Crítica | A Mulher Rei
Um épico de guerra como há anos não se via.
“A Mulher Rei” é um filme capaz de criar diálogos com o Brasil e com o mundo de hoje de diversas maneiras pensando em diálogos culturais e históricos, a primeira camada é que se trata de uma excelente obra cinematográfica a moda antiga, com grandes cenários, figurinos, grandes cenas de lutas violentas e riscos muito altos como consequência de cada uma delas. O segundo ponto é o roteiro típico do gênero, há muitas intrigas e reviravoltas novelescas, romances e discussões sobre certo e errado, de maneira bem direta utilizando um tema seríssimo que engaja qualquer um: o comércio atlântico de escravizados no começo do Século 19 e suas consequências dentro dos grupos étnicos africanos. O terceiro, e talvez mais particular, ponto é justamente a partir desse tema central (tráfico de seres humanos na Costa da Mina), a ação central da película se dá em torno de um porto português, ou seja, aquelas pessoas que vemos escravizadas em “A Mulher Rei” seriam trazidas para o Brasil, há vários sinais disso em várias cenas: as pessoas que vemos em tela são as pessoas que construíram o nosso país.
“A Mulher Rei” é sobre uma menina Dahome chamada Nawi (Thuso Mbedu) que, ao constatar que não serviria para ser esposa, é dada pelo seu pai para o rei e inicia o treinamento das guerreiras Agojie, descritas como as melhores lutadoras da África, tropa real de mulheres do chefe da nação Dahome. As guerreiras são comandadas pela general Nanisca (Viola Davis), uma influente parte do conselho do rei Ghezo (John Boyega) que advoga para que sua nação pare de vender escravizados para os portugueses. Nawi navega as dificuldades impostas pelo treinamento enquanto é confrontada com suas atitudes teimosas frente a um grupo de guerreiras com histórias parecidas ou piores que as suas, em um ambiente em que homens não são permitidos. Ela também precisa lidar com sua paixão por Malik (Jordan Bolger), um brasileiro filho de um colono português com uma mulher Dahome escravizada no Brasil, ele é levado para o porto por Santo Ferreira (Hero Fiennes Tiffin), seu amigo e traficante de seres humanos. Enquanto isso os Dahome precisam mediar relações com o reino de Oyo, ao qual são subordinados, e com os portugueses, clientes dos seres humanos escravizados daquela parte do continente.
Dirigido por Gina Prince-Bythewood, “A Mulher Rei” é produzido como os grandes dramas épicos sempre devem ser, são grandes cenários, como o palácio do Rei em Dahome e a cidade portuária em que o comércio entre as nações africanas e europeias acontece. O filme foi rodado na África do Sul e conta com cenários naturais que enriquecem as cenas da trama, como a batalha entre Oyo e Dahome e a cena onde Malik e Nawi se conhecem, a fotografia também é excelente nas sequências de luta e nos treinos permitindo que o público se localize geograficamente em terrenos que tem regras de funcionamento próprios, nessas cenas a edição também colabora com o público, dando agilidade às ações das personagens e objetivamente criando o clima de violência desejado pela diretora. As coreografias tanto nas sequências de luta quanto nas de dança chamam atenção e recheiam o espetáculo visual de “A Mulher Rei”. Além de Davis (que deve ser indicada ao oscar) e Mbedu, destaco as ótimas performances de Lashana Lynch e Sheila Atim.
Como todo grande épico, esse é um filme que vai além da sua escala de produção, seus grandes temas, com grandes dilemas é o que carrega as duas horas e trinta de duração na tela. Nawi é uma jovem teimosa e, ao mesmo tempo que isso tenha garantido que seu pai não tenha conseguido arrumar nenhum marido para vendê-la, mas para seu treinamento ela precisa aprender a equilibrar suas forte personalidade com as características pragmáticas exigidas em um exército. Já Nanisca reencontra fantasmas do passado ao conhecer o novo general Oyo, Oba Ade (Jimmy Odukoya), e isso a faz relembrar alguns elementos da sua vida que podem colocá-la em risco, além disso a personagem se encontra num emaranhado político dentro da nação Dahome ao tentar convencer o rei pelo fim da escravização prática pelo seu povo, enquanto o principal objetivo dele é o fim da submissão aos Oyo. Para completar os temas fundamentais do gênero, a história de amor entre Nawi e Malik se mostra complexa, uma vez que as guerreiras Agojie são proibidas de terem relacionamentos com qualquer homem, e ele, por sua vez, ocupa uma posição de conflito interno ao se ver no meio das relações de comércio e escravidão entre seu amigo português e o povo de Nawi.
A comparação com “Pantera Negra” (2018) da Marvel não é, de maneira alguma, criativa, além de serem dois épicos de guerra, são filmes que surgem em um momento de reavaliação das pautas prioritárias da sociedade que passa a fazer uma releitura da África em várias esferas. Além disso, os dois filmes se utilizam de diversos africanismos (validados em muita pesquisa) para construir narrativas visuais espetaculares que ajudam a atualizar e resgatar diversos elementos constituidores dos países do continente americano especialmente. Mas, se o filme da franquia de super-herói esbarra em uma noção liberalizante de representatividade por representatividade, se abstendo de procurar uma motivação política para sua história (inclusive tentando negá-la), “A Mulher Rei” se esforça para ser um épico com debate histórico-cultural de extrema relevância no mundo, e, de maneira particular, traz o Brasil para essa narrativa.
De cara, aborda a discussão sobre escravidão na África e seu papel econômico para as nações europeias até o Século 19 (o filme se passa em 1823). aliás, o tráfico de seres humanos é o centro de todos os conflitos do longa-metragem, seja a guerra entre Oyo e Dahome, os conflitos dentro das nações ou as influências dos personagens europeus nesse sistema, apoiando os conflitos para que mais pessoas sejam capturadas e vendidas. A sequência final da película é um momento de libertação que arrepia qualquer um e posiciona o mal, dentro da trama (a final de contas é um épico) para um espaço ideológico bastante mais correspondente com a realidade. Além disso, o roteiro complexifica a narrativa da escravidão em relação ao continente africano, mostrando que sim, havia casos em que as nações africanas escravizavam, inclusive para vender aos europeus, mas deixa bastante nítido que esse sistema era bancado pelos colonos, no filme representado por portugueses, e que esses povos teriam outras maneiras de sobreviver se não fosse isso.
O último ponto relevante, numa esfera mais brasileira, é que tudo o que eu disse é amplificado ao pensarmos no nosso país, pois estamos em tela, o tempo todo, vendo as pessoas que formaram o Brasil, seja na figura do mercador de escravizados português, na figura de Malik como o fruto do estupro, que muitos de nós também somos, do colonizador sobre os colonizados, o rapaz vai a Dahome em busca justamente da sua origem. Mas também entre os Dahome e os Oyo vemos povos que foram trazidos para cá, com costumes culinários, culturais e religiosos que foram trazidos para o Brasil, como as danças, o azeite de dendê mostrados em diversos momentos, outro ponto que aparece no filme é o culto a Ogum de Nawi em cena com a cruz cristã de Malik. Nesse aspecto, o filme colocar a língua portuguesa para os colonos é importante, mesmo que deixe os Dahome e Oyo falando o inglês, o que é compreensível, mas talvez causa um pequeno incomodo.
O filme até soa brega em alguns momentos, mas essa é uma das melhores virtudes de um bom épico, todas os diálogos e todas as cenas tem consequências altíssimas sejam pessoais ou coletivas, todos os conflitos são urgentes e as relações entre cada uma das personagens é bastante trabalhada até chegarmos no ponto em que a tensão escala ao máximo. “A Mulher Rei” lembra os grandes épicos de antigamente usando estilo e narrativas grandiosos, como quase nenhum filme de Hollywood chega perto de atingir atualmente, curiosamente traz para o centro da conversa assuntos e personagens que antigamente jamais passariam perto de protagonizar esse tipo de história.