Crítica | Conto de Inverno

A MAGIA DO ACASO

Em filme sobre a mesmice do inverno, Rohmer usa o acaso como salvação


Poucos diretores são tão interessantes de se estudar como Éric Rohmer.

Prolífico, foi ativo por cinco décadas até pouco antes de sua morte em 2010 (aos 90 anos) e, por separar os próprios filmes em séries específicas, oferece maneiras guiadas de conhecer sua filmografia, além de ter feito pérolas isoladas para serem encontradas aqui e ali. O que preenche uma curiosidade macro e micro, permitindo um senso de pertencimento e de descoberta ao percorrer seu Cinema.

Algo potencializado pelo fato de que, apesar de ser um dos principais nomes da Nouvelle Vague, sua fama mundial certamente está prateleiras abaixo dos Godards, Truffauts e Vardas da vida - a cargo de comparação, nenhum de seus filmes figuram entre os 250 da Sight and Sound -, mesmo que sua obra em nada deva para nenhum de seus contemporâneos (com a possível exceção de Godard, mas daí estamos falando de uma entidade rara). Para muitos Rohmer pode ser um cineasta para chamar de seu, ainda mais quando seus filmes oferecem a si próprios como experiencias singulares e relacionáveis.

Conto de Inverno traz algumas curiosidades. A montagem que dá início ao filme é, possivelmente, uma das sequências mais românticas e afetuosas de sua carreira. O filme que se segue, por outro lado, é uma versão mundana e sem vida de Duas Vidas (e de seu brilhante remake: Tarde Demais Para Esquecer), onde o mistério do acaso e o ainda não advento dos celulares possibilita o cenário proposto: um casal de jovens apaixonados que trocam endereços, mas por um erro de escrita passam anos sem se encontrar.

UM REALISMO DE AGUARDO

Em seu artigo, a vaidade da pintura, Rohmer disserta sobre a natureza do Cinema. Algo que fez como crítico, pensador e, obviamente, como cineasta. Em uma passagem que gosto muito, ele diz:

Assim, o objetivo primeiro da arte é o de reproduzir, não o objeto, sem dúvida, mas sua beleza; o que chamamos de realismo não é senão uma busca mais escrupulosa dessa beleza

Há pouca beleza a ser encontrada na imagem granulada e nos fundos estourados pelo cinzento do céu de Conto de Inverno. Ao contrário da beleza idílica de seu Conto de Verão, este é um filme urbano e mais claustrofóbico que o de costume. Costumeiramente a protagonista é enquadrada sozinha, no meio da tela, mas sem nunca preenchê-la, e quando passeia pelas cidades que alterna o que vemos não é o despretensioso passar do dia a dia, mas os prédios de cor homogênea que tornam a existência uma jornada por um labirinto.

Não que haja muito mistério em tudo que ocorre. Se aquele verão é marcante, este inverno é comum. Um plano de vida fadado ao fracasso, gestos de afeto sem carinho verdadeiro (Rohmer conseguia extrair magia de atores desconhecidos), um dia a dia cansado em um lugar de cartão postal visto de perto - logo, perdendo seu esplendor. Algumas coisas funcionam, outras não. Pois, vida.

Mas se escrevi como Channel Orange e Conto de Verão dividem uma alma, não acho que Blonde seja o equivalente à Conto de Inverno (Moonlight, lançado no mesmo ano, leva o posto). Não que não haja uma semelhança narrativa e até de estado de espírito, mas diferente de outras protagonistas de Rohmer, Félicie (outro diretor não seria perdoado por dar esse nome a uma personagem que busca felicidade) surge mais como uma donzela a ser resgatada - e não violada moralmente, na cabeça de seus protagonistas homens.

O que não necessariamente é algo que mereça escárnio, pois assim como Rohmer, ela apenas busca pela beleza da vida, a qual encontrou em seu respectivo Verão, perdeu no Outono e espera reencontrar para a Primavera. Como um presente de Natal, de um acaso que tira e devolve em forma de milagre, Charles volta a sua vida e Conto de Inverno termina como começa: fugindo do realismo automático que se instala na vida quando não temos nela alguém que mostre o quão mágica pode ser.

O que mostra também toda a dialética do Cinema de Rohmer. Um clássico romântico que inunda suas historinhas de amor com pensamentos filosóficos modernos. Um apaixonado pelo Cinema que troca a implacabilidade majestosa de um trem pela frivolidade passageira de um ônibus. Um homem que se recusa a abandonar a única certeza que atingiu na busca pelo seu ideal de Cinema: de que a arte que escolheu proporciona sensações que nos fazem fugir, mesmo que por breves momentos, de um cotidiano que nos engole por completo.

8.6

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