Crítica | In Water

REGISTROS FANTASMAS

Em filme experimental, Hong Sang-soo encontra equilíbrio mágico entre forma e tema


No início de 2022 tentei fazer um longa. Eu, quatro amigos, duas câmeras, nenhum tripé, um corta vento, uma ideia mais ou menos concebida.

No primeiro plano, o protagonista (eu) caminha em direção ao mar, e a má qualidade cinematográfica da DSLR faz parecer com que ele praticamente suma em meio ao azul acinzentado.

Eis que dois anos depois, em uma conexão cósmica, Sang-soo faz um filme de premissa similar a minha, que termina como o meu começa visualmente, e termina como o meu termina tematicamente (no meu, o protagonista troca o mar por um morro de dunas). Ambos são sobre um jovem que quer fazer um filme, não por dinheiro, como o protagonista de Hong diz, mas para expressar coisas que com palavras não consegue.

Uma pena não ter assistido a In Water antes, uma pena não ter assistido mais Hongs, talvez o único diretor de calibre mundial que tem qualquer valor para estudantes de Cinema em busca de seus primeiros projetos, e também um dos poucos que merece a alcunha de prolífico. Tanto, que é difícil se manter atualizado: não é incomum que Hong lance dois ou três filmes em um ano, o que faz um espaço de meia década ser equivalente a duas para diretores que tratam filmes como Copa do Mundo. E compreender esses períodos é algo essencial, sendo que seus filmes, a grande maioria autobiográficos em maior ou menor grau, tendem a seguir ideias que se complementam melhor quando percebidas cronologicamente. Por dois ou três filmes, ele pode recorrer a um dispositivo, mas no terceiro, indica para onde vai a partir dali.

Nesse, a imagem desfocada certamente é o que mais chama atenção, mas me pega muito o número limitado de planos. Longe de ser um Petzold em como compõe seus quadros, ou um Kiyoshi Kurosawa em como explora o espaço dinamicamente, o sul-coreano compensa com uma economia muito própria que, apesar de remeter a Ozu, me lembra o mote usado por Mizoguchi em uma de suas fases mais célebres: uma cena, um plano.

E In Water parece justamente procurar uma economia máxima (desconfio que ele pode fazer ainda mais, mas até agora é o ápice) dos elementos sem que estes comprometam o impacto do filme. Em alguns textos que li fala-se em redução de atores a formas universais, algo que nos faz perder elementos de interpretação, mas que reforça justamente a relação espacial destes com o cenário melancólico ao redor. Me pega mesmo como esses borrões na tela conversam com elementos temáticos do texto: o que são borrões se não os fantasmas que o protagonista comenta?

Algo que, como o título dessa crítica sugere, conversa com o documentário de Kleber Mendonça Filho. Ou melhor, expressa melhor essa investigação metafísica, espiritual do espaço, justamente por o fazer sem a necessidade de qualquer condução textual. Certamente ao professar sobre os espectros (e gosto como faz isso em um plano onde o trio conversa e tem uma porta vazia ao fundo, talvez até uma menção a Aquarius?) o filme materializa essa dimensão, mas não é como se a leitura não pudesse ser feita mesmo se o filme não tivesse diálogos. Certamente me lembro de A Mulher que Fugiu (2020) e O Filme da Novelista (2022), experimentações espaciais, metafísicas e ultra pessoais cada um a seu modo, mas talvez esse seja mesmo seu primeiro filme primeiramente Hitchcockiano, onde as manchas e os espectros assombram o espaço vazio na tela.

Daí, o plano final é das coisas mais monumentais de 2023, que prova como Hong, sem firulas ou megalomanias, é de longe o cineasta mais inventivo e "tecnicamente" impressionante em atividade. Uma imagem que propõe uma união além do harmônica (homogênea talvez seja a palavra ideal) entre a técnica e o tema, um protagonista que desaparece no horizonte por conta da imperfeição proposital da imagem, e que assim se torna um fantasma em seu próprio registro.

E a sensação, ao assistir o filme e ao escrever este texto, é de que agora percebo como poderia ter preparado tudo melhor, como talvez devesse ter me atido a referências tão práticas como românticas, tão realizáveis como idealistas. Como disse, é uma pena que não tenha visto In Water anteriormente aquele verão de 2022, mas assisti-lo depois foi um aprendizado tão cinematográfico como de vida. No fim, sobraram as memórias, e é um privilégio tê-las imortalizadas nas lentes imperfeitas, e portanto, únicas, daquelas duas DSLR.

9.5

Anterior
Anterior

Crítica | A Morte Num Beijo

Próximo
Próximo

Crítica | May December