Crítica | May December

desvendando APARÊNCIAS

FILME DE TODD HAYNES ASSIMILA ELEMENTOS METALINGUÍSTICOS EM INVESTIGAÇÃO SOBRE A IMAGEM PÚBLICA e privada


Talvez a melhor frase do cinema norte-americano de 2023 tenha saído da voz de Natalie Portman, uma das poucas atrizes que, entre um ou outro cheque grande pra botar fantasia e ir pra academia, faz arte que talvez mereça ser lembrada no futuro.

Depois de sua personagem misturar um pouco de realidade e ficção ao transar com o marido da mulher a qual vai interpretar em uma cinebiografia porca de Hollywood, ela diz para ele com uma quantidade absurdamente bem calculada de desdém e empatia:

É isso que adultos fazem.

E a frase toma um contexto ainda mais metatextual dentro de um filme que abusa da metalinguagem: Natalie Portman, a mulher Thor, dizendo isso para Charles Melton, ator de Riverdale. Nesse e em outros momentos o filme faz questão de brincar com a última tela e apontar alguns dos absurdos que ocorrem no Cinema norte-americano contemporâneo. Se Carol (2015) pareceu ser feito no momento certo (praticamente o ápice dessa onda de diversidade propagandista), May December vai contrário a tudo que aquele momento proporcionou nos últimos anos e que nos fez chegar aqui.

Em um 2023 onde discutimos se deveríamos ter botões de pular cenas de sexo porque estas são desconfortáveis, onde mostrar algo errado imediatamente significa concordar com este algo, onde a percepção cognitiva das pessoas sobre a arte (e sobre tudo, na verdade) chega em níveis alarmantes, onde Barbie é considerado um filme subversivo e feminista.

E, claro, é brilhante que Portman encarne a protagonista como uma criatura de filme B na cena que vemos no final do filme: enquanto praticamente todas as cinebiografias são grandes porcarias onde atores fingem que estão "encarnando" as pessoas que interpretam, a transformação de Portman é ridícula não apenas pela abordagem escolhida pela atriz após passar tanto tempo convivendo com a mulher real, mas pela própria parar o diretor e pedir para continuar porque está ficando "mais real".

Ah se isso não daria uma bela manchete de portal de cultura pop…


entre os BOTÕES DE PULAR

É no mínimo interessante que, por mais que mostre uma situação que apela pra curiosidade pelo escândalo, o filme começa e termina em torno de duas elipses importantes. O caso, afinal, é bem conhecido e documentado, mas o entendemos, no filme, por meio de relatos fragmentários. Eventualmente dá pra ter uma ideia mais concreta do que de fato aconteceu, mas tudo parece de algum modo delegado à memória e a narradores não confiáveis. 

Me lembrou muito Monster (2004), talvez até no aspecto Bergmaniano em como mostra esse mundo isolado. Claro que o anime é mais mórbido enquanto o filme de Haynes acaba se divertindo de maneira sádica com o cenário, mas a similaridade certamente vai além do que só a questão temática (no caso, o abuso de menores de idade).

Curioso porque talvez a grande cena da carreira de Bergman seja o relato em Persona (1966), ao passo que Cenas de Um Casamento (1974) é igualmente construído em torno de elipses. Mas enquanto extrair até a última gota de alma entre relações estremecidas era a praia do Sueco, Haynes nos coloca em um cenário observatório: dá pra sentir o peso dos acontecimentos do passado em pai e filhos, mas a visão governante é da atriz interpretada pela Portman, enquanto o mundo que entramos parece regido pela mãe interpretada por Julianne Moore.

Daí, o filme me lembrou mais Rohmer e seus contos morais, tanto pelo cenário e premissa (O Joelho de Claire e A Mulher do Aviador vem direto à mente), como por propor um julgamento intelectual desse mundo apresentado. Assim como o Francês (e remetendo também a Hong Sang-soo), Haynes usa zoom ins e outs bem perceptíveis, nos aproxima, afasta, interage com o espaço acessível do filme em sua totalidade. Eles (Haynes, Rohmer, Sang-soo) nunca chegam a trabalhar com a tridimensionalidade Mizoguchiana, mas há uma sensibilidade por tudo que está acessível, sejam os espelhos que aqui assumem um caráter revelador (e, por fim, metamórfico), pela própria fotografia digital e cristalina, ou mesmo os bolos feitos pela personagem da Julianne Moore.

E o filme acontece em torno desses pequenos rituais, e não de confrontos necessariamente potentes no drama. Sob o olhar observador da protagonista (e julgador nosso) vemos um jantar, uma troca de roupa, uma atividade comum de pai, e a interação com cada uma dessas coisas se altera por conta de nosso julgamento prévio do caso. De certo modo, Haynes brinca com nossa percepção da subjetividade: enquanto Portman só quer encontrar algo para melhorar sua interpretação, somos praticamente induzidos a julgar cada pequeno ato, sejam gestos, olhares, conversas, como algo significativo (ressaltando, mais uma vez, o poder dos movimentos de câmera, por mais simples que sejam).

Ao trabalhar esse olhar sensível - seja da protagonista, que mexe naquele mundo particular e revela as imperfeições nele, sejam dos membros da família e sua compreensível repressão de emoções e, talvez pior, de pensamentos - ao mundo ao redor, Haynes isola o filme de grandes acontecimentos narrativos, mas estes logo se revelam nas interações entre diferentes blocos: quando as duas, por exemplo, enxergam pai e filho fumando, dá pra perceber esse controle absurdo do Haynes sobre o espaço virtual do filme (aspecto que Rohmer considerava caro a sua idealização de mise-en-scène), como se fosse impossível que naquele éden das avessas qualquer coisa acontecesse sem ser corrompida pela natureza do caso.

O espaço cinematográfico se definiu assim em relação ao da cena a um só tempo pelo estreitamento da superfície de visibilidade e pela extensão do lugar da ação; não é, portanto, só o interior de cada um dos planos que o realizador deve determinar em função de uma cerca concepção da espacialidade, mas a totalidade do espaço filmado.

Rohmer em O cinema, arte do espaço (1948).

Logo não importam mesmo, e o filme até rejeita as batidas mais tradicionais (a tentativa de DR é deplorável, o adultério é relâmpago), quando tudo que precisamos (ou melhor, queremos) saber já está assimilado na encenação, onde emprestamos o olhar do autor, mas este nos induz a todo momento.

Essa ideia que rege o filme, por si só, já acaba sendo também um comentário por subtração: onde a maioria das cinebiografias é mais uma ilustração esterilizada da história da figura escolhida, May December investiga aspectos cotidianos de figuras fictícias por meio de uma língua muito bem aderida e articulada. O que interessa, no fim, não é nem o apelo gráfico de uma história bizarra, mas como Haynes ilustra isso com seu Cinema.

8.6

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