Crítica | Loving

Nestes últimos tempos, o racismo se tornou um dos assuntos preferidos de grandes estúdios para garantir indicações e prêmios nas temporadas de final e início de ano.

Apenas recentemente, tivemos obras como "Histórias Cruzadas”, “Green Book”, “Um Sonho Possível” e “Estrelas Além do Tempo” que mais do que hiper-faturaram em estatuetas. O que todas as quatro tem em comum, além da mediocridade? Todas foram dirigidas por homens brancos.

E se não fica claro apenas ao citar os filmes, talvez seja interessante que notem como em todas estas os brancos bonzinhos são o motivo de os pobres negros conseguirem vencer as barreiras do racismo e caso você tenha saído da sessão com um sentimento de leveza por simpatizar com a causa, saiba que foi terrivelmente manipulado. De certa forma, e como homem branco, acredito que filmes que retratam o racismo devem nos deixar com dores físicas e emocionais, mesmo que não deixem de soar esperançosos e unificadores. Quando isso acontece, você encontra obras recentes como “Selma”, “12 Anos de Escravidão”, “Moonlight”, “Corra” e toda a filmografia de Spike Lee.

Isso torna este filme, do também branco Jeff Nichols, uma espécie de milagre envolvendo tema e forma. “Loving” é um lindo romance-drama-biográfico que consegue suceder em todos estes gêneros, e o fazer nos últimos dois não é fácil.

Também escrito por Nichols e baseado no livro de mesmo nome de Nancy Buirski - que, por sua vez, fora baseada na história real do casamento inter-racial entre Richard e Mildred Loving quando, em 1967, enfrentaram o estado da Virginia para terem o direito de permanecerem casados -, talvez o maior motivo de a obra jamais descarrilhar para o melodrama caça-níqueis seja o fato de que Nichols foca não nos fatos históricos envolvendo o caso, mas no casal que o protagonizou e como o amor que nutriam um pelo outro tornou todos aqueles anos de perjúrio, ao menos, suportáveis.

Nesse sentido, por mais que a direção não ostente em estilo, ela se mostra necessariamente compreensível e paciente, construindo a relação de ambos em torno das interpretações da dupla de estrelas. Estas, auxiliadas por um impecável trabalho de maquiagem que faz o possível para deixá-los cansados e envelhecidos pelo stress, ao passo que o design de produção reconstrói a época com um contraponto notável entre a cidade estreita, que parece exprimir a vida da família ao apartamento apertado, e o campo aberto, repleto de casas espaçosas e um ritmo no cotidiano que parece permitir que aquelas pessoas vivam o resto de suas vidas sem ter de se sofrer com a opressão do mundo afora. Nichols, inclusive, se utiliza bem da própria profissão de Richard, e cada vez que o mesmo constrói uma nova casa, percebemos como tudo que tudo que ele e a esposa procuram é um lugar para poderem viver em paz.

A fotografia de Adam Stone reforça esse sentimento criando uma dicotomia ao usar uma paleta de cores achocolatada, remetendo a uma fotografia envelhecida, quando em cenas caseiras e aconchegantes, e contrapondo-a com uma esterilização que toma conta de edifícios e estabelecimentos, especialmente as delegacias e tribunais. E percebam como em boa parte das cenas internas as luzes estão desligadas, talvez um reflexo de o casal saber que quanto menos atenção chamarem, melhor. Logo na primeira cena podemos observar este efeito: ambos estão sentados a varanda, em meio a escuridão do campo, planos fechados em seus rostos, quando uma visivelmente preocupada Mildred revela algo para Richard que responde com seu sorriso mais sincero. Por maior a felicidade que ambos estejam sentindo - ele por descobrir, ela por perceber sua reação -, é possível perceber que a partir dali já conseguem enxergar tudo que terão pela frente. Sem a necessidade de palavras, o filme nos comunica a mesma coisa.

Uma cena. É exatamente isto que leva para que comecemos a torcer pela felicidade daqueles personagens.

Esta vitória narrativa se provaria essencial, sendo que o longa se beneficiaria de alguns minutos a menos de exibição e até de uma trilha sonora menos óbvia - por mais que jamais deixe de ser eficaz ou se torne auto-congratulatória. Em diversos momentos parece que vamos testemunhar um conflito que nunca chega, e apesar de que o recurso seja utilizado em demasia, ao não se entregar a este famigerado cliché do gênero que teria o intuito de nos provocar pena, Nichols mostra que não há conflito maior que aquele que o racismo institucional provoca. A paranoia de Richard e o olhar preocupado, deslocado de Mildred, são apenas reflexos disso.

Graças a interpretações criminosamente esnobadas de Joel Edgerton e Ruth Negga, o roteiro ganha ainda mais vida por não ceder a tentação de nos fazer questionar se não seria melhor que se separassem. Em uma cena, inclusive, Richard é questionado sobre o porquê de seguir com a esposa sendo que sua vida seria mais fácil sem ela. Ele ri. Na próxima, ele chega em casa levemente bêbado, mas ao invés de iniciar uma discussão, ele dirige à amada uma frase que dói por sabermos que, por mais difícil que seja, ele realmente acredita no que significa: Eu posso cuidar de você. Frase que se mostra ainda mais comovente quando vemos ele deitado no colo dela - em uma ponta pequena, mas simbólica de Michael Shannon -, sugerindo que talvez precise do mesmo.

critica loving

Dono de um olhar cabisbaixo, temendo os efeitos que qualquer valentia podem trazer a sua família, Edgerton compõe Richard como um homem grosso por fora, mas extremamente afetuoso por dentro que complementa a Mildred de Negga, uma mulher doce e de voz mansa, mas que se mostra determinada em tomar as rédeas do próprio destino, em um arco narrativo que se completa de maneira gratificante. Não são os advogados, nem o próprio Richard, que iniciam a luta contra o sistema - o que, é claro, seria mais um exemplo do “salvador branco” que comentei lá em cima - , mas uma mãe afetuosa e uma mulher exaurida pela saudade de casa.

Belo do início ao fim e tocante em diversos momentos, “Loving” é, acima de tudo, a história de um amor tão forte que foi capaz de mudar um país inteiro, contada da perspectiva das pessoas que ele viveram. Não fosse este seu verdadeiro sobrenome - uma reconfortante ironia -, de nada mal seria se o título do longa fosse aquilo que Richard e Mildred buscaram por toda sua vida juntos: um lar.

8.6

Anterior
Anterior

Mês do Orgulho | O Menino e o Vento

Próximo
Próximo

Filmes Para Toda Hora | Encontros e Desencontros