Crítica | Argentina, 1985

Há como Transformar um marco histórico na memória e Justiça de transição em uma aventura Hollywoodiana?

No decisivo momento em que o mundo se encontra, “Argentina, 1985” busca reapresentar algumas histórias importantes do passado latino-americano utilizando linguagem dinâmica e atual.

No dia 10 de dezembro de 1983 tomou posse como presidente da Argentina Raúl Alfonsín, primeiro presidente civil desde o golpe militar dado em 1976, seu governo herdou uma série de desafios econômicos e sociais, entre eles reorganizar um Estado que acabava de capturar, torturar e assassinar em torno de 30 mil dos seus cidadãos. “Argentina, 1985” conta a história de um promotor público que se torna responsável por investigar e acusar os líderes militares responsáveis por essas mortes. Dirigido por Santiago Mitre e estrelado pelo brilhante Ricardo Darín, que interpreta o promotor Julio Strassera, o filme conta a história do “Julgamento das Juntas”, marco histórico para a Justiça de Transição como a primeira vez que militares foram julgados por um tribunal civil pelos seus crimes, e utiliza como fio condutor a investigação realizada por um grupo de jovens advogados, os únicos dispostos a enfrentar o medo dos militares na redemocratização, explorando documentos e viagens e nos conflitos pessoais do personagem principal, que pode estar arriscando sua vida e a de sua familia para realizar seu trabalho.

Operando como um drama de tribunal tradicional, são nos momentos em que ouvimos as histórias das vítimas e acompanhamos as reações dos juizes, dos advogados, dos promotores, dos generais acusados e de diversas pessoas representando o conjunto da população argentina frente a tudo que é revelado no julgamento. Outro mérito da direção de Mitre é a capacidade de criar urgência nas ações de Strassera e sua equipe, deixando muito nítido desde o começo o quanto a tarefa de achar documentos e testemunhos que comprovassem que as ações de repressão da ditadura foram coordenadas por todo território nacional sofreria boicotes, inclusive com um tempo muito limitado para realizar esse trabalho. O roteiro, porém, nunca perde de vista a dimensão pessoal dos conflitos que tanto o protagonista quanto seu assistente Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) passam ao participar dessa acusão, conflitos internos e com suas famílias, as ameaças e situações tensas que os dois personagens entram fazem a gente se relacionar e compreender melhor a articulação das forças que eles acusam, que a final de contas é justamente a matéria do julgamento.

Mas o grande personagem de “Argentina, 1985” é mais que um promotor ou advogado, o roteiro coloca a coletividade da sociedade argentina como um ente na história. As pessoas de diversos lugares, de classes sociais diferentes, com opiniões diferentes que acompanham cada etapa do julgamento, seja dentro do tribunal ou fora, seja pela rádio, pela tv ou pelo jornal, com todas as contradições que uma sociedade pode ter. Há quem defende a ação dos militares e há quem crítica, há quem acha que não se devem julgar os generais, há quem luta por justiça por quem foi vítima do terrorismo de estado. Os personagens com nome e suas ações têm uma relação orgânica com esse coletivo de vontades e anseios que pairam sobre o julgamento dos generais. Essa é a maneira brilhante do filme de se inserir nos debates de hoje, tirar a história da ditadura, de Videla, de Strassera do estático passado e usar a mídia cinematográfica para integrar os discursos sobre política do mundo que vivemos com os daquela época, afinal de contas, o autoritarismo e o golpismo dos militares na américa latina são uma força que nunca descansa, e a produção nos lembra disso a cada momento.

E é a atuação excepcional de Ricardo Darin que é capaz de emocionar e passar a profundidade da crueldade das ações da ditadura argentina para o público, de nos fazer conectar com as histórias das vítimas dos militares, escolhidas para impactar o espectador. Aliás, como um bom filme sempre deve fazer, “Argentina, 1985” promove o debate acerca dos julgamentos das juntas sem esconder sua opinião, mas também mostrando de forma didática as contradições dentro das várias esferas da sociedade que pensavam o governo militar de outras maneiras. Em um momento em que cada vez é mais difícil falar com o autoritarismo da extrema-direita, “Argentina, 1985” pode ser uma janela importante para diálogos e para lembrar os horrores do período de doutrina de segurança nacional no cone sul, para que nunca mais aconteça.

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