Crítica | Estou Pensando Em Acabar com Tudo, da Netflix

critica estou pensando em acabar com tudo

Cada vez mais a Netflix me faz repensar seu valor para o cinema…

Charlie Kaufman é meu roteirista favorito.

Sem mais e sem comparações, de “Quero Ser John Malkovich” à “Adaptação” passando por “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e em seu primeiro trabalho como diretor no meu quarto filme favorito de todos os tempos: “Synedoche, New York”, nenhum roteirista conseguiu deixar minha cabeça borbulhando de ideias, sentimentos e conceitos tanto como Kaufman, que aqui, em apenas seu terceiro filme como diretor (o ótimo “Anomalisa” foi o segundo) me fez pensar, novamente, em além do que está escrito e sendo mostrado na minha frente.

A verdade é que a Netflix cada vez mais oferece a plataforma para diretores lançarem filmes que, talvez, as grandes produtoras não vejam mais sentido em mandar para as massas, acostumadas e sedentas pela mesmice. Marvel, DC, sagas, reboots, etc. Junte todos este em um liquidificador e coloque fermento, o bolo não chegaria na metade daquele que é servido em determinado momento deste intrigante “Estou Pensando Em Acabar com Tudo”. Baseado no livro de Iain Reid, aqui vemos a jornada de Jake que leva sua namorada para conhecer os pais, na fazenda onde cresceu quando pequeno.

Logo de cara você pode lembrar de “Corra!”, de Jordan Peele (e a roupa da jovem inclusive relembra as vibes Freddy Kruger de Rose), mas logo um emaranhado de outros filmes, livros, peças, e talvez obras que apenas um louco como Kaufman conheça, começam a passar pela tela. “A Visita” de Shyamalan, “O Homem Duplicado” de Villeneuve, “Hereditário” de Ari Aster (Toni Collette, inclusive, está aqui), “Martha Marcy May Marlene” de Sean Durkin, “A Viagem de Chihiro” de Miyazaki, “Waking Life” de Linklater e, possivelmente, toda a filmografia do realizador.

Em um filme como esse eu julgaria não suficiente comentar apenas seus valores técnicos, pois como é de praxe de Kaufman apenas uma visita não é o suficiente para se captar tudo que nos é passado, então a seguir falo sobre se você deve conferir o longa e, mais abaixo, com spoilers, sobre o que é o filme e o porquê de você TER de assistí-lo - o que, é claro, não faz sentido se não tiver o assistido ainda, então não perca tempo e aproveite a quarentena.

Adotando a técnica de Aronofsky em “Mãe” (eu não estou exagerando, Kaufman é como o Majin Buu após absorver todos os personagens de Dragon Ball), o diretor por vezes centraliza a jovem interpretada por Jessie Buckley na misé en scene, fazendo a câmera girar ao redor de si, encolhe e extende os cômodos a sua volta e a tempestade de neve, propositalmente artificial no fundo, por vezes nos impede de enxergar qualquer outra coisa e isso gera tanto empatia como a mesma sensação que temos com Chris em “Corra!”, de enxergamos tudo aquilo pelos olhos da jovem. Mas Kaufman vai além e adota uma sequência no início do filme onde alterna diversas tomadas de cada ambiente e objeto que, a primeira vista, são apenas aquilo, mas tem seus significados modificados e transformados ao longo da narrativa. Por isso e, sem perceber, parece que já conhecemos aquele lugar, pois quando os dois chegam na fazenda há sim antecipação pelo que há de ocorrer, mas a sensação de deja vu que a jovem sente é a mesma que nós, o que torna tudo ainda mais enervante.

E preciso admitir que, um confesso cagão em filmes de terror, fiquei apavorado em diversos momentos, pois qualquer conhecedor da filmografia de Kaufman sabe que algo de ruim está para acontecer - e isso mesmo sem ele tendo feito qualquer filme de terror anteriormente, para mostrar que até nisso a sensação de deja vu é inexplicável. Mas assim que captei o que julgo ser seu principal objetivo, o medo baixou e deu lugar ao fascínio, caminhando uma linha tênue entre este e a presunção. Não seria tudo metafórico demais? Os diálogos literais demais? A densidade, rasa demais? Apesar de jamais ficar desengajado, mesmo para um fã absoluto do cineasta o filme se provou difícil, então imaginem para o público casual.

Como comentei antes, toda a filmografia do diretor é evocada aqui, pois assim como em “Malkovich” e “Synedoche” (e talvez “Anomalisa” de maneira reversa e “Adaptação” de maneira filosófica) a personagem de Jessie Buckley é muitas coisas: uma poetiza, uma escritora, uma física. Ela é feliz, triste, melancólica, profunda, talvez rasa. A impressão final é que vemos uma jovem talentosa, desconfortável com a situação em que se encontra, mas que, de certa forma, nunca chegamos a conhecer de verdade, mesmo que ela olhe para tela em determinado momento, como que falando a todos nós os pensamentos que deixa escapar. Afinal como poderíamos, se quando a mesma tenta se olhar no espelho este está quebrado?

Já Jake, misterioso por natureza graças à performance digna de Oscar de Jesse Plemons, parece bruto no exterior, mas profundo e inteligente no interior, os mesmos exterior e interior que confundem seu pai (David Thewlis, hilário e perturbador na mesma medida) quanto às aptidões artísticas da moça, que pinta o que vê, requerindo a outros que entrem em sua perspectiva para sentir as mesmas emoções. Já a mãe, interpretada pela sempre magnífica Collette, adora a namorada do filho que, em sua presença, se comporta como uma criança envergonhada. Claramente ressentido, ver o amor dele pelos pais não deixa de ser admirável, como a jovem aponta - e, novamente, nós também.

Caso você tenha visto o filme, talvez alguns pequenos pontos dos parágrafos acima tenham sido o suficiente para entender aonde quero chegar e, se este for o caso, a seguir começo a sessão “Desvendando Estou Pensando Em Acabar com Tudo”:

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Não li o livro de Reid, mas li sobre e percebi que Kaufman mudou alguns pontos da trama, incluindo a reviravolta final, a qual parecia convencional e auto-explicativa demais para seu gosto. Nela, descobrimos que a jovem, que tem vários nomes durante o livro e filme, não passava de uma menina que Jake não tinha tido coragem de conversar com e todos os acontecimentos eram fruto de sua imaginação (por isso a troca de nomes). Em ambas as obras isso não fica explicito, pois vemos as coisas a partir do ponto de vista da jovem, e não de Jake, e isso jamais muda no filme (diferentemente do livro).

No final do livro se descobre que tudo vinha da imaginação de Jake, o zelador da escola, que havia morrido e deixado cadernos com todos estes acontecimentos escritos. Mas, no filme, vemos uma sequência surreal onde bailarinos ensaiam a história que termina em uma apresentação de Jake para um auditório logo após ele receber um prêmio Nobel.

Dois movimentos durante a sequência de dança chamaram a minha atenção e, dentro das infinitas possibilidades de se interpretar toda a narrativa, são com eles que parto para tentar explicar o que acontece:

Em meio à dança, a bailarina, vestida da moça, fecha duas portas de armário abertas, causando um barulho alto e que atrapalha o desenrolar sonoro e visual da apresentação por breves segundos. Na hora, pensei em uma frase que não sei se já li antes: para encontrar a paz, é preciso recorrer ao caos. E, de certa forma, o filme é sobre isso. Também.

Afinal, se excluirmos o fato de que provavelmente tudo que acontece se passa na mente de Jake, pois todos os indicativos levam a isso, ainda assistimos uma história sobre separação e descontentamento da parte da moça, que passa o longa inteiro tentando comunicar ao namorado que está “pensando em acabar com tudo”, mas sempre que o vai dizer, ele a interrompe - ele ouve seus pensamentos, pois ela também é ele. Ela jamais quis visitar seus pais, e ele sabe disso e, em sua mente conturbada, projeta a pior versão possível do encontro, mas reluta em achar que a própria desistiria dele por isso, encarando a visita com naturalidade, pois, na mente de Jake, ela é a garota perfeita. Em um de seus muitos monólogos, a jovem diz ser como o tempo passando pelo namorado, e logo vemos isso acontecendo literalmente, sendo que ela vê seus pais rejuvenescerem e envelhecerem sem estranhar, afinal, ela é ele, e ele já viu tudo isso.

Logo, tendo a achar que é um filme sobre o tempo, sobre as memórias de Jake, o zelador, sobre os sonhos que não atingiu, sobre as meninas que riam dele (e que reaparecem na loja de sorvetes) e sobre a outra menina, com machucados na pele, que parece uma projeção dele próprio (sua mão mostra um machucado quando ele a estica para pegar o sorvete). Em todos estes momentos Jake parece uma criança, envergonhada, com medo, contida, traumatizada, exceto quando está com a jovem, que o enxerga como um homem misterioso, inteligente, confiante.

Tudo que vemos é Jake, mas Jake significa muito mais do que isso. “As vezes é bom perceber como o mundo é maior do que o que está dentro da sua cabeça”, ele diz, mas, no caso deste filme, a única coisa que vemos é o microcosmos que ele imagina. Por isso, o longa também me lembra do conto “O Ovo” de Andy Weir, onde todas as pessoas são uma só e tudo que se vive é um aprendizado para as milhões de vidas futuras que esta pessoa teria.

Meu último apontamento vai para a ambiguidade do título original, pois o of, ou em, está em itálico, se referindo tanto ao sentimento da jovem por Jake de “acabar com as coisas”, quanto à mente de Jake que, a todo momento, pensa em coisas que se acabam. E de todas elas, a mais intrigante é o tempo, pois a cada momento ele acaba sim, para cada um de nós.

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Apesar de ser um tanto inconclusivo sobre aonde quer chegar, este é o jeito de Kaufman, pois, como ele próprio diria, a vida é inconclusiva. Como em todos os seus trabalhos, “Estou Pensando Em Acabar com Tudo” é uma investigação enigmática da mente do homem-moderno, fascinante do início ao fim e mais um motivo de o porquê considero Charlie Kaufman um dos maiores gênios da história do cinema.

Talvez não seja tão bom como outros de seus filmes, mas ainda estou pensando sobre ele.

8.8

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