Crítica | Tarde Demais Para Esquecer
o poder do acaso
Entre a comédia romântica e o melodrama, McCarey faz filme apaixonante e devastador
Em um mundo que recorda um ou outro nome, é quase uma ironia que o de Leo McCarey tenha sido (parcialmente) esquecido. Conhecido principalmente por Make Way For Tomorrow (meu filme favorito dos anos 30), assisti apenas dois de seus filmes mas fica claro seu apreço pela única coisa que todos temos em comum: o fim. Seja ele da vida, em si, ou de uma viagem que fica guardada na memória até o fim desta, McCarey consegue misturar a incontrolabilidade do acaso que nos move com a inevitabilidade das jornadas que traçamos.
ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS PARA LEMBRAR
Claramente dividido em duas metades contrastantes, mas complementares, se a segunda mergulha no melodrama, a primeira é uma comédia-romântica que precede tantas outras, principalmente o celebrado Antes do Amanhecer com sua promessa de seis meses.
Os muitos encontros, a casualidade imposta nos planos ensaiados de McCarey, com atores que sabem para onde ir e exatamente onde parar. Na piscina, na entrada de um restaurante, em uma escada. O cineasta cria uma atmosfera romântica e até lúdica, marcada pelo momento onde Terry parece duvidar da capacidade de ficarem juntos, para então serem enquadrados rodeados pelo mar, como que enfatizando que a tarefa de se evitarem era inútil, e que todas as preocupações da terra firme estavam reservadas para o depois.
Divertido também como os dois atores parecem cientes da pose de Grant, ele vivendo quase uma síntese do charme que moveu sua carreira, mas achando espaço dentro da rígida encenação para olhar pra dentro de si e se perguntar o que quer fazer a seguir. Não deixa de ser um clichê, também, a relutância de Kerr, quase sempre se virando para o lado oposto, como que ameaçando sair, mas calculando o quanto mais pode ficar. A dinâmica dos dois é adorável de se acompanhar, o que torna o drama da separação - exista ela, ou apenas a sua ideia - ainda mais dolorido, principalmente por ser premeditado desde o momento em que se conhecem em um cruzeiro - e o próprio título remete à algo que vai ficar apenas na memória.
O adeus é quase uma piada de mau gosto, um jogo de expressões, piscadas e acenos, uma encenação que têm de manter, mas que jamais mascara as incertezas de um adeus que se resume à um toque de mãos escondido.
O MELODRAMA QUE NÃO EXISTE MAIS
Talvez a qualidade mais impressionante do filme seja justamente como parece ser um comentário sobre a modernidade, o que ela traz de bom e de ruim. Claro que, em 1957, seria no mínimo impensável julgar que algo tão simples como um celular fosse existir, mas o filme parece se deliciar com as possibilidades criadas pela falta de comunicação com o mundo que não aquele que se apresenta para nós a cada novo instante. É um filme essencialmente clássico nesse sentido, que coloca seus acontecimentos em primeiro lugar: por mais que McCarey mostre um controle formal absoluto sobre a obra, esses momentos inesperados tem tamanha força que parecem render o longa à imprevisibilidade.
Candidato celebre ao famoso “não fazem filmes como antigamente”, Tarde Demais Para Esquecer parece se orgulhar do tempo em que é lançado - algo que, se formos pensar, não é tão comum em Hollywood -, encontrando o romance nas peculiaridades desse tempo - aí o Empire State Building e sua idealização de sonho que toca o céu, em época onde ainda não haviam as Torres Gêmeas, e nem suas respectivas quedas. Idealização essa que toma forma no talento do personagem de Grant para a pintura, e chega a ser genial como McCarey evita em nos mostrar tanto estas como o beijo dos dois na escada. Não há imagem mais potente (e mais melodramática) que sua idealização, e a dupla passa o filme inteiro idealizando, desde o reencontro perfeito à vida que segue depois deste.
O principal incidente do filme talvez nem seja o encontro, afinal, são vários que ao mesmo tempo diluem esse impacto e pouco a pouco criam uma conexão. É o acidente de Terry que afunda em apreensão e tristeza uma história que poderia ser de conto de fadas. Os pequenos acasos que os uniram momentaneamente, um grande acaso que os separa indefinidamente.
O CLÁSSICO E O MODERNO
Tendemos a julgar Vertigo como o momento máximo de encontro entre o clássico e o moderno, o último de um e o primeiro de outro. Na celebre dissertação de Luiz Carlos de Oliveira Jr., Tarde Demais Para Esquecer é mencionado como um dos filmes que o premeditou. Apesar de não enxergar mais semelhança entre estes do que, digamos, Retrato de Mulher, de Lang, ou o próprio In a Lonely Place, de Ray, é inegável que a obsessão de McCarey com o fim, e sua estética de idealizações dialogam diretamente com o filme de Hitchcock.
Que melhor metáfora para o fim do que a velhice? Que melhor idealização do que uma que não permite ao pintor aceitar o trabalho final?
Em um cenário propositalmente romântico, inundado de flores e que é descoberto com suaves deslizes da câmera, Nickie deixa claro suas intenções ao apresentar Terry a avó, que quase de imediato diz à jovem encantada pelo lugar: aqui é ótimo para relembrar, mas você ainda precisa fazer suas próprias memórias.
É difícil não se encantar com a cena, quase uma transição entre o romance da primeira metade com a dramatização da segunda, o momento mais controlado e intenso da direção de McCarey, mas também o mais profundo e revelador. A pintura feita de memória, portanto delegada às imperfeições que esta provoca, a insatisfação de Nickie com tudo que pinta, pois nada se iguala à suas idealizações, a humanidade por trás do símbolo de masculinidade que transforma a atração de Terry em paixão, o casaco que simboliza tanto o cuidado como uma herança. Um momento quase isolado, pensado e premeditado com intenções, mas que refere à todos estes temas. O passado dando lugar ao futuro, o acaso dando lugar à certeza, a comédia-romântica das massas dando lugar ao melodrama dos românticos.
Logo, na cena final, quando Cary Grant esboça um meio sorriso que parece simbolizar o fim, algo lhe vem à cabeça. Em um impulso, ele abre uma porta e olha algo que vemos apenas o reflexo, em um desdobramento que me fez chorar e não seria possível caso, seis meses atrás, uma notificação chegasse ao celular de Nickie o enviando para o hospital. Ele saberia o que aconteceu, e poderia escolher ir ou ficar. Mas em um filme que, por mais impossível que seja, parece saber de nosso futuro conectado, McCarey permanece apaixonado com as possibilidades daquele presente. E reparem que os quadros que antes incluíam os dois juntos, agora dão lugar à contra-planos que parecem esperar as reações um do outro com o que conversam. Não há mais o acaso do olhar, mas a necessidade de mirar.