Mês do Orgulho | O Menino e o Vento

Historicamente marcado por causa da revolução de Stonewall, no dia 28 de junho de 1969, uma rebelião de resistência da comunidade LGBTQIA+ presente no bar de Manhattan, o mês de Junho é celebrado como o mês do orgulho. No Brasil, ainda vivemos em um cenário hostil para pessoas LGBTQIA+. O país segue no topo do ranking de países que mais matam pessoas desta comunidade e tem como presidente alguém que segura, arrogantemente, a bandeira da LGBTfobia. Por esses e outros motivos, durante o mês do orgulho, toda segunda e sexta o Outra Hora abordará sobre filmes, séries e música inseridos na cultura LGBTQIA+.

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O caminho do movimento LGBTQIA+ no Brasil é tortuoso. É cheio de exílios, tortura, assassinatos, imparcialidade política e perseguição.

É cheio de homens gays como Jean Wyllys que precisam sair do país para ter alguma chance de não ser assassinado, é cheio de perseguições políticas e de ativismo com homens e mulheres trans como João Nery e Indianara Ribeiro, de crimes de ódio diários como do assassinato de Natasha Lobato e de crimes políticos com os que lutam por nós, como no caso de Marielle Franco.

Todos esses lutavam ou continuam lutando por direitos civis para a comunidade LGBTQIA+ em um país que ainda é topo no ranking de assassinatos desta população. Não era diferente dentro da classe artística. Nas pinturas e ilustrações, os corpos cis gays e lésbicos e corpos trans são tratados desde o século XX de forma marginalizada pelas capitais e interior do Brasil. O pouco documentado são pinturas de travestis, transformistas e “crianças viadas”. Para além disso, os diários de cônsules e outras autoridades europeias retratam o Brasil homossexual no ínicio do século XX como um paraíso. Os homens gays também faziam parte do retrato que é sexualização dos corpos latinos.

Já nos anos 50, performistas começam a quebrar algumas barreiras da mídia nacional e conseguem certa relevância a ponto de não somente ocupar o espaço recreativo e vexatório, como discutir sobre a LGBTfobia em grandes canais. Exemplo disso é Ivaná, famosa transformista brasileira que ganhava espaço internacionalmente e em revistas nacionais, como a Manchete. No final dos anos 60, pouco após o início do regime militar, inicia-se uma articulação de presença da comunidade LGBTQIA+. Esses corpos, agora caçados por um regime LGBTfóbico, torturador e assassino, mais do que nunca mostraram sua coragem e luta, lançando, por exemplo, jornais gays e lésbicos como o Lampião e a Femme.

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É neste cenário que se encontra o primeiro longa-metragem com relações homoafetivas do cinema brasileiro. “O Menino e o Vento”, dirigido pelo cineasta argentino Carlos Hugo Christensen, foi lançado em 1967. Em preto e branco e ambientado no interior de Minas Gerais, a produção conta a estória do engenheiro José Roberto Nery, um homem apaixonado pelo vento e que vive pelo Brasil a procura das mais fortes e relevadoras ventanias. Ao se encontrar na cidade de Bela Vista, conhece o jovem Zeca da Curva, um menino que, tanto quanto José, é apaixonado pelo vento e quer apresentar a natureza do local para o homem já bem-sucedido. A relação dos dois dura 28 dias, até que o menino some misteriosamente, e a cidade pede justiça e julgamento de José Roberto Nery, o único homem de fora da cidade que tinha uma relação próxima com o menino. É nessa situação que o filme se inicia: José voltando à cidade para seu julgamento, meio a linchamento e ódio da comunidade com o homem.

Vou contar tudo tal como se deu. Desde o momento que cheguei nesta cidade. [...] O que vou narrar a vossa excelência senhor Juiz, talvez nem entrasse no processo se ele fosse orientado por um profissional. Querem me apontar como um anormal, e por isso me condenar. E evidentemente, olhando para todos que me cercam no meu dia-a-dia... Aqui mesmo, se todos que aqui se acham, são seres normais, então eu sou um anormal. Não digo como ofensa, digo como constatação. Porque... eu não me sinto como todos.
— José Roberto Nery

O filme mostra, em 1 hora e 40 minutos, a poesia de uma relação de liberdade. A gratidão de se conhecer alguém que te soma e te mostra o caminho para sua individualidade, e não te aprisiona. A sexualidade, por mais que tratada sutilmente, é a porta para todos os movimentos da obra, inclusive o próprio vento. José e Zeca não só representam a luta de se viver em um país que não há justiça (e sim, somente a parcialidade e o julgamento moral com crenças cristãs), como constroem folclore, vivem a fantasia de mitos típicos brasileiros. São conto de cordel em Minas Gerais, e desafiam a tradição preconceituosa do interior mineiro.

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O romance, que começa em frente à igreja e termina na natureza, mostra também a solidão de ser LGBT. Não há ninguém de confiança, e ambos sabem disso. É visível que a cumplicidade que existe somente é construída por causa da facilidade de se entender próximo de quem se apaixona e te alavanca meio a tanta marginalização. A revolta da cidade não é por ter desaparecido alguém querido, e sim, de se ver no romance com José a destruição da imagem de Zeca da Curva com um menino prodígio.

Existem similaridades com “Diferentes dos Outros”, o primeiro filme gay da história do cinema. A chantagem, o amor de discípulo e mestre e principalmente o quão moderno um filme consegue ser mesmo após mais de 50 anos de lançamento. O Brasil continua perseguindo, julgando, prendendo e assassinando o amor e desejo não heteronormativo, o não monogâmico, o amor de corpos trans.

Estou me esforçando, senhor Juiz, de conservar o jeito especial de falar do menino, mas... vejo que não é possível. [...] Entre mim e ele, se estabeleceu uma curiosa camaradagem, nascida de uma paixão comum: o vento. Lutei o que pude para resistir, mas sei hoje que não posso viver mais sem o vento. Assim como tantos não podem viver sem o sol ou longe do mar. E Zeca era o próprio vento.
— José Roberto Nery
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Mesmo com alguns erros de roteiro e o cuidado demasiado para se tratar de um romance gay, “O Menino e o Vento” é histórico e é passo para entendermos a homofobia no Brasil, mas, principalmente, para entender nossa coragem. Foi durante a ditadura que o movimento se impôs e nos mostrou nas telas pela primeira vez. É nossa vez agora de nos impormos e lutarmos diante tamanha perseguição e tamanho fascismo.

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