Crítica | A Mulher que Fugiu

CINEMA FORA DA TELA

Paixão metafísica transforma exercício em obra prima


O Cinema é provavelmente a única arte que consegue acontecer fora de si mesma, ao passo que seus únicos acontecimentos estão confinados ao espaço de sua projeção. Hong Sang-soo, o diretor contemporâneo que mais explora os limites dessa relação espaço-temporal, e a própria natureza da sétima arte, faz em A Mulher Que Fugiu (2020) o que podemos chamar de filme teoria.

Extremamente semelhante ao seu Na Praia a Noite Sozinha (2017), e à grande maioria de seus projetos recentes, esse é mais um capítulo em sua saga auto-condenatória, onde explora a culpa e os efeitos de seu relacionamento extra-matrimonial com Kim Min-hee, atriz que interpreta em cada um destes projetos o que já se tornou uma versão contemporânea de Setsuko Hara e Noriko, a musa e a escultura do mestre japonês Yasujiro Ozu. Na maioria desses filmes, vemos ela (Min-hee, no caso) andando, conversando e, principalmente, fugindo de fantasmas, geralmente representados em cena por diretores com o qual trabalhou no passado.

Mas A Mulher Que Fugiu também difere do longa de 2017 (ele lançou nada menos que três projetos naquele ano, mas vou me referir a apenas este desta forma) por ser um filme menos sobre sua personagem - que borra as linhas entre realidade e ficção -, e mais sobre o estilo singular de Sang-soo. É um filme que reconhece todas as características de seu Cinema, e dialoga sobre elas conforme encontra novas formas de empregar velhos truques.

A cena das três amigas conversando enquanto comem frutas é um exemplo perfeito dessa exploração: o plano é sequência, mas os zoom-ins e outs enquadram o que olhamos. Alguém fala, a câmera se aproxima e corta as outras, mas elas continuam ali. Há um enfoque individual que intriga e preocupa, afinal não deixa de ser também um filme sobre relatos um tanto traumáticos (me remetendo ao Que o Diabo nos Carregue, de 2018), mas essa presença coletiva meio que aquece e conforta, tornando a cena um lugar seguro para se falar sobre o que assombra.

A protagonista repete a mesma fala em cada um dos três núcleos distintos, sempre envolvendo amigas que não via há um bom tempo, e por mais que o filme não se entregue ou se apoie excessivamente nessa estrutura inventiva - como faz o Certo Agora, Errado Antes (2015), por exemplo -, eles ajudam a delimitar não só o filme mas as preocupações e buscas temáticas de cada um.

Na segunda sequência, no apartamento da amiga, as duas conversam ao lado de uma janela que enquadra a rua, como que se dentro da própria cena existisse uma segunda dimensão só por conta daquele quadrado que nos permite ver o mundo lá fora. As duas falam sobre casamentos que não deram/dão certo, e logo a janela se transforma em um telescópio onde enxergam a si mesmas: presas em uma rotina matrimonial, em uma pintura da qual podem escapar se abrirem a porta.

É um Cinema que trabalha com o que está além da tela, além do enquadramento, da imagem, de maneira muito mais orgânica do que faria um plano-contraplano (ao menos, é nisso que Sang-soo parece acreditar), e isso funciona tanto nas cenas de conforto como naquelas onde Sang-soo parece se aproximar de um filme de terror. Pois, ao abrirem as portas, um novo tema surge. Se no Na Praia A Noite Sozinha era um stalker inexplicado, aqui são fantasmas dos arredores. Um vizinho intrometido, um peguete esquisito e um ex problemático, todos delegados a espaços confinados e devidamente enxotados, mas que sugerem uma agressão externa aos espaços seguros que cada um dos núcleos parece oferecer pra protagonista.

Incrível como o Sang-soo consegue também filmar sutilezas, incluir temas e ideias com meros gestos. Uma mão que segura a outra carinhosamente (e que me lembrou o Uma Mulher Casada (1964) do Godard), um abraço que comunica sororidade, um toque em um joelho que sugere algo a mais.

Mas claro que o prêmio de cena mais brilhante tem de ficar, como todos parecem ter concordado, com o zoom do gato bocejando. Uma união miraculosa de decupagem (a cena foi planejada), improviso (o gato bocejar, não) e mistério (o gato parou ali espontaneamente?), mas também um momento de sensibilidade artística (o simples ato de deixar o take passar) que mostra porque Hong Sang-Soo é um dos melhores diretores em atividade. E que, ainda por cima, mostra sua subestimada habilidade como editor: o corte seguinte é para Min-hee, intrigada com o que vê em uma câmera de segurança. Sua amiga sai de cena e aparece na câmera, confortando uma menina desamparada. O mistério do que está ao redor, do dia a dia que, no momento que registrado em imagem e, portanto, transformado em realidade visível, se torna algo ao mesmo tempo mágico e assustador.


TUDO SOBRE ELA

Encontrando muito nessa busca por exploração que envolve incidentes tão pequenos e cotidianos (talvez sua melhor encarnação de Ozu até hoje), me arrisco a dizer que o filme poderia soar como um mero exercício, não fosse a paixão quase obsessiva de Sang-soo por Min-hee. Me lembrando Godard com Karina em Uma Mulher é Uma Mulher (1961), é um filme que, como aquele, se descobre conforme avança, e que é diretamente influenciado pelo fato de a câmera estar apaixonada pela pessoa que filma.

No final, a praia que vemos como diegética, revelada como um filme dentro do filme apenas pelo deslize da câmera que nos mostra Min-hee em um cinema, parece até uma auto-referência que conecta esse ao Na Praia A Noite Sozinha. Ou melhor, dá novas dimensões para ambos os filmes: pois se aqui a fuga da personagem está no Cinema (o deslize dela pra praia, na segunda sessão, é dos mais belos usos da linguagem cinematográfica da década até agora), naquele filme a praia que deveria sugerir serenidade e reflexão surge como mais um purgatório, perigoso e exaustivo.

Talvez ele queira dizer que, ecoando o que comentei em minha crítica daquele filme, não há maneira de fugir das consequências da realidade, nem mesmo com o Cinema. Afinal, seu próprio se tornou um confessionário, e não um mundo de maravilhas que ignora o que está, novamente, fora da tela.

Anterior
Anterior

Crítica | Boogie Nights

Próximo
Próximo

Crítica | As Pontes de Madison