Crítica | The Novelist's Film
CINEMA DECLARAÇÃO
Em um de seus melhores filmes, Hong Sang-soo aponta a câmera para o mundo
Hong Sang-soo é sem sombra de dúvidas o diretor contemporâneo mais importante. Não é o que faz mais sucesso, nem necessariamente o que todos deveriam assistir, e não discuto aqui ser o melhor (embora os argumentos sejam muitos). Mas certamente é aquele que mais experimenta e, portanto, comprova a capacidade infinita do Cinema.
Que faça isso refazendo sempre o mesmo filme (e lançando mais de dez versões diferentes nos últimos cinco anos) é uma das minhas ironias preferidas.
Mas o fato é que, dentro das limitadas opções que seu estilo imutável permite (o zoom, o pan, o corte), seus filmes todos oferecem algo novo para se estudar. Uma nova teoria, um novo ponto de vista. No caso desse, uma nova referência que se torna talvez o momento mais transcendental do Cinema em 2022.
O DIA EM QUANTO É DIA
Por tudo isso, Sang-soo é um daqueles diretores que provoca raiva ao mesmo tempo que encanta.
Com esse estilo característico e auto-limitado, o cara opera em um espaço delicado entre a autoconsciência e a sincera expressão artística. Momentos onde ele parece tecer comentários sobre o próprio Cinema e a relação das pessoas com ele, e outros onde ele consegue simplesmente filmar o infilmável em um cotidiano repleto de magia - sempre escondida sob a superfície.
A cena que exemplifica isso é justamente a mais notável do filme: na linguagem de sinais, e ensinando ela aos outros ao seu redor, ele filma com a câmera estática um momento tão singelo, mas ao mesmo tempo tão pleno que levanta a dúvida de onde ele surgiu.
O dia continua claro, mas logo escurecerá. Enquanto ainda é dia, vamos dar uma boa caminhada.
E essa simplicidade rege todo o filme, talvez seu mais minimalista em termos de rejeitar truques e rimas estruturais. Vemos o dia de uma novelista que quer dirigir um filme, ela encontra pessoas, algumas indesejadas, outras interessantes, finalmente uma atriz (obviamente, Kin Min-hee). Um acaso fabricado que gera momentos de genuína dúvida, que vem se tornando algo recorrente (o gato em A Mulher que Fugiu): a menina na janela, roteirizada ou espontânea?
Nesse sentido, o preto e branco até parece ser meio dialético a essa proposta naturalista, como se sempre tivesse que “haver algo” para deixar claro que é um filme. Às vezes estoura, e outras, mais interessantes, torna ambientes modernizados em versões plastificadas, vazias de si mesmos. Mas o principal é como a granulação na imagem não se esconde ou se torna mais charmosa com a decisão, uma que se dá por motivos aparentemente estéticos e conceituais, até que, no fim tudo se justifica: em seu filme mais “real”, um momento Kiarostamico onde declara seu amor para Min-hee ao apontar a câmera para ela, agora com cores.
Algo que remete não só ao final de Gosto de Cereja (1997), mas ao próprio Godard e sua paixão por Anna Karina, verbalizada com a câmera que a filmava em todos aqueles filmes do início dos anos 60.
É um momento transcendental em sua trajetória como diretor, onde finalmente parece enxergar o mundo além da reprodução de sua própria visão. Por mais que ainda seja sobre ele (apesar dos apesares, acho que ainda não fez o seu melhor filme), The Novelist's Film é, acima de tudo, sobre ela.