Crítica | Aftersun

SOBRE PAIS E FILHOS

Estreia de Charlotte Wells tenta enquadrar memórias em busca de respostas


Uma das músicas mais célebres de Renato Russo seria trilha sonora perfeita para Aftersun caso o filme decidisse mergulhar mais a fundo no sentimentalismo.

Vítimas do inexplicável movimento online que fez o jovem brasileiro rejeitar nomes consagrados da nossa música - e que parece ter se enfraquecido nos últimos anos - o Legião Urbana podia até ser uma banda melodramática, mas cunhou algumas frases indiscutivelmente verdadeiras e marcantes.

Nenhum filho (ao menos quando jovem e rebelde) entende seus pais. Afinal, seria impossível. Mas enquanto alguns ignoram essa falha de comunicação pelo resto da vida, outros procuram juntar os pedaços conforme envelhecem, acumulam experiências e entendem memórias que antes não faziam sentido. No fim, todos procuramos nosso lugar no mundo, e entender quem eram as pessoas que nos colocaram nele acaba sendo um passo indispensável para muitos.

Por experiência própria, ter pais separados é algo que definitivamente muda sua percepção das coisas. A base inicial não mais existe, o mundo ganha textura mais cedo (no meu caso, aos 2 anos), as rachaduras em mãe e pai se tornam mais aparentes. Você acaba conhecendo demais de um e de menos do outro, e isso meio que muda tudo.

Por isso, quando a escritora e diretora Charlotte Wells filma a si mesma acordando de um pesadelo, o que era pra ser um momento auto-indulgente e centrista se torna uma imagem de compreensão. Em seu longa de estreia, Wells abre uma caixinha que muitos de nós deixam fechada a vida toda, e faz isso construindo um dos filmes mais interessantes de 2022.


CINEMA DE TENDÊNCIAS

O que mais gosto é o balanço entre o egocentrismo de fazer um filme sobre si mesma, e o egoísmo (ou personalidade) de fazer um filme para si mesma. Mesmo que os momentos poderosos (e são alguns) sejam excessivamente emotivos, estes são feitos para a própria diretora, a partir das próprias memórias, e pintados com as próprias significações.

Algo que faz o filme balançar para o lado certo da corda bamba: mesmo dentro de sua roupagem de festival, acaba soando quase experimental quando dentro da proposta emocional de Wells. É quase como se usasse tudo a seu alcance dentro do que se tornou comum na indústria regada a A24 (pense em Moonlight, Waves, Nunca Raramente Às Vezes Sempre), tentando encontrar a melhor maneira de enquadrar um momento tão crucial, que se ressignifica a cada vez que é revisitado.

Nesse sentido, as gravações com câmera de vídeo se tornam um toque brilhante, com todo o jogo de olhares e reflexos que despem ao mesmo tempo que registram. Mais que isso, remetem a uma tendencia de sua infância, de quando tudo começou a ser gravado em casa, agora contraposto a tendencias contemporâneas, de um Cinema feito com orçamento alto para tentar emular algo caseiro.

A câmera na mão e o uso dos 35mm, simulando o mais próximo da visão humana, são justamente isso, ainda mais quando pontuadas por fades de tutorial de Premiere Pro (é um elogio). Mas mesmo nessa fabricada estética flutuante, Wells encontra espaço para planos milimetricamente decupados e poéticos, que escapam de sua própria reverência ao se fazerem óbvios: a polaroid que se auto-revela conforme a menina entende mais sua relação com o pai, o tai-chi com a placa propositalmente mal enquadrada. A própria estrutura parece brincar com o fato de que não há peça que encaixe aquele quebra-cabeça. Ao final do filme não fazia ideia do que a diretora parecia haver constatado, se qualquer coisa, mas vi que vários tiraram suas próprias conclusões.


VIAGEM NO TEMPO

Em um ano onde diretores consagrados fizeram viagens ao passado (de Linklater a Spielberg), uma estreante oferece uma das mais potentes do ponto de vista formal. As câmeras de vídeo, além de remeter a esse Cinema de tendências, são uma maneira simples de evidenciar uma volta no tempo, a qual Wells procura completar com uma encenação espacialmente consciente (os atores sabem onde a câmera está), mas suficientemente sensorial.

Cenas como a do tapete, do jogo de moto e das aventuras com a gurizada mais velha soam bem pessoais e diretas (o que me lembrou o Pequena Mamãe, de Celine Sciamma), e gosto muito de como ela também tenta criar situações além do que poderia realmente lembrar, como o pai falando com outras pessoas e voltando pra comprar o tapete (algo que, aliado à essa ressignificação poética, certamente remete ao trabalho de Claire Denis). Volta e meia rola um excesso, os óculos perdidos no mar e a fala grosseira sobre o pai não ter dinheiro certamente expõem demais algo que já havia ficado claro, e acaba oferecendo obviedades textuais demais pra um filme que trabalha com memórias e abstrações.

E claro, o pedantismo de tantos críticos em chamarem de mal escalados atores para viver a família dos diretores é um velho clássico, e pretendo evitá-lo aqui, pois não conheço nem a diretora e muito menos seu pai. O que posso e devo dizer é que Paul Mescal consegue fugir de todas as muletas mais conhecidas, e cria um personagem próprio e construído de maneira interna e enigmática, em um filme que tenta desvendá-lo. Ao passo que a pequena Frankie Corio deve se tornar um novo ícone do movimento: ela é tão eu, se escalada para os papéis que deve ser após seu sucesso estrondoso aqui. Sincera, direta e com personalidade, é uma interpretação ao mesmo tempo sutil e externalizada (portanto, oposta à caracterização de Mescal), encaixando perfeitamente em um filme que é a imaginação de sua diretora de como era quando criança.

São vários pequenos detalhes e vários pequenos acertos, em um filme justamente sobre pequenos detalhes e pequenos momentos, que valorizamos pouco quando acontecem, mas que nos fazem quem somos. O que me lembra também Boyhood (2014), um filme sobre a minha infância mesmo que não seja. É a mágica do Cinema, que Aftersun certamente também sabe, sob suas diferentes lentes, encontrar e revelar.

8.1

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