Beyond | Anomalisa

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“Anomalisa” nos apresenta uma história de paixão narcisista por uma perspectiva quebrada .

Confesso que em meio de uma pandemia mundial onde todos os dias são praticamente iguais, reassistir “Anomalisa” foi uma experiência curiosa e melancólica. Em um mundo ficcional onde todas pessoas são idênticas na visão do protagonista, o roteirista e diretor Charlie Kaufman em conjunto com o co-diretor Duke Johnson abraçam o surreal para contar uma história sobre a banalidade humana.

No primeiro ato do longa, acompanhamos Michael Stone dando seus passos até um hotel onde ele ficará hospedado para realizar sua palestra sobre atendimento ao cliente, já que seu livro sobre o assunto se tornou um sucesso. Ao pesquisar sobre o filme encontrei vários comentários sobre a síndrome de Fregole, que dá nome ao hotel. Resumidamente, essa condição faz com que uma pessoa tenha alucinações acreditando que todos são iguais ou estão se disfarçando. De fato, Kaufman se baseou nisso para a criar a história, porém quando nos agarramos em apenas um detalhe da trama e transformamos ele em uma resposta final cometemos um erro gravíssimo. A realidade de Michael possui muitas camadas para serem discutidas e analisadas. No meu caso, seguirei um caminho mais crítico aos seus atos.

Desde o princípio sabemos que o filme não se trata de uma animação convencional, não apenas por ser em stop motion que é especialidade de Johnson, mas pela densidade do que será contado. Logo no diálogo inicial dentro do avião, percebemos uma estranheza na atmosfera causada pelas interações. A caracterização dos bonecos é perfeita para proposta, com expressões bem realistas somando com marcas que separam suas faces temos a impressão que todos utilizam máscaras que podem cair a qualquer momento. Esses pontos ornam muito com a narrativa que iremos acompanhar durante os 90 minutos de tela. No pôster a frase “O filme mais humano do ano” é estampada e é impossível discordar desta afirmação.

A montagem da obra não nos leva logo para ação com uso de elipses temporais, grandes mudanças de planos e jogos de câmera para criar dinamismo. Diferente do esperado, o filme tem planos de longa duração contemplativos e quase sempre estáticos que fazem com que o espectador se torne uma espécie de observador. Entende-se que a história de Michael depende da monotonia para acontecer. 

Falando em Michael, ele possui características muito interessantes em serem discutidas pois se trata de uma pessoa mau humorada, egocêntrica e mentalmente instável. A realização possui um mérito enorme por desenvolver tão bem esse personagem. Fugindo da curva, em nenhum momento nós somos cativados por ele ou por suas ações, na verdade, solitário e deprimido nem ele próprio acredita em si. Isso está muito bem retratado em toda trajetória da trama. Algumas figuras cruzam o caminho de Michael para elogiar seu trabalho e citam que a produtividade de seus negócios aumentou em 90%, nem por isso ele deixa de ser inseguro com seu discurso ou parecer infeliz com sua carreira de escritor. O ápice desse comportamento está quando o discurso finalmente acontece: ouvimos dicas de como respeitar as individualidades das pessoas e como devemos tratá-las com respeito, mas nesse momento da narrativa já sabemos que cada gesto de Michael demonstra exatamente o contrário. Todas interações que ele participa exalam um desconforto extremo, pois todas as pessoas em sua volta o irritam mesmo que estejam ali para o servir de alguma forma. Isso acontece na primeira cena com o homem no avião, com o taxista e se repete quando ele decide se reencontrar com Bella.

A verdade é que, sufocado, por toda tristeza e confusão mental, nosso protagonista não se reconhece e busca encontrar qualquer estímulo ou resposta que torne sua vida mais feliz. Motivado por isso as decisões que ele toma são extremamente narcisistas como, por exemplo, exigir respostas de uma ex namorada 11 anos depois de um término do qual ele mesmo decidiu fugir.

E é aí que Lisa entra na história.

Muitas pessoas podem interpretar o interesse quase descontrolado de Michael pela voz de Lisa naquele corredor como uma luz no fim do túnel, e não me entendam mal, realmente é! Na perspectiva dele, onde todos são literalmente os mesmos, a presença do diferente o deixa em êxtase. O ponto é que em nenhum momento ele está interessado nela de fato, mas sim no que ela o pode oferecer.

A ideia passageira de que essa mulher diferente de todas as outras poderia salvar o homem desesperançoso da realidade densa e monótona vem de toda idealização de um amor romântico que é retratado na mídia há séculos. No diálogo que os dois têm no quarto de hotel, nos sentimos intrusos e desconfortáveis por espiarmos uma conversa tão pessoal e desajeitada. Ali, Lisa se abre contando que possui grandes problemas de autoestima (da mesma forma que a ex namorada do protagonista apresentava, diga-se de passagem).

Nenhum dos dois poderiam se ajudar afundados por todos os problemas e bagagens que os cercam. Em um curto período de tempo Lisa tem a tendência a se moldar por Michael, enquanto ela dita as coisas como devem ser feitas. Além disso, o casal possui um desequilíbrio de poderes, tendo em vista que, até poucas horas atrás Lisa era apenas uma fã. Conforme a curta e impulsiva relação dos dois vai se desenvolvendo e Michael convence a mulher de suas vontades, os defeitos de Lisa começam a saltar. A cada segundo aquele efeito encantador se esvai e todo brilho que ela tinha se apaga da pior forma possível. Cada pequeno incomodo que Lisa o causa, sua voz e fisionomia vão se perdendo em meio a ruídos e flashes daqueles rostos e vozes que já vimos e ouvimos antes.

Agora Lisa é como todos os outros - Apenas mais uma.

O estado de apatia que Michael se encontra não permite que ele identifique seus erros para que possa sair do ciclo vicioso que o impede de melhorar. É muito provável que ele tenha assistido outras pessoas se transformarem em uma cópia igual a todos. Enquanto conversa com Lisa deitado na cama ela fala sobre lições de vida e Michael responde que muitas vezes não há uma, o que pode ser mais um sinal para sua falta de autocrítica. Stone não sabe reagir em situações da qual é confrontado. Quando Lisa pergunta o motivo dele se interessar por ela ele foge da questão, da mesma forma que fica sem palavras quando sua esposa pergunta quem ele é de verdade. Afinal, se todos são iguais na visão dele, por qual motivo ele seria diferente em outros olhos? Ainda que ele domine a comunicação na teoria, a empatia não pode ser estudada sem que o ego seja deixado de lado.

Ao retornar para sua casa com sua família, Michael leva consigo uma boneca comprada em um sex shop, esse artefato seria um presente para seu filho. Essa boneca possui um simbolismo gigante com a figura de Lisa. Ambas cantam, possuem rostos diferentes e uma cicatriz no rosto. O diferencial é que uma boneca já vem pronta e pode atender qualquer uma das expectativas dele, sem perder a essência.

O filme se encerra no mesmo tom que Lisa canta "Girls Just Wanna Have Fun". Charlie Kaufman decide nos contar essa história com acontecimentos corriqueiros de forma tristonha e lenta para que possamos prestar atenção nas entrelinhas da letra.

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