Crítica | As Pontes de Madison
AMOR ALÉM DO TEMPO
Celebrado filme dos anos 90 é um ponto convergente na carreira de Clint Eastwood - e do próprio Cinema
As Pontes de Madison é um filme que desafia a percepção do tempo, tanto o que passa em sua diegese, como aquele que determina seu lugar na história do Cinema.
Ponto importante na filmografia de Clint Eastwood - o ator e o diretor -, é talvez o último grande romance do Cinema, antes deste entrar em uma era de filmes pró-amor, mas anti-relacionamentos que mais analisam do que apaixonam.
Baseado em um livro não muito famoso (e pelo que li por aí, não muito bom), é curioso como o Cinema tem o poder de não só ressignificar, mas re-escrever histórias que a Literatura não soube expressar - o contrário também pode ser verdade. Robert Kincaid, um fotógrafo de natureza que chega a uma cidadezinha em Iowa, traz consigo câmeras, mas também imagens.
Eastwood, então com 65 anos, já era uma lenda viva (Meryl Streep, aos 46, estava no caminho). O Homem Sem Nome de Sergio Leone, o pistoleiro Dirty Harry, uma das últimas conexões de um mundo cada vez mais modernizado com as figuras heróicas que vagaram pelo faroeste americano nos anos 30, 40 e 50. O último machão, por assim dizer.
Curioso também que tantos grandes romances mostrem casais com idades discrepantes (por mais que Eastwood passe tranquilamente por 50 aqui). Algo certamente influenciado pelo modelo patriarcal e machista de Hollywood, mas que não deixa de me sugerir uma certa curiosidade quase casual. Se encontrando em uma espécie de Éden, desenhado pelo amplo espaço e protegido pelo tempo, de nada importa exceto o amor que floresce entre os dois.
Essa estrutura simples e despreocupada com análises exteriores, que definitivamente remete ao Cinema clássico - os Bogarts e Bacalls, os Grants e Kerrs -, também se associa aos melhores trabalhos de John Ford, onde suas ambíguas visões de mundo transformam a solenidade das relações amorosas em algo inexplicavelmente ainda mais bonito. Como se a textura servisse como um teste para a veracidade dos sentimentos de seres problemáticos não por natureza, mas por como essa os corrompe.
Há também uma certa ingenuidade inglesa, esta também enrijecida por costumes hierárquicos que surgem como empecilhos (se tornar a fofoca da cidade é pior do que viver uma vida infeliz), mas que permite que dois adultos possam se apaixonar como jovens crianças, ainda descobrindo a si mesmos e ao amor. Alguns dos diálogos são quase infantis, Streep constantemente sorri envergonhada e bota a mão no rosto, em um filme que louva o poder dos gestos mais simples e efetivos.
Desencanto (1945) certamente vem à mente, assim como A Paixão dos Fortes (1946) e Sangue de Heróis (1948), mas me lembra também a implacabilidade do cotidiano romantizada por Yasujiro Ozu, a luta interna entre os desejos e os papéis que devemos exercer, e que pautam tantos de seus filmes. Rossellini e suas viagens absurdistas, porém, acabam sendo um cenário perfeito, em como Uma Viagem a Itália (1954) é contada tanto com diálogos, mas com lugares e jogos de olhares que buscam, desviam, encontram. E, porque não, aos capítulos mais caseiros de Ingmar Bergman, que em Cenas de Um Casamento (1974) discutiu as relações matrimoniais melhor que ninguém, também com uma atenção aos gestos e casualidades que surgem com duas pessoas dividindo o mesmo espaço.
Nesse sentido, a cinefilia de Eastwood anda lado a lado com sua própria iconografia. Um ser raro e único, que 30 anos atrás já fazia filmes sobre o fim de sua vida e carreira, e estas até hoje seguem vivas. Uma ligação com um passado que ele tanto volta, mas que também entende que, como tudo que o tempo toca, precisa olhar pra frente - algo que ele mesmo diz para Francesca.
E é também apenas justo que Meryl Streep possa ser mencionada ao lado de Setsuko Hara, Liv Ullmann e Ingrid Bergman, em uma época onde grandes atrizes ainda eram escaladas para grandes filmes, e não apenas para filmes grandes.
Aliás, não que As Pontes de Madison seja um filme “grande”. Talvez a maior qualidade seja justamente como se contenta em ser aquele pequeno momento, um mundo escondido de todos que é revelado aos filhos por diários altamente pessoais. Uma maneira de Francesca dar ao mundo uma história que jamais seria contada, e que se sentiu confortável para tal apenas quando não podia mais encarar as consequências do simples ato de amar - ponto crucial no complexo recorte social e temporal que o filme se encontra.
E Eastwood consegue retratar com delicadeza as memórias que constituem seu filme. Filmado do ponto de vista da dona de casa, o que ela vê é romantizado, e quando a vemos estamos a descobrindo ao mesmo tempo em que ela se redescobre. O reflexo no espelho, o olhar da janela, quase um auto-voyeur, que me lembra também a frase que inicia No Silêncio da Noite (1950), de Nicholas Ray (outra influência de Eastwood): I was born the day I met you, lived a while when you loved me, died a little when we broke apart.
Como se a chegada de um homem que traz a fotografia, o Cinema, a imagem, fizesse com que Francesca percebesse que está viva.
Curioso também com essa sensação de simplicidade na hora de filmar, presente em vários de seus filmes, combina com o personagem em si. É quase como se Kincaid descobrisse o local que fotografa ao mesmo tempo que o filme descobre onde deixar a câmera, uma relação metafísica que encontra belos planos - eles se olhando pelos buracos da ponte, um deles -, e economiza tantos outros.
E Eastwood não tem problema nenhum em ser melodramático em suas escolhas: as lentes de Jack N. Green fotografam um passado quente, provavelmente um verão onde a brisa da noite é bem vinda no corpo nu. Já o presente é enlameado, ganhando cores e descobrindo a natureza (eles literalmente saem para conversar e leem uma parte do livro no lago) conforme os filhos aceitam a história da mãe, e são transformados por ela - um desdobramento bem Sessão da Tarde, mas que funciona justamente por isso.
Chega a me remeter a um Kenji Mizoguchi, dos poucos diretores que conseguem reunir todas as qualidades que descrevi neste texto e ainda um pouco mais. Em Senhorita Oyu (1951), uma de suas mais devastadoras obras primas, é em uma caminhada proibida que o homem se apaixona pela mulher errada, e é em meio a uma espécie de pântano que o filme atinge seu ápice desolador. Uma história de um amor natural, e um martírio proporcionado pelos valores absurdos de uma sociedade arcaica. Mas contrapondo a implacabilidade do Cinema de Mizoguchi, Eastwood olha para a tristeza do desperdício de maneira não bem otimista, mas apaixonada, pensando não no que ficou para trás, mas nas possibilidades de um futuro desconhecido. "Seria ótimo falar com meus pais novamente, torna a ideia da morte muito menos assustadora", disse ele em uma entrevista em 2019. Um sentimento que talvez Robert e Francesca, cujas cinzas agora jazem na ponte que os uniu, partilhassem.
No momento que Robert Kincaid chega naquela pequena fazenda em Iowa, uma bússola começa de maneira lenta, porém implacável, a derramar os grãos de areia que marcam a passagem do tempo. Um microcosmos que existe apenas ali, e apenas para duas pessoas, escondidas em uma dimensão que apenas as duas conheciam até que suas próprias bússolas formassem seus respectivos montes.
O quanto seria um monte, é uma questão delegada para o mais insolúvel dos paradoxos, e que se encaixa perfeitamente em uma das principais indagações de um filme apaixonado pela história que conta.
Enquanto Francesca passou a vida toda atarefada demais para pensar em viver, Robert rodou o mundo. Teria ele vivido mais? O que esse mais significa? O que se precisa fazer para se dizer que viveu uma boa vida? Quantos grãos de areia formam um monte?
No fim, os dias que Francesca e Robert passaram juntos são míseros e imperceptíveis perto de tantos outros que viveram fazendo as mesmas coisas de sempre. Mas acredito que ambos diriam que é por causa daquela pequena janela de tempo que valeu a pena viver.
As Pontes de Madison acredita nisso cegamente e, por isso, talvez seja o romance perfeito para o Cinema, a arte do olhar.