Crítica | O Matador de Ovelhas
REALIDADE POÉTICA
Filme de Charles Burnett aconchega na periferia do neo-realismo
Na jornada pelos 250 filmes da Sight and Sound, no ano em que a pesquisa se atualiza pela sétima vez, se encontram muitos filmes que não é todo dia que o ser humano tem condições de assistir.
Em uma determinada sequência temos Cassavetes, Béla Tarr, Bresson, Pasolini, Melville e Mizoguchi (com um bem apropriado Duck Soup no meio) que configuram como um teste de empatia, humanidade e resistência emocional. Logo, um filme com o título dessa tese de mestrado (!) de Charles Burnett não só assusta, mas faz questionar o ser se não deveria logo pular para um À Beira do Abismo (que, apesar do nome, é uma delícia).
E foi o que fiz! Mas já um dia depois emprestei minhas atenções para os curtos 80 minutos de O Matador de Ovelhas, e estes se provaram uns dos mais reconfortantes de toda a lista.
Não que ver o dia a dia de uma comunidade negra no sul de Los Angeles, filmado ao estilo de um Neo-realismo que mais lembra um Cinema Novo, seja exatamente algo de fácil investimento emocional, mas Burnett encontra em seu primeiro filme um equilíbrio perfeito entre a poesia imagética e a dureza daquilo que filma.
Poucos os filmes que conciliam tão bem cenas documentais e outras mais estilizadas, com um momento especialmente brilhante onde uma mãe se arruma e uma menina ouve música, marcado pela montagem que conecta as duas e por um senso de cotidiano bem diferente, mas igualmente pertencente ao que faz Ozu com o Japão. Em outra cena brilhante, dessa vez em plano longo, um casal dança e os olhares e toques falam tudo que precisa ser dito: os corpos rodam, as sombras escondem e revelam, a música segue.
“Porque vocês fazem coisas que não fazem sentido?”, pergunta um pai para uma dupla de irmãos brigando por bobagem. Um foco duplo que evoca o poder da câmera inabalável de Mizoguchi (que precedeu Cidadão Kane por cinco anos com seu Elegia de Osaka). Os destroços que configuram o mundo daqueles personagens, os quais Rossellini ensinou a transformar em Cinema. Uma realidade devidamente revelada, mas também delicadamente decupada.
Sendo uma tese de mestrado, O Matador de Ovelhas é também uma aula, que mesmo didática aqui e ali, absorve suas referências e as usa de maneira justa em sua mise-en-scène. Diferente de filmes recentes envolvendo protagonistas afro-americanos, é um filme que não abusa de contrastes, diminuindo a dureza das formas e criando um senso de pertencimento muito forte. Aquelas pessoas, o lugar onde vivem, a sociedade que as marginaliza. Imagem como documento, relato e, talvez mais do que tudo, expressão individual perante um todo profundamente conectado.
Talvez sua cena final exemplifique a grandeza de sua forma: cortes desajeitados para maquiar não atrizes em uma encenação simples e evidente, uma mulher fazendo o contorno da barriga do bebê que espera, e então um corte exato e dilacerante para o destino de todas as tais ovelhas. O milagre da vida, e o matadouro que a espera.