Beyond | "Ela" e o amor
No futuro, o gênero de “Ela” deve sofrer uma mudança inevitável, de romance sci-fi, para… apenas romance.
Lançado em 2013, este, que é apenas o quarto filme de Spike Jonze, atingiria algo que muitos cineastas sonham, mas poucos tem a capacidade - ou a sorte, talvez - de atingir. Para nós, que vivemos no início do século 21, podemos nos maravilhar com a pureza de sua história de amor ao mesmo tempo em que nos fascinamos com as possibilidades que aquele futuro hipotético pode trazer. Para amantes do cinema que ainda nem nasceram, este pode muito bem ter sido um dos primeiros filmes a retratar uma mudança drástica na forma como o ser humano se relaciona, mas que, para tais pessoas, pode ser algo natural desde o nascimento.
Este Beyond será um pouco diferente, pois, ao invés de me ater exclusiva, ou primordialmente, aos aspectos técnicos desta obra prima de Spike Jonze, tentarei destrinchar as muitas camadas presentes em seu tema principal e o porquê de este ser um dos filmes mais emblemáticos de nossa geração. Tanto para o cinema, quanto para a humanidade em si.
Na época de seu lançamento - e ainda agora em pleno 2019 - a relação entre Theodore Twombly e Samantha era apenas uma especulação de um futuro, aparentemente, não tão distante, onde os maiores avanços estariam nas mentes das pessoas e não nas cidades onde moram.
Naquele mundo colorido e radiante, que apenas sugere uma civilização mais avançada tecnologicamente, as pessoas ainda usam metrôs, ainda se vestem como hoje, ainda tem os mesmos costumes em aniversários, festas e confraternizações fraternais. Tudo bem, Theodore pode jogar um jogo onde os controles são suas próprias mãos e o personagem pode interagir com ele, mas isso não é muito distante do que a tecnologia já nos permite experienciar. Porém o que há de claramente diferente e, porque não, evoluído, é a visão dos habitantes daquele mundo acerca do amor e - sendo cliché - das peripécias que ele prega. Não que o encontro as escuras entre Theodore e a personagem não nomeada de Olivida Wilde (que, por conta da maquiagem, surge parecida com um androide), ou que o preconceito de Catherine para com o novo interesse amoroso de seu ex-marido (divórcios e, portanto, o casamento, ainda são coisas comuns) não sejam traços ainda existentes da forma como encaramos os relacionamentos no século 21, mas basta perceber a reação do personagem de Chris Pratt ao descobrir “o que é” este novo interesse de seu amigo que percebemos que as coisas, apesar de não completamente, já estão mudadas.
Deliciosamente nos envolvendo pela sugestão de um mundo onde o amor é encarado de forma mais pura, me pergunto se a natureza da paixão de Theodore não sofreria uma própria reedição de pensamentos retrógrados, assim como, por décadas - e ainda hoje -, muitos olhavam com estranheza para relacionamentos inter-raciais e/ou homossexuais. Nesse ponto, é genial a própria escalação de Rooney Mara como a dona deste pensamento “conservador”, pois apenas três anos antes ela já havia sofrido do mesmo mal com outro de nossos anti-sociais favoritos. Se bem que chamar Theodore de anti-social é um desserviço, ele é apenas… sozinho. Em um mundo onde não se precisa estar com alguém de pele e osso para se sentir acalentado, Theodore é como uma criança indecisa em uma loja de doces imensa.
Mas neste futuro hipotético, Samantha não apenas não será exclusiva, como cada cliente poderá decidir trocar as vozes de suas parceiras entre nomes como, sei lá, Scarlet Johansson ou Rihanna ou Brad Pitt ou Michael B. Jordan e, caso este futuro reserve regalias ainda mais obsessivas, será possível combinar as características de todos estes ne namorade perfeite, que se apaixonará por você de livre e espontânea vontade, justamente por conhecer cada aresta de sua vida, cada pensamento alto que jamais deveria ser ouvido, cada procura privada na internet.
E a pergunta que deveríamos nos perguntar não deveria ser como o ser híbrido se pareceria (ou se alguém se interessará por este Frankestein), nem se o amor e aparente lealdade expressos por tal ser são reais e permanentes ou se, assim como aconteceu com Samantha e Theodore, as infinitas possibilidades oferecidas por este mundo hipotético uma hora serão mais atraentes do que um relacionamento monogâmico. Mas o que devíamos nos perguntar é como nós, seres humanos (se ainda o formos), entenderemos estas relações.
Neste futuro repleto de prazeres infindáveis, a monogamia ainda será respeitada? O casamento tradicional ainda terá valor? A sexualidade ainda será um tabu e uma forma de rotular se você é ou não é algo?
Tenho certeza que do ponto de vista científico é possível ter uma ideia melhor sobre como as mudanças tecnológicas influenciarão todos os aspectos de nossas vidas. Elementos da própria evolução humana e da recente chegada da era da tecnologia devem oferecer respostas no mínimo bem fundamentadas sobre este futuro ou, ao menos, teorias que podem nos ajudar a prevê-lo. Mas não sou cientista, sou um apaixonado pelo cinema que vê n“Ela” não apenas um ser superior, capaz de amar de formas que nós ainda não compreendemos, mas também como um dos melhores filmes de nosso tempo justamente por ser um retrato anacrônico de dois seres de eras distintas. Theodore, que não é menos humano que nenhum de nós. E Samantha, que, apesar de estar anos luz a nossa frente, também não.
Ele, interpretado por aquela a qual considero a melhor atuação de Joaquim Phoenix, é um homem solitário e preso em sua própria rotina, um retrato já quase batido do homem do século 21, que tem dificuldades de se relacionar amorosamente, mas não de expressar seus sentimentos na forma de cartas que serão entregues por outras pessoas. Theodore tem dificuldades de ter um alguém, pois tem a mesma dificuldade de entender a si mesmo e seu sorriso fácil e maneirismos carinhosos para com todos a sua volta podem não isolá-lo fisicamente de outras pessoas, mas são quase como uma barreira para seu verdadeiro eu.
Ela, trazida à vida (vida?) com a voz de uma das atrizes mais desejadas de sua geração, pode muito bem ter todo o afeto e carisma de Scarlett Johansson, mas também funciona quase como uma piada de mau gosto sobre a obsessão dos homens com símbolos sexuais femininos. Mas se, ao analisarmos os motivos de Scarlett ter sido escalada, podemos ter uma noção mais complexa e menos romântica acerca dos temas do longa, a Samantha a qual a atriz interpreta é tudo que ele precisava. Alguém que se doasse por completo para sua, até então, existência repleta de incertezas e inseguranças.
Porém, apesar de sua premissa ser capaz de gerar discussões extensas a respeito da filosofia envolvendo o significado de humanidade, Jonze opta por deixar de lado seu aspecto científico por praticamente toda a projeção, e se atem ao simples para nos entregar uma das histórias de amor mais puras de sua década. Pois Theodore e Samantha vivem todos os estágios que um casal “comum” também vive: a aparente amizade, os primeiros flertes, a primeira relação sexual, a primeira discussão, o primeiro encontro duplo, os primeiros aniversários, as primeiras férias. E se não podemos visualizar Samantha em nenhum momento, a expressão da mais pura felicidade e paz de espírito presentes no rosto de Theodore não são apenas um indicativo do talento anormal de Phoenix, mas também do impacto daquele ser tão peculiar em sua vida.
Aqui é importante notar como a naturalidade envolvendo o relacionamento dos dois é desenvolvida visualmente, sendo que as muitas etapas de sua jornada são reforçadas pelo uso de cores primárias tanto no figurino como nos cenários. Perceba como, no começo do longa, o aplicativo o qual Samantha faz parte é tomado da mesma cor vermelha da camiseta de Theodore, como ilustrando a conexão entre os dois. Na cena onde ele se encontra com sua ex-mulher, este mesmo vermelho se desbota quase para um lilás ao passo que ela usa um branco estéril que, na cena final, é a cor da camisa de Theodore, com o coração partido, que é enfim acalentado por alguém que vestia a mesma cor vermelha (do amor) que ele no começo da projeção.
E é claro, assim como a grande maioria dos relacionamentos, os dois tem de, eventualmente, viver a primeira - e normalmente definitiva - separação, justamente por Samantha enxergar coisas que, para os olhos de Theodore, eram impossíveis. O fato de que ele e sua amiga Amy (interpretada por Amy Adams) achem consolo um no outro após perderem suas companheiras, figura como um final ao mesmo tempo poético e (des)esperançoso sobre o caminho para onde rumamos. Afinal, nossa única possibilidade de felicidade é mesmo ao lado de outro ser humano real? O uso do parenteses duas frases acima depende apenas da sua forma de ver o mundo.
Muito se especula se “Ela” não seria uma espécie de resposta à “Lost In Translation” (ou seu desastroso título brasileiro “Encontros e Desencontros”), escrito e dirigido por Sofia Coppola e lançado em 2003, logo após a separação dela e de Jonze após quatro anos de casamento. Interligando os dois filmes está, obviamente, Scarlett Johansson, que interpreta personagens que, aparentemente distintas uma da outra, procuram pela mesma coisa: um significado em suas vidas. E se o filme de Coppola já desafiava nossas convenções sobre amor e fidelidade, “Ela” expande estes temas ao mostrar como tais concepções já estão mais do que ultrapassadas e, inevitavelmente, nos tornam seres limitados. Ambas aquelas mulheres, separadas por 10 anos de vida de sua atriz em comum, são o motivo de aqueles homens desafiarem seus próprios conceitos de vida e felicidade.