Crítica | O Dinheiro

Robert Bresson foi um dos diretores que mais assisti em 2022 (acho que atrás apenas de Eric Rohmer). Após me iniciar em seu Cinema com Diário de um Pároco de Aldeia em 2021, logo enfilerei oito de seus filmes durante o ano, com o devido espaço entre cada por motivos de sanidade emocional e mental.

Por outro lado, nunca escrevi sobre Bresson, e nem saberia explicar o porquê - embora seja um diretor "difícil", percebi apenas agora que não tenho textos sobre nenhum de seus filmes.

Significativo, portanto, que o primeiro que eu escreva seja sobre o último que ele filmou. Mas antes de falar sobre O Dinheiro, um pouco sobre o Cinema de Bresson, a quem Godard denominava como “o Cinema Francês”.

O VAZIO NA IMAGEM

Nascido no início do século 20, e falecido dias antes do século 21 (aos 98 anos) Bresson é talvez o maior dos ermitões na história da sétima arte.

Trabalhando independente de todos os movimentos ocorridos no Cinema Francês, e rejeitando as tendências ao redor do mundo, Bresson tem pouco ou qualquer apelo para o espectador casual. Embora seja possível traçar semelhanças entre seus filmes dos anos 50 e 60 e o Neo-realismo Italiano, não me parecem haver interesses históricos e contemporâneos nos microcosmos que filmava. Os escombros se assemelham, mas seus objetivos são diferentes.

Seus filmes sendo testamentos de suas crenças pessoais, e suas cenas um produto de seu singular processo artístico, colocam Bresson como um capítulo à parte, algo que o próprio Mark Cousins destaca em seu livro: A História do Cinema. Se perfeccionistas como Fincher e Kubrick demandam dezenas de takes para emular o perfeccionismo em seus respectivos estilos, e alguém como Scorsese busca extrair cada grama de intensidade de seus atores, Bresson buscava o resultado oposto.

Ao exaurir seus atores - os quais chamava de modelos, rejeitando o legado do teatro -, Bresson excluía qualquer naturalidade de sua encenação: o que importa não é o que me mostram, mas o que me escondem. As cabeças baixas não possuíam uma finalidade linguística, mas prática: eles estão olhando para as marcas de giz. Acreditava que atuar era trazer movimento de dentro pra fora, enquanto modelar era exatamente o contrário.

Seu Cinema era menos sobre reproduzir a vida (ou o teatro), mas criar com imagens e sons essenciais algo que enfatize a falta do que chamava de “alma”. Logo, seus filmes funcionam de maneira particular e, embora influente, única. Não possuem os floreios da poesia, a diretriz da prosa, ou as sugestões da metáfora. Atores como receptáculos opacos, uma busca inerente e incessante por essa alma que raramente é sentida. Prisões morais, psicológicas e emocionais.

O homem saiu ao mundo à procura de Deus, falhou, e está agora aprisionado nesta condição tão frequentemente indagada pelo existencialismo e a fenomenologia

Bresson, portanto, acreditava em uma espécie de Cinema purgatório, onde as trajetórias Sisifianas de seus personagens testam o limite da humanidade em suas individualidades e organizações. A igreja surge como um meio falho e corrompido, assim como o sistema carcerário, a fazenda, a juventude transviada e, por fim, o dinheiro, símbolo máximo da corrompida sociedade capitalista.

UMA NOTA FALSA

Achar que é mais natural para um movimento ser feito assim ao invés de outro jeito é absurdo”, Bresson pregava décadas antes dos patrões da lógica e do roteiro redondinho tomarem conta do Cinema.

O Dinheiro começa com um filho pedindo mesada a um pai. Sentindo que a quantia não é suficiente, ele decide repassar uma nota falsa que, de mão em mão, expõe a corrupção social que leva o ser à realizar o que, no filme anterior, ele atribuía ao diabo.

Embora pareça fácil traçar as intenções temáticas de Bresson aqui (como em várias de suas obras), é como se o próprio nem ligasse para o entendimento daqueles que o assistem. Por mais que tenham um tanto a dizer sobre essas frágeis estruturas que regem a sociedade, seus filmes não deixam de ser investigações pessoais, onde Bresson imprime seus próprios anseios e pensamentos. Não por acaso, seu último filme é o que mais parece encontrar equilíbrio entre seu texto (inspirado em um conto de Tolstoi) e sua forma: seus modelos se tornando os receptáculos perfeitos para suas indagações, e o tom em controle absoluto.

Não há qualquer traço de “teatralidade” em O Dinheiro. Não existem interpretações ou adereços (a trilha sonora, um deles) que fujam às possibilidades do Cinema que acredita, por mais que esse estilo seja, em si, um paradoxo.

Pois para alguém que fazia questão de criar dissonância entre seus filmes e os movimentos e teorias ao seu redor, Bresson tinha um olhar bastante pictórico. Por mais que fizesse tudo em seu poder para remover a capacidade cinemática de seus filmes, suas composições frequentemente apresentam uma qualidade que sugere um planejamento considerável - ou pura genialidade, se preferir acreditar. Seja pelos enquadramentos que fazem o olho descansar na tela, pela textura característica (um granulado aveludado que parece misturar luz natural e refletores leves), ou mesmo por cortes milimetricamente planejados onde uma carta com dinheiro sendo aberta corta abruptamente para uma porta de elevador que escancara o distanciamento entre pai e filho.

O que me faz pensar sobre uma das frases mais celebres de Godard: O Cinema é a mais bela fraude do mundo. O que há de mais falso do que a imagem? Um registro de um tempo que não mais existe, e nada mais reflete se não uma película gravada por um processo químico. Mais um paradoxo: pois se Bresson fazia o possível para remover essa teatralidade, o que criava tampouco era uma representação do real. Cinema, uma arte pura, era o que buscava.

A imagem, portanto, se assemelha à nota falsa em sua representação. Ambas tem pouca ou nenhuma utilidade se não a si próprias, com a finalidade de enganar aqueles que não as distinguem. Seria a corrupção do homem fruto tanto da nota (o capitalismo), como da imagem (o Cinema)?

Embora haja um aspecto católico forte em seus filmes, ser Bressoniano é abdicar de aglomerações humanas e buscar fora da tela - ou seja, daquilo que vemos - as respostas para o sofrimento e o processo humano. A religião, portanto, nunca é resposta ou salvação, e considero inclusive o aspecto mais indecifrável de Bresson onde o próprio se encontra espiritualmente.

Se os finais de O Diabo, Provavelmente e O Dinheiro querem dizer qualquer coisa, é que se existe em Bresson a esperança por algo que valide o que se vive aqui, este algo também deve ser buscado em algo além da imagem.

Influente até os dias de hoje (First Reformed é praticamente uma refilmagem de O Diário de um Pároco), é difícil imaginar que seus filmes tenham “uso” para a maioria das audiências. Talvez haja veracidade na declaração de Tarkovsky que Bresson era, possivelmente, o único artista do Cinema. Mas para isso, é preciso rejeitar todo o resto.

Bresson o fez, e se não quisermos, ele deixava claro, é nossa culpa.

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