ela respondeu que tinha algumas coisas assustadoras, como um cachorro de três cabeças (entre outras que enumerou). Dentre as cenas, aquela onde o espírito de Voldemort atravessa o corpo de Harry é a única que me lembro realmente da sensação que tive quando a assisti pela primeira vez, cobrindo o rosto de medo.

Desde então, foram incontáveis revisitas: em VHS, DVD, online, maratonas periódicas, etc. Mas, dificilmente, eu era capaz de separar o apreço que sinto não só pelo filme, mas pela saga em si, do meu olhar imparcial. Portanto, decidi maratonar todos os filmes, com olhos mais treinados, tentando ao máximo ler o que está na tela sem deixar que a nostalgia me leve pelas cenas e falas que sei de cor, e com o objetivo de descobrir o porquê de terem me marcado tanto e o porquê de parecerem mais relevantes do que nunca agora, em 2020.

O resultado vocês leem a seguir.

As críticas dos outros capítulos da saga podem ser lidas aqui: A Pedra Filosofal, A Câmara Secreta, O Prisioneiro de Azkaban, O Cálice de Fogo, A Ordem da Fênix, O Enigma do Príncipe, As Relíquias da Morte: Parte 1.


Lembro de quando fui assistir ao capítulo final de “Harry Potter” nos cinemas.

Na época, não valorizei como deveria, pois, por mais que tenha gostado do filme e a saga como um todo tenha me marcado profundamente, a adolescência é uma fase onde hipervalorizamos algumas coisas e desvalorizamos outras. Se lá soubesse o papel que o cinema tomaria em minha vida, talvez tivesse me emocionado como poucos dias atrás, quando revi todos os oito filmes em sequência pela primeira vez.

A verdade, que eu infelizmente não sabia, é que, por dez anos, “Harry Potter” foi o mais alto padrão do cinema Blockbuster. Entregando filmes que por mais que essencialmente conectados oferecem cada um seu próprio estilo e linguagem, a sensação é que a saga inspirada nos livros de J.K. Rowling jamais deixou o lado comercial ofuscar a visão artística de seus realizadores. O maior exemplo está no fato de que a decisão de separar o sétimo livro em dois filmes soou merecida e, narrativamente, necessária. Pois se as “As Relíquias da Morte: Parte 1” era emocionalmente exaustivo por tomar seu tempo para que sentíssemos as emoções conflitantes do trio principal, esta “Parte 2” é um verdadeiro tour de force, onde eles são testados a todo o momento.

Enquanto muitos filmes calcados na ação ficam vazios e sem qualquer apelo emocional, o resultado aqui é, novamente, de merecimento.

Iniciando logo após os eventos de seu antecessor, “As Relíquias da Morte: Parte 2” começa com um dos momentos mais humanos de toda franquia: o enterro de uma criatura digital que provocou lágrimas em todos os fãs com sua devoção a um dos poucos amigos que teve na vida. E ao ouvir Harry dizendo que queria enterrá-lo como se deve, sem magia, somos capazes de perceber tanto o desgaste que a mesma já causou nele como, pelo tom de sua voz, aquela é a primeira perda que pode sentir de verdade, sem precisar fugir ou se proteger deixando a dor de lado. O que explica e amplifica sua reação quase desesperadora, a qual não pôde ter com Cedrico, Sirius, Dumbledore e Edwiges, por exemplo.

Mas logo após isso o trio tem de voltar a sua jornada em busca das horcruxes que restam, o que envolve uma série de sequências impressionantes, mesmo que revele uma das poucas ressalvas que tenho quanto ao roteiro - e talvez ao livro, que ainda não li. Sempre que eles destroem uma, Harry tem a visão de onde está a outra. Porém, apesar de ser uma conveniência clara, o fato de sabermos que Harry e Voldemort estão conectados possibilita que tal recurso não seja visto como, propriamente, uma falha.

Ainda mais quando ele é contornado por momentos eletrizantes, como a infiltração em Gringotts - onde a sempre magnética Helena Bonham Carter interpreta Hermione interpretando Belatrix - e a fuga em outro dragão milagrosamente realista criado pela equipe de efeitos visuais, entrando para o hall já glorificado de monstros que incluem Hipogrifos, Lobisomens, Sereias e Cães de Três Cabeças que tornam a saga em um festim para os aficcionados pelas mitologias os envolvendo. Mas, curiosamente, a maior movie magic da projeção, ao menos para mim, vem em uma passagem mais simples, onde Harry retorna a Hogwarts, renovando a esperança de seus ex-colegas - ao passo que Yates e o roteirista Steve Kloves fazem mais uma clara e eficiente alusão ao Holocausto e às boas almas que ajudavam prisioneiros a escapar.

harrypotterasreliquiasdamorteparte2 - critica

Com pouco espaço para conversas triviais, que pontuam grande parte dos capítulos anteriores, a “Parte 2” jamais se torna leviana ou narrativamente preguiçosa, sendo que comemoramos as pequenas vitórias enquanto antecipamos com preocupação o confronto que está por vir.

Este último sentimento se dá, entre outras coisas, graças a belíssima fotografia do Português Eduardo Serra, que pinta o filme com uma palheta de cores escuro/esverdeada, mais clara que a do anterior e visualmente mais harmônica, nos relembrando não apenas da tragedia que toma conta do mundo bruxo, mas da exaustão por ela provocada. Algo também auxiliado pelo excepcional e injustiçado trabalho de figurino e maquiagem, este último sutil em retratar a sujeira e o sangue provocados pela guerra e genial em facilitar o trabalho de efeitos especiais que tornam o Lord Voldemort de Ralph Fiennes em um ser ainda mais ameaçador pela plausibilidade de seu visual - Nick Dudman, Amanda Knight e Lisa Tomblin foram indicados ao Oscar de Maquiagem e criminosamente perderam para o bom, mas convencional, trabalho em “A Dama de Ferro”, talvez a derrota mais injusta da saga nos prêmios da Academia.

Contrapondo a falta de vida e o peso nos visuais com momentos puramente gratificantes, finalmente é conferido um papel de crucial importância para a Minerva de Maggie Smith, que é transformada na personificação da própria Hogwarts - com o feitiço que sempre quis fazer - e sua vontade de proteger os alunos. Assisti-la escorraçando Snape, convocando os guerreiros de pedra e a barreira protetora é algo visualmente impressionante, deliciosamente gratificante e consideravelmente inspirador, algo que Lupin resume em um último ato de sua eloquente sabedoria: 

É o grau de comprometimento que determina o sucesso, não o número de seguidores.

Por isso, por mais que o bombardeio seja violento, a esperança de vitória se mostra presente, principalmente quando Rony e Hermione conseguem destruir a penúltima Horcruxe e forçam Voldemort a quase destruir a Varinha das Varinhas. Isso, até Yates entregar uma das cenas que mais representam a ideologia artística do filme: o diretor, engajado com as facetas político-sociais da história de Rowling desde que adentrou a saga em “A Ordem da Fênix”, jamais transforma a dor da guerra em espetáculo, exemplificando isso em uma cena levemente desacelerada onde o trio principal corre em meio a batalha, a trilha quase fúnebre do brilhante Alexandre Desplat ao fundo e apenas morte, destruição e ameaças ao redor. Não há para onde fugir, não há nada de bonito, não há nada de entretenimento. Mais do que a grande maioria dos filmes baseados em confrontos reais, este, onde armas são substituídas por varinhas, se mostra mais imersivo e condizente com o que a guerra realmente é.

Eficaz de um ponto de vista macro, que sempre remete ao embate final entre o bem e o mal, Kloves e Yates nos relembram constantemente que o motivo de a saga ter feito tanto sucesso foi, justamente, o micro, presente na grande gama de personagens marcantes e, ao ver alguns deles partirem a dor só não é maior pela sensação de que o desastre provocado pela guerra não reserva tempo para sentirmos suas mortes como deveríamos.

Harry Potter - reliquias da morte - critica

Concluindo o arco de Snape de maneira que torna re-assistir suas poucas cenas em todos os outros filmes algo ainda mais fascinante, Kloves tem a sensibilidade de fazer com que as últimas palavras que surjam voz do personagem serem aquelas que talvez mais o tenham assombrado durante seu complicado relacionamento com Harry. Vendo nele sua amada e o homem que a tirou de si, é possível ver a vida deixar os olhos do soberbo Alan Rickman, ao passo que, de uma forma ou de outra, ele finalmente encontrou algo que nunca teve durante sua vida, paz. Yates, igualmente sensível ao transformar a viagem por suas memórias em algo revelador tanto sobre ele, como sobre Dumbledore e sobre os próprios pais de Harry, ainda encontra espaço para amarrar uma das pontas soltas do capítulo anterior na forma do patrono de Snape. E ouvi-lo dizer sempre é de cortar o coração.

Após perder todos os seus mentores e perceber a valentia e devoção de seus amigos, se sacrificando pela causa que agora lidera, temos um vislumbre do que Dumbledore havia previsto: Harry, um jovem tornado adulto cedo demais, sabe que a única maneira de impedir mais dor e destruição vem do próprio sacrifício - e o último olhar que dá a Rony comunica toda a amizade e confiança que deposita no amigo. Mas mesmo que esta decisão envolva uma maturidade que poucos seres humanos podem dizer que um dia na vida alcançam, é particularmente tocante - eu chorei - quando Harry revê seus pais, seu padrinho e seu antigo mestre na floresta proibida, e os pergunta se estarão com ele no momento de sua morte. Ali, por um breve momento e graças às habilidades interpretativas de Daniel Radcliffe, Harry Potter volta a ser a criança que nunca pôde, inseguro, com medo e vendo, em figuras paternas, proteção.

Inclusive, ao re-assistir o filme pela enésima vez e prestar atenção em toda a substância conferida a narrativa, percebo como, desde então, o cinema Blockbuster caiu drasticamente de qualidade. Pois por mais que tenha gostado consideravelmente dos episódios VII e VIII de “Star Wars”, ou dos últimos dois “Vingadores”, é inegável que nenhuma das sagas chegou sequer perto do senso de urgência e perigo atingido pela obra de Rowling.

Harry Potter - reliquias da morte - parte 2 - critica

Menos preocupado em tornar a volta de Harry em um momento de êxtase do que em desafiar as políticas extremistas de Voldemort - por meio do discurso de Neville -, Yates conduz o combate final entre ambos de forma quase incômoda. Harry, um bruxo jovem e infinitamente inferior a um homem que desafiava Dumbledore de igual para igual, fica constantemente na defensiva, apesar de que a imagem de Voldemort jamais seja engrandecida pela câmera. Pois, por mais que as habilidades de ambos estejam em níveis completamente diferentes, o diretor deixa claro que estão, de certa forma, lado a lado, como Harry professa antes de se jogar com Tom de cima do castelo - em uma sequência visualmente esquisita diga-se, mas consideravelmente perturbadora pelo que sugere.

Transferindo o papel de herói improvável a Neville, um personagem antes tão escanteado e subjugado, e nos dando pequenos vislumbres das habilidades de outros personagens, como a Molly de Julie Walters derrotando Bellatrix, se Yates chega a falhar está no fato de jamais vermos as contribuições de Hagrid ou da própria Minerva na batalha, além de que o plano onde Neville acorda tonto em meio a bruxos voando me lembrou dos piores momentos da já mencionada Marvel.

O cineasta ainda cria um fim visualmente diferente à Voldemort daquele no livro - o qual definitivamente aprovo -, mas talvez a maior liberdade seja a tomada por Kloves, na cena final, onde Harry decide destruir a Varinha das Varinhas. Para muitos, um erro que impede novas histórias de serem criadas a envolvendo, para mim, mais um exemplo da pessoa que Harry se tornou: um bruxo admirável, mas um ser humano ainda mais, capaz de ignorar completamente toda e qualquer ambição que, um dia, poderia novamente relaciona-lo ao inimigo que acabara de destruir. E percebam como este é o único momento onde vemos o sol em todo o filme, elemento utilizado em demasia durante a saga, mas que jamais deixa de ser eficiente.

Com um epílogo indubitavelmente humano e agridoce, Yates decide terminar a história da única forma possível, com um lento close no rosto de Harry, Rony e Hermione, observando enquanto o trem onde antes conversavam, namoravam e comiam feijoezinhos de todos os sabores, agora leva seus filhos para Hogwarts, onde poderão experienciar suas próprias aventuras e viver suas próprias memorias. Em seus olhares: orgulho, nostalgia e saudade. Inevitavelmente, as mesmas emoções que sentimos ao perceber que a jornada havia, finalmente acabado. Pois, apesar de sabermos que sempre podemos retornar a todos os filmes, livros e peças, a sensação vai sempre ser que, ali, uma parte da nossa infância, tenha sido você criança ou adulto quando acompanhou a saga pela primeira vez, havia, também, chegado ao fim.

De certa forma, “Harry Potter” é sobre a vida, sobre crescer, aprender, amar, vencer e perder. É sobre criar memórias que nem todas as fotos, pinturas falantes e penseiras do mundo podem reviver, por mais que nos permitam viajar de volta por um breve momento. É sobre o bem, o mal, e as decisões que temos de tomar que, muitas vezes, caminham sobre uma linha tênue entre os dois.

“Harry Potter” é sobre tudo isso para, apenas então, ser sobre magia. E este é o motivo de seu feitiço ser tão duradouro.

9.8

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