Crítica | Avatar: O Caminho da Água
James Cameron voltou e trouxe junto um raro blockbuster que busca impressionar a cada imagem, sem alcançar esse objetivo.
O diretor foi um dos maiores nomes de hollywood nos anos 1990, porém depois de “Avatar” em 2009 ele dedicou sua vida a expandir o universo de Pandora e 13 anos depois finalmente temos “Avatar 2”.
Eu lembro com certa precisão como era viver no mundo que assistiu “Avatar”, um mundo em que as pessoas iam no cinema assistir filmes como “Hancock” e “2012”, quando as franquias eram só parte do que ocupava os multiplex, também um mundo e uma indústria cinematográfica assustada com uma crise econômica e que não tinha o costume de ver produções faturando cifras na marca do bilhão de dólares. Naquele verão de 2009/10 lembro de ter ido assistir três vezes no cinema ao único filme que todo mundo falava, a nova obra impressionante de James Cameron, curioso que nunca foi uma obra que me encantou, nem na época, mas naqueles meses a sensação é que era aquilo que as pessoas faziam: iam assistir “Avatar”, em 3D, outra coisa que ainda não estávamos acostumados. Esse talvez tenha sido o último grande Filme hollywoodiano, o arrasa-quarteirão tradicional, que fez as pessoas comentarem com seus vizinhos, colegas e quem tivesse interessado, sobre como era impressionante o mundo criado por Cameron, sobre como se devia assistir no cinema o quanto antes.
Desde 2009, a tecnologia 3D raramente foi utilizada com algum propósito além de aumentar o preço dos ingressos e os estúdios desistiram gradualmente de produções originais, passando a investir em sequências, franquias e adaptações, mercado que se mostrou muito lucrativo. A crise econômica se desdobrou em crises políticas e sociais pelo mundo e a Disney se tornou o maior monopólio já visto em Hollywood (comprando eventualmente até “Avatar”), mais de uma década passou com as pessoas indo ao cinema apenas para assistir homens adultos usando capas e super-poderes para combater ameaças alienígenas que ameaçam o status quo da Terra. Em todo esse tempo, James Cameron se concentrou apenas em uma coisa: produzir as sequências para sua obra mais complexa até então, de tempos em tempos recebíamos alguma notícia sobre alguma tecnologia nova que o diretor estava testando, atualizações nas produções e no número de sequências que podíamos ter, mas a realidade é que a sequência de “Avatar” passou a ser algo distante.
Até dezembro de 2022, hoje finalmente temos a aguardada sequência, que vem acompanhada de estatísticas impressionantes de produção, com o diretor falando que a bilheteria teria que ser 2 bilhões de dólares para não ser um prejuízo financeiro. Além dessa sequência, já se fala em pelo menos mais três filmes nos próximos 10 anos, com um terceiro já filmado e finalizado, o “projeto Avatar” de Cameron se concretizou e o mundo vai precisar lidar com isso, de certa maneira “O Caminho da Água” é uma carta de intenções do que essa franquia pretende ser e o retorno da bilheteria será a carta de resposta da audiência. Eu tinha algumas dúvidas sobre o interesse do público num “Avatar 2”, 2009 faz muitos anos a final de contas e poucos personagens que não usam capas mobilizam pessoas ultimamente, mas esse é o tempo que demorou para produzir a visão de Pandora que James Cameron tinha, e se o custo disso for a falta de resposta da bilheteria, parece que o diretor está pronto para aceitar as consequências.
Com tudo isso posto fica uma pergunta: e o filme? “Avatar: O Caminho da Água” é uma mega produção, que trabalha com o tema da exploração do meio-ambiente em um mundo fictício, suas mais de três horas de duração transitam entre sequências de ação, drama familiar e momentos de pura absorção do espetáculo visual proposto por Cameron, que talvez tenha falhado em considerar o aumento do espaço que os efeitos especiais digitais passaram a ocupar no dia-a-dia dos blockbusters hollywoodianos. E o roteiro parece optar por mergulhar em longas sequências que realçam os efeitos especiais sem tentar aprofundar elementos da história dos personagens, um dos maiores problemas, aliás, é que temos que acompanhar muitos deles e não ganhamos elementos narrativos para sequer diferenciar um do outro, a apresentação visual dos Na’vi é decepcionante, pois homogeniza ao invés de diferenciar os diversos novos personagens da franquia.
“Avatar 2” começa com um longo off em que Jake Sully (Sam Worthington) conta acontecimentos dos anos que seguiram o final da película de 2009, ele e sua parceira Neytiry (Zoe Saldaña) formaram uma família com 5 filhos, 3 biológicos, uma na’vi adotiva filha da personagem de Sigourney Weaver do longa anterior (interpretada pela própria atriz) e um menino humano filho do vilão de “Avatar”. A paz em Pandora é ameaçada quando os humanos voltam para tentar colonizar novamente o planeta e Jake Sully novamente precisa ser um líder na primeira linha de defesa, a general humana então monta um esquadrão de avatares na’vi com as memórias de fuzileiros navais comandados pela nova versão do coronel Quaritch (Stephen Lang) do primeiro filme para caçar e matar o protagonista, forçando ele e sua família a se refugiarem com o povo Metkayina, outro grupo que habita Pandora, é um pouco diferente dos na’vi e mora em ilhas no meio de um grande oceano e que os Sullys precisam aprender os costumes.
A estrutura dramática bastante simples e previsível em quase todo o tempo não deveria ser um impeditivo para uma boa história, o gênero épico costuma depender bem de clichês emocionais que potencializam grandes sequências de ação, Cameron dominou bem esse gênero durante sua carreira, tendo dirigido o maior filme épico de todos os tempos, mas em “Avatar 2” os inúmeros chavões e estruturas genéricas parecem entrar no caminho do que seria uma história fácil de contar. A dificuldade de Cameron em escrever diálogos aqui fica nítida a ponto de quebrar a imersão proposta e o autor, que já escreveu tantas frases de efeito famosas no cinema, dessa vez apresentou mantras que não significam quase nada na trama e nem criam momentos memoráveis. As longas cenas que os filhos Sully estão apenas aprendendo a cultura do povo Metkayina criam uma clássica dinâmica de “peixe-fora-da-água” que costuma ser muito boa para realçar as forças e fraquezas de cada um, mas ao final dos 192 minutos de “O Segredo da Água” não há nenhum motivo particular para se importar com as jornadas dos adolescentes na’vi.
Kiri, a filha adotiva interpretada por Weaver, é a que consegue viver os melhores momentos na trama, mas tudo o que vemos dela parece sumir no último ato, como se estivesse sendo escondido para alguma das sequências na franquia, sacrificando a potência de “Avatar 2”. O terceiro ato, que é uma sequência imensa em tempo e tamanho dos cenários, com o conflito esperado entre Jake e a versão atualizada do coronel antagonista, possui problemas bem sérios de ritmo e escala, o grande confronto entre um imenso navio dos humano e os Metkayina cresce até eventualmente todos personagens sumirem e passarmos a ver somente a família Sully e os avatares vilões, sempre com muita dificuldade de localizar onde cada ação é realizada, com um barco gigante como principal espaço a gente facilmente se perde entre os vários ambientes dentro dele. A repetição do vilão de “Avatar” relembrada a todo tempo pelo antagonista e pelos protagonistas também cria uma sensação de que estamos vendo o mesmo filme que deixa tudo ainda mais óbvio diminuindo a potência do conflito.
Claro que, antes mesmo de o filme estrear, já havia defensores ferrenhos de franquias bilionárias discursando sobre como “Avatar” não é sobre trama, não é sobre roteiro, é sobre o grande espetáculo preparado por Cameron ao longo desses 13 anos. Em 2022, dois filmes blockbusters chamaram atenção pelas construções visuais e escala de produção, “Top Gun: Maverick” e “A Mulher Rei”. O segundo é também do gênero épico de guerra e o primeiro talvez lembre mais a ambição espetacular de Cameron, mas os dois trouxeram grandes sequências memoráveis e resgataram um pouco da magia da sala de cinema, quase perdida depois do reinado dos filmes de herói. “O Caminho da Água” ao invés de atuar como um campeão do cinema-real (em oposição a ideia cinema-parque-de-diversão), se junta a fileira do seus colegas de estúdios e apresenta uma experiência visual que lembra muito mais video game que cinema. Entendo porque o empenho da equipe de Cameron que inventou uma tecnologia inteira para filmar com captura de movimento embaixo da água é tão comentada e elogiada, mas a sensação é de estarmos vendo algo 100% em animação, e a escolha do diretor em criar várias sequências em 48 fps ainda diminui a sensação de “realidade” que ele tanto buscou.
A ideia de se fazer um Filme com F maiúsculo não aguenta a uma sessão de “Avatar 2”, os vários momentos embaixo da água recorrem a recursos já muito antigos, como jogar muitos elementos em cores neon brilhantes na cara do público, o que impede a criação de momentos realmente memoráveis. O pouco de trama que de fato acontece nesses cenários é outro fator que diminui aquilo que Cameron tanto desejou ser o carro chefe da produção, parece que o diretor comprou a roupa mais bonita do mundo, mas não encontrou nenhum evento para usar, e se, a intenção é apenas ambientar o público a esse “novo mundo” submerso para os próximos filmes, isso é mais uma prova da dificuldade de “Avatar 2” se sustentar enquanto cinema. Além dos problemas visuais, o longa também abre mão de outros aspectos técnicos que diretores ditos defensores do cinema-cinema costumam valorizar, a montagem nas cenas de ação é muito confusa e impede o público de acompanhar com nitidez os personagens, a trilha sonora é sem graça e fica num volume muito baixo e o som das cenas de ação é no máximo muito genérico, quebrando a suposta imersão que Cameron diz buscar.
Poucos momentos se destacam, um deles é a cena em que o segundo filho de Jake, Lo’ak (Britain Dalton) se perde no mar e acaba criando uma amizade com o tulkun (a baleia de Pandora) Payakan, os dois nadam juntos e conversam, criando os sentimentos mais reais em “Avatar 2”, e uma das poucas coisas do segundo ato que tem consequências no desdobramento da história. O tema da vida, do meio-ambiente de Pandora como um ser vivo, é uma das ideias centrais de “O Caminho da Água” ironicamente, uma vez que é justamente o que falta no longa-metragem: vida. Os sentimentos e as ações dos personagens na maioria das vezes são vazias, mecânicas, apenas repetem chavões em troca de soluções óbvias, por outro lado, a ideia de passar uma mensagem sobre meio-ambiente, exploração de recursos naturais, especificamente usando a caça de baleias como metáfora principal se perde em personagens que começam e terminam o filme do mesmo jeito. É normal no gênero épico existirem heróis e vilões predefinidos, essa é uma das estruturas mais importantes da jornada épica, mas a falta de crescimento e transformação dos heróis mata a chance das três horas de duração criarem algum impacto seja em relação a tese ambientalista ou a qualquer lição de qualquer um dos protagonistas.
O sentimento que parece ser mais verdadeiro em tudo isso é a ambição de James Cameron pela sua Pandora, ele não só transformou toda sua carreira nisso, como passou anos buscando as melhores tecnologias para que sua visão fosse possível, por sorte dele, essa visão inclui dar lucros bilionários para Disney, que sabe exatamente a mina de ouro que um mundo como esse é, pois mesmo não fazendo a bilheteria de dois bilhões de dólares almejada, o mundo de Pandora já é parte dos parques de diversão de Orlando, fonte de renda imensa para o estúdio, então de um jeito ou de outro, o dinheiro investido em “Avatar 2” retornará. O problema, o maior problema, é que quase toda discussão em torno dessa produção é muito pouco sobre cinema, e muito sobre todo o resto, sobre o custo, sobre a bilheteria. A ambição de Cameron, apesar de real, não é com cinema, o diretor de filmes tão impactantes agora deixou de ser um artista, ele é um engenheiro de parque de diversões, ou de videogames, focado em deixar o público visitar o mundo virtual dele, e para por aí. Talvez “Avatar: O Caminho da Água” seja o símbolo do fim do blockbuster hollywoodiano.