Crítica | Licorice Pizza
UM SABOR DE NOSTALGIA
Com Licorice Pizza, PTA volta à adolescência e ao início da carreira
Assim como outros nomes conhecidos do Cinema norte-americano contemporâneo, Paul Thomas Anderson filma “pouco". Foram apenas nove longas desde sua estreia na direção, com Jogada de Risco em 1996, o que o coloca empatado com Tarantino e logo atrás de Fincher, Nolan, seu amigo Wes Anderson e Shyamalan. A cargo de comparação, o sul-coreano Hong Sang-soo tem 10 filmes desde 2017 e Clint Eastwood, que começou a década passada comemorando seu aniversário de 80 anos, soma 10 apenas no período.
O que isso quer dizer? Nada talvez.
Edward Yang não amava menos o Cinema, ou era menos diretor, por fazer apenas nove filmes a carreira toda. O mesmo pode ser dito de Kubrick, Dreyer, e outros grandes nomes. Mas eu acho que, no caso dessa turma anos 90 (como não existe um nome pra eles ainda?), quer dizer algo sim.
Todos os diretores que comentei são, em maior ou menor grau, tão apaixonados por seus métodos que por vezes deixam isso atrapalhar seus filmes. Alguns deles se recuperaram disso, outros (ao menos ainda) não.
Ao favor de PTA - além das origens Hollywoodianas que o qualificam como Nepobaby e justificam ter a “confiança” de dirigir um filme multi-milionário antes dos 30 - está o fato de seu estilo ser menos “visível”, ainda mais por transitar entre diferentes gêneros e tons, me fazendo até cogitar ser ele, e não Nolan, a versão contemporânea de Kubrick - com todas as ressalvas possíveis.
Mas se em Embriagados de Amor (2002), Sangue Negro (2007) e Trama Fantasma (2017) a comparação parecia fazer qualquer sentido, em Licorice Pizza o diretor volta às origens, de jovem adulto empolgado com Quentin Tarantino nos anos 90, e é aqui que é possível ver esse apreço pela própria arte que PTA esconde melhor que seus colegas. Em suma, Licorice Pizza é uma versão mais madura, mais paciente e ciente de si mesma do que Boogie Nights (1997), e Anderson faz questão de amar cada segundo de sua cidade natal e seu primeiro sucesso como diretor.
Mas o amor está ali. Não só pelo Cinema Norte-Americano e sua história que se confunde com a de Los Angeles (sua cidade natal) mas por sua própria arte. Quando a câmera passeia horizontalmente pelas ruas da cidade das imagens é possível ver um jovem Paul Thomas Anderson perambulando, por mais que a história que vemos, em si, seja uma romantização da adolescência do produtor Gary Goetzman, enquanto este tentava se tornar um empresário.
ERA UMA VEZ PERDIDO EM HOLLYWOOD
É bem inegável a influência de Tarantino em Boogie Nights, mas se torna ainda mais curiosa essa relação dos dois quando, depois de duas décadas se afastando do fantasma de Pulp Fiction (Sangue Negro nem parece ser do mesmo diretor), PTA literalmente faz seu próprio Era Uma Vez Em Hollywood.
Filmes que dividem não só a natureza eventiva, mas quase a mesma paleta de cores alaranjada, trocando os passeios a carro de Brad Pitt por caminhadas horizontais e exploradoras da dupla principal. Em cada esquina parece haver algum personagem pseudo-baseado em alguém verdadeiro, porém se o filme de 2019 era sobre o fim (da Era de Ouro, da carreira de Tarantino), este é sobre complicados começos.
O que não deixa de ser curioso vide a origem de Anderson, que empresta a história do produtor Gary Goetzman para filmar um filme altamente pessoal. Mesmo a escalação de Cooper Hoffman (filho de Seymour, que me assustou de verdade não só pela semelhança, mas pelo que parece ser um talento comparável ao do pai) parece uma reverência ao Cinema de Anderson, e Alana Haim é a musa ideal do diretor: esquisita, mas bonita (e não o contrário). Ainda assim, o que poderia ser um comentário sobre o próprio ego acaba se tornando em uma cartinha (não carta) de amor para seu próprio passado, refazendo o filme que o fez como diretor.
E é quase mágico constatar como tudo que me incomoda em Boogie Nights parece ser “corrigido” aqui. Das cores às músicas, dos figurinos setentistas a um olhar maravilhado quando Alana é comparada a Grace (Kelly), a reconstrução de época é vívida e vivida, e não forçada com elementos que se sobrepõem. Os colchões d'água e os fliperamas são partes fundamentais da narrativa, e não apenas remendos como eram as supostas revoluções na indústria pornográfica. Enquanto aquele filme nunca tirava um tempo para respirar, este aprecia tudo a sua volta e mais ainda os pequenos momentos, que são justamente sua maior força.
Um olhar alongado; uma caminhada (ou corrida!) a dois com planos longos e uma lateralidade bem exploradora; a descoberta do corpo feminino como momento marcante na trajetória do guri. Quando ele parece colocar a mão no peito dela, e outro ângulo mostra que não tocou de verdade, é Anderson percebendo como havia na adolescência mais do que a necessidade de fazer. Daí é no mínimo curioso que ao menos dois planos remetam ao Um Dia Quente de Verão (1991), de Yang, enquadrando personagens com uma porta em cenas cotidianas, em uma delas banhada a um sol forte. Intenções a parte, momentos que parecem literalmente entender o poder de contemplar o tempo.
É um Paul Thomas Anderson igualmente apaixonado, mas dessa vez, sabendo apreciar o próprio filme - e o título sendo, literalmente, as duas palavras que mais o lembram da própria adolescência, é praticamente uma confirmação disso.
LÁ E DE VOLTA OUTRA VEZ
Essa paixão se entrega mais, e entrega menos, porém, nas situações mais isoladas do núcleo principal. Embora ache que as mais de duas horas sejam parte essencial da experiência, as sequências envolvendo Bradley Cooper (engraçada, que eu gosto) e Sean Penn (chata) são praticamente a mesma coisa e se alongam de maneira bem desgastante. É bem brilhante como tudo sempre volta pros dois (uma melhoria também em relação ao Vício Inerente, 2014), agora com novas camadas e aumentando esse senso de urgência de um amor efervescente, mas não é necessariamente algo que salve ou melhore esses momentos.
A mais isolada certamente é a que envolve um dos irmãos Safdie e que, por um espelho, revela o momento mais sermônico do filme. Apesar de apreciar o efeito, não sei bem se combina com todo o resto, e não é como se o filme fosse a extremos o suficiente para ela funcionar pela estranheza. Mesmo algumas cenas que envolvem a dupla sofrem disso - principalmente envolvendo alguns atos mais impulsivos e ilógicos dos dois movidos a ciúme -.
Mas o curioso é que Licorice Pizza parece funcionar mesmo é quando voltamos pros dois. Uma lógica espacial e temporal de retorno ao sonho americano, que periga aqui e ali dar em nada e confirmar os piores anseios e pessimismos, mas que logo volta a perambular pelas ruas, pelos fliperamas, pelos Cinemas.
Daí, mesmo com essas falhas contornadas em um filme naturalmente cenográfico, fica claro que são as sensações pertencentes a jornada que importam, e não os inevitáveis desvios que, por mais desagradáveis que sejam, nos fazem olhar pra tudo que foi conquistado com mais apreço.