Crítica | Caminho Para o Nada

digitalizando o cinema

A última aventura de Monte Hellman é uma investigação com o fim em si mesma


Seria impossível traçar todos os filmes que o último filme de Monte Hellman antes de sua morte (11 anos após o lançamento do projeto) referencia em seu imaginário. Dos que o diretor do filme dentro do filme assiste na TV - e categoriza todos como obras primas - à Lynch, Hitchcock, Cronenberg, entre outros tantos, Caminho Para o Nada é a melhor exploração desse mundo particular do Cinema em uma década que trouxe à luz, entre outros mas para citar o mais próximo, Under The Silver Lake.

Porém se a obra de David Robert Mitchell - uma das melhores e mais esnobadas desses últimos anos - se concentra em uma narrativa divertida e então complexa, a de Hellman abandona o entretenimento em prol de uma estranheza abrasiva. Rodado com uma câmera que você poderia comprar caso economizasse um pouco e faturando menos de 200 mil dólares em bilheteria, é um filme que me deixa naturalmente ansioso - quantas obras primas não estão escondidas por aí e jamais iremos sequer descobrir que existem?

O curioso é que Caminho Para o Nada parece não ligar para seu próprio sucesso, ou talvez esteja ciente de seu ínfimo espaço no universo do Cinema, como o close final que chega quase a um pixel isolado e, mesmo assim, não revela nada.

Afinal, o que assistimos? Um filme sendo feito dentro do filme, que logo embaralha estas linhas e se torna a realidade de uma ficção fajuta, ou a ficcionalização de uma realidade ultra honesta? A imagem digital parece ser o único meio de contar essa história dessa forma, com seus deslizes que tornam todos mais polidos, e suas imperfeições causadas pela baixa-resolução que parece deixar tudo fora de foco. Tudo funciona em torno desse comentário, dessa miscigenação de referências em um suco de 2010s logo no primeiro ano (cinemático) da década.

A própria relação do diretor dentro do filme, interpretado pelo desconhecido Tygh Runyan, com o conceito de Cinema parece fluido. Ele quer algo tão natural que nem seja atuação, parece filmar pouquíssimos takes e tem um apreço por pegar a câmera na mão e sair filmando uma tragédia sem qualquer composição se não a espontaneidade do olhar humano. Por outro lado, considera o elenco 90% do trabalho, porque só assim pode ter um controle ainda mais completo do que filma, ao passo que o roteiro de 95 páginas já resulta em 4 horas de filme - já cortado. Ele se preocupa com tudo isso? Não, porque parece saber que ou o interesse sobre o caso real (dentro do filme) vai ser o suficiente, ou simplesmente não liga.

Já as composições de Hellman são perfeitamente pensadas para evocarem estranheza e buscarem suspense, mesmo com a “fragilidade” das imagens. A câmera parece se esconder para documentar algo que não devia, com a escuridão e a luz ambas engolindo diferentes cenas e não me lembro de um filme tão fechado como esse que fosse ao mesmo tempo toxicamente sensorial. Mesmo com planos e cenários ou claustrofóbicos (os quartos minúsculos, a sala com o CD) ou isolados (a cidadezinha de fim de mapa), com uma colocação espacial que parece não revelar todos os olhares que podem haver na volta, é um filme que a todo momento nos lembra das ameaças que uma história como essa geralmente traz consigo.

Mas mesmo sendo um suspense até bem espertinho nessa estética da não compreensão, Hellman não deixa de se permitir alguns momentos mais Cinema. O tiro, que me lembrou o de A Carta, o beijo que remete a Mulholland Drive, a foto que puxa La Jetée e Blow Up, o casal se apaixonando em uma montagem afetuosa que lembra toda rom-com, o túnel para o nada que é quase idêntico ao de Chihiro. E claro, o xadrez de O Sétimo Selo talvez seja o mais marcante justamente por simbolizar esse jogo de referências com um fim inevitável.

Não deixa de ser também um filme de idealizações, talvez parte do cânone de Vertigo, onde a musa cada vez mais se parece com alguém morto que fascina o artista. Fosse o mundo justo, Shannyn Sossamon o teria ganho por seu trabalho aqui, sendo que mesmo na fotografia aproximada sua mistura de sedução, tristeza e dissimulação parece conquistar na mesma medida que faz com todos que com ela se envolvem.

Sendo este um dos filmes mais 2010 de sua década, considero também um de seus melhores. Uma investigação com o fim em si mesma, um mistério sem base primária, um filme que desperta sensações e reações com suas imagens de baixa resolução e suas perguntas sem resposta, apenas para nos lembrar em como são extensas e infinitas as possibilidades que o Cinema proporciona.

De um vlog gravado em webcam, ao rolo de filme de Georges Méliès, à uma foto em um close infinito, Cinema.

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