Mês do Orgulho | Diferente dos Outros

Historicamente marcado por causa da revolução de Stonewall, no dia 28 de junho de 1969, uma rebelião de resistência da comunidade LGBTQIA+ presente no bar de Manhattan, o mês de Junho é celebrado como o mês do orgulho. No Brasil, ainda vivemos em um cenário hostil para pessoas LGBTQIA+. O país segue no topo do ranking de países que mais matam pessoas desta comunidade e tem como presidente alguém que segura, arrogantemente, a bandeira da LGBTfobia. Por esses e outros motivos, durante o mês do orgulho, toda segunda e sexta o Outra Hora abordará sobre filmes, séries e música inseridos na cultura LGBTQIA+.

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O ano é 1871. Meses depois da unificação da Alemanha, é promulgada a medida conhecida como “Parágrafo 175”, um Código Criminal Germânico que considerava relações homoafetivas um crime, “um vício antinatural dos homens”. A criminalização da homossexualidade por meio deste código ficou em vigor até 1994, tendo o período do regime nazista o de maior controle do código.

Anos depois da promulgação do Parágrafo 175, já na década de 1900, se iniciaram grandes movimentações e articulações de um movimento civil, inicialmente gay, lésbico e trans, em Vienna e Berlim. Os médicos Eugen Steinach e Magnus Hirschfeld, o publicitário Friedrich Raszuweit e vários artistas dentro da comunidade, como Anita Berber, foram essenciais na formação dos primeiros movimentos documentadas do movimento civil LGBTQIA+.

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É nesse contexto que se encontra “Diferente dos Outros”, o primeiro filme com foco principal em uma relação homoafetiva. Lançado em 1919, o filme dirigido por Richard Oswald era o início de um projeto de uma série de filmes explicativos com a participação especial de vários sexólogos, e foco principal na educação sexual. Isso foi possível porque durante a guerra e a censura foi temporariamente suspensa em toda a mídia alemã, o que abriu oportunidades de produções que seriam barrados pelo parágrafo 175. Os filmes eram comercialmente um sucesso na Alemanha Moderna, o que deu força para a volta da censura e fez o filme ser proibido em 1920 e sobreviver para a história apenas em uma versão fragmentada.

Em 50 minutos, o filme mudo e preto e branco, apresenta a paixão de Paul Körner, um virtuoso violinista, e de Kurt Sivers, seu recém estudante completamente apaixonado por sua genialidade com a música. É mais uma de várias obras que retratam o amor grego, hímeros, entre mestre e discípulo, como por exemplo no livro “O Banquete”, de Platão. A paixão dos dois cresce em meio a suicídios de homens gays e a demonização de grandes nomes da história que admiram. É logo no início que o filme faz menção de artistas, monarcas e estudiosos abertamente gays que foram perseguidos por sua orientação sexual, como Tchaikovsky, Leonardo da Vinci, Oscar Wilde, Rei Friedrich II da Prússia e Rei Ludwig II da Bavaria.

A perseguição aos homossexuais pertence ao mesmo triste capítulo da história humana no qual se escreve sobre a perseguição a hereges e bruxas. Durante 1.500 anos, eles são aniquilados pelo fogo e pela espada.
— Magnus Hirschfeld
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Como um retrato do que trata a história do cinema LGBT em grande parte de suas produções, a trama trata a perseguição familiar e da sociedade pelo casal que Kurt e Paul se tornam. Estão ao lado deles apenas os estudiosos e os outros casais homoafetivos que vivem em suas festas. São cenas estonteantes de pensar em uma produção de 101 anos atrás. Muitos homens dançando colados com homens, e muitas mulheres dançando coladas em mulheres, frente ao casal principal, que trocam carícias revolucionárias, mesmo que tímidas para nosso olhar de 2020.

Cinematograficamente o filme é impecável. Com a atuação marcante de Conrad Veidt, o personagem Paul é sensível e de fácil identificação pessoal: as dores são palpáveis e sua expressividade teatral é complexamente sofrida. O roteiro é engajador, ágil e fluído e dificilmente construído com a dinamicidade de filmes cores e som. É intrigante, desesperador e reconfortante viver a paixão e a perseguição. É preciso saber o que vai acontecer na próxima cena como nos filmes mais envolventes e ressonantes de nossos tempos.

Além dos infortúnios da homofobia em suas vidas por dentre a população, Paul se torna alvo de chantagens de um oportunista que quer seu dinheiro, e ameaça denunciá-lo como criminoso perante o parágrafo 175. É mais um retrato estarrecedor dos medos de uma pessoa LGBTQIA+ frente à tamanha vulnerabilidade, enclausurado em uma imagem e uma vivência heteronormativa.

101 anos após o lançamento, “Diferente dos Outros” continua sendo um filme atual. Mesmo que Hirschfeld, no início do século passado, tenha mostrado 43 milhões de possíveis tipos sexuais do ser humano, os medos, as dores, a paixão e os olhares são os mesmos. Progredimos ainda rechaçados, assassinados e perseguidos. Andamos de 1919 para cada vez mais produções com nossos corpos, mentes e emoções sendo expostos nas telas, mas ainda sendo perseguidos, com governos que nos censuram e querem que nossa arte e nossa vida sejam escondidas e cada vez mais marginalizadas.

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Cabe a nós, LGBTQIA+ sobreviventes em 2020, nos armarmos de gratidão e orgulho por passos históricos feitos por Hirschfeld, Oswald, Anita Berber e, os personagens, Paul e Kurt. São estes legados que abrem margem para todas as outras obras que podemos tratar aqui nos próximos posts. Também cabe a nós nos posicionarmos cada vez mais para criar visibilidade e apoio para a arte da comunidade.

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