Crítica | Make Way For Tomorrow

Quem tem família, sabe.

O clássico de Leo McCarey materializa um incômodo passageiro que reflete a inevitabilidade da vida.

O quanto podemos entender, e até nos relacionar, ao ver os irmãos Cooper se reunindo (depois de, aparentemente, anos) para definir o que fazer com os pais, despejados de sua casa depois de 50 anos? Mesmo antes de saberem da notícia, já é possível ver onde os anos de implicância e competição os levaram: já é quase impossível conversarem sem alfinetar, sem cutucar feridas. A irmandade dá lugar à uma convenção social que soa desagradável pra todos os envolvidos.

Já ali, é possível perceber que “Make Way For Tomorrow” não será uma tarefa prazerosa. Os irmãos decidem que terão de dividir os pais - nenhum tem condições de tomar conta dos dois juntos -, e o sr. Barkley, tão confortável e patriarcal em sua poltrona, logo se torna um adereço da pequena sala da filha. Sua esposa, a sra. Lucy, se torna o ranger de uma velha cadeira de balanço na casa do filho. Se naquela primeira cena os dois parecem estar no centro da imagem, no controle da relação familiar, nessas próximas estão deslocados pros cantos, sentados quando outros caminham, zanzando enquanto outros sentam. É uma estética do deslocamento, que Roger Ebert comenta em sua crítica do filme: quando sua casa já foi “decorada”, você não quer retratos antigos.

É uma lógica de encenação aparentemente simples, mas sofisticada a ponto de manipular as relações hierárquicas sem a necessidade de uma estilização que poderia tornar tudo melodramático em excesso. O drama do filme é real e forte o suficiente pra que essa carga visual do abandono e do esquecimento provoque os efeitos necessários. Alguns fades dão a impressão de serem manipulados pra que a silhueta da pessoa fique por um instante a mais na próxima cena, como que um fantasma, uma lembrança amarga que fica como a última de uma vida que nem chegamos a conhecer - outro acerto pois um filme inferior não hesitaria em nos rechear de flashbacks condescendentes pra criarmos afeto pelo casal.

Pelo contrário, McCarey faz questão de apresentar a situação como todos percebem: um incômodo. Quando Lucy atende o telefone e fala alto sem necessidade (vejam, isso ainda acontece, quase 100 anos depois), todos os convidados param o que fazem para olhar pra ela, atrapalhando a energia do local. Situações que geram nos filhos uma sensação parecida com a nossa, uma vergonha misturada ao medo de ofender e ferir sentimentos, e é possível ver o desabafo preso em Fay Binter, que chega quase a tremer antes de se recompor e trazer a voz de volta ao timbre necessário para lidar com a situação.

Já outras figuras são menos… elegantes. Nellie não parece ter forças, nem vontade de contrariar o marido que se recusa a amparar os sogros, enquanto Cora se envergonha de si mesma por um breve momento ao mover o pai do sofá à cama para não ficar mal na frente do doutor. Convivo, no meu ambiente familiar, com situações semelhantes e tenho uma asco prévio de situações assim, mas são ações que não só reforçam as ideias propostas pela abordagem do filme, mas condizem com a realidade onde nada é exatamente certo ou errado, e sim existe em uma área cinza. Ebert continua: o fato é que idosos não encaixam no estilo de vida moderno. O problema é do estilo, mas é a verdade.

uma inversão de papéis que expõe a fragilidade dos laços e enfraquece a lógica hierárquica da sociedade contemporânea.

Não existem pessoas mais desconfortáveis com a situação do que Lucy e Bark, que apesar de se enganarem com a ideia de que ficarão mais tempo com os filhos, só queriam poder ter um ao outro no lugar que conheciam como casa. Mais que isso, há um incomodo claro em se tornarem dependentes, em terem de voltar a ser criança depois de anos funcionando como o quartel general para as relações da família. Idosos são cabeça dura, seja para lidar com a medicina ou com um jogo de cartas que não conhecem. Chega uma hora que o saudosismo é quase um mecanismo de defesa.

É uma perda de controle que McCarey responde com o ato final: os filhos tornados pais se sentem apreensivos com os novos filhos desaparecidos, se parecendo novamente como as crianças que ainda são nervosas por não saberem onde se encontram os pais. É uma sequência memorável por evidenciar essa fragilidade na relação, como se a decisão de não cumprir o combinado de Lucy e Bark tenha cortado as amarras que a nova situação os impôs. A exposição da imagem parece aumentar, em algumas cenas eles caminham em cenários montados, é quase como uma jornada etérea que chega a lembrar “Sunrise: A Song of Two Humans” e, durante ela, McCarey complementa os temas trabalhados. O vendedor de carros e o gerente do hotel se deixam conquistar pela simplicidade do casal, seja por educação, deslumbre ou por viverem algo parecido, talvez não bem importe.

E por mais que todas essas relações que chegam a brincar de comédia de costumes possam apresentar uma força desoladora, é o amor de Lucy e Bark que torna o filme uma experiência humana e inesquecível. O pequeno soluço de Lucy ao deixar o esposo no trem é pra derrubar qualquer um, uma mistura de incerteza e ciência: a morte é certa, a vida é passageira, vamos nos ver de novo?

10

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