Crítica | Harry Potter e a Pedra Filosofal
O primeiro filme da saga “Harry Potter” sempre será uma lembrança mágica.
Lembro não apenas de ter assistido nos cinemas com minha mãe, mas também de minha prima me contando sobre a história. Minha mãe havia perguntado se era um filme apropriado para crianças, enquanto ela respondeu que tinha algumas coisas assustadoras, como um cachorro de três cabeças (entre outras que enumerou). Dentre as cenas, aquela onde o espírito de Voldemort atravessa o corpo de Harry é a única que me lembro realmente da sensação que tive quando a assisti pela primeira vez, cobrindo o rosto de medo.
Desde então, foram incontáveis revisitas: em VHS, DVD, online, maratonas periódicas, etc. Mas, dificilmente, eu era capaz de separar o apreço que sinto não só pelo filme, mas pela saga em si, do meu olhar imparcial. Portanto, decidi maratonar todos os filmes, com olhos mais treinados, tentando ao máximo ler o que está na tela sem deixar que a nostalgia me leve pelas cenas e falas que sei de cor, e com o objetivo de descobrir o porquê de terem me marcado tanto e o porquê de parecerem mais relevantes do que nunca agora, em 2020.
O resultado vocês leem a seguir.
As críticas dos outros filmes podem ser lidas aqui: A Câmara Secreta, O Prisioneiro de Azkaban, O Cálice de Fogo, A Ordem da Fênix, O Enigma do Príncipe, As Relíquias da Morte: Parte 1, As Relíquias da Morte: Parte 2.
O que diferencia toda a saga inspirada nos livros de J.K. Rowling de tantas outras que vieram depois é o quão real o mundo bruxo soa desde “A Pedra Filosofal”.
Já imensamente popular ao redor do mundo, a tarefa de adaptar o primeiro livro da saga para os cinemas se tornou ainda mais complicada devido ao momento em que decidiram fazer isso. Naquele mesmo 2001, uma outra adaptação ainda mais esperada seria lançada um mês após o filme de Cris Columbus conquistar quase um bilhão de dólares nas bilheterias - algo que, na época, era quase impensável e o colocou como a segunda maior da história, atrás de “Titanic”. E, talvez o primeiro grande feito de magia de “Harry Potter” seja justamente que “A Sociedade do Anel” lucraria menos.
E embora na época já fosse possível traçar um paralelo entre os dois, que se afunilaria conforme a obra de Rowling demonstrasse influências claras dos livros de J.R.R. Tolkien, olhando para trás chega a ser curioso que nenhum filme de super-herói estava entre os mais populares. Horas, particularmente, não sou apreciador do saudosismo, mas é impossível negar que aquele 2001 foi infinitamente mais fantástico para o cinema blockbuster do que as décadas seguintes.
Mas, e comparando os filmes pela última vez para os fãs que batem o pé quanto a isso, “Harry Potter” não é melhor do que “Senhor dos Anéis” e ambos os primeiros filmes das respectivas sagas mostram um dos motivos. Enquanto a trilogia de Tolkien é, narrativamente, focada em um único objetivo, os livros de Rowling retratam, além de e tão importante quanto sua trama, longos períodos de tempo na vida dos personagens, algo muito mais complexo e difícil de dosar no cinema e que acarreta o maior problema que este filme apresenta, o qual comento mais abaixo.
Se mostrando consideravelmente fiel ao livro - seria impossível incluir tudo em um filme de menos de quatro horas (que eu adoraria assistir) -, o roteiro de Kloves chega a ser brilhante ao apresentar a variedade de grandes momentos escritos por Rowling. Da primeira vez que Harry voa na vassoura até seu primeiro jogo de Quadribol, da intensa partida de xadrez bruxo até o confronto final com Voldemort, todos são dotados do peso necessário para que não apenas nos importemos, mas sintamos as muitas emoções que o próprio Harry sente - a trilha sonora de John Williams, é claro, é essencial em amplificar a atmosfera proposta por estes momentos, triunfando ao criar um tema central mais do que icônico para o personagem e para a série.
Porém, é visível como Columbus não soube conectar estes muitos acontecimentos com fluidez, tornando a narrativa episódica. Harry faz isso, então faz aquilo, e então faz mais aquilo. As próprias transições de estações são feitas sem qualquer cuidado, exceto por uma passagem do inverno à primavera que é visualmente bela, mas que Alfonso Cuarón faria melhor dois filmes depois. Isso poderia ser uma adaga contra o filme caso cada uma das cenas, por menores que sejam, não fossem interessantes por si mesmas e aqui constato meu maior prazer ao rever qualquer filme de Harry Potter, e também minha principal crítica: não há nada de mais satisfatório do que ver Harry, Rony e Hermione andando pelo castelo, assistindo as aulas, conversando como adolescentes normais, pois, naquele mundo mágico, é isso que são e, por isso, todos nos apaixonamos pela série. E por que isso se torna uma crítica? Por que sinto que vemos pouco disso.
Com um design de produção rivalizado apenas, de novo, por “Senhor dos Anéis” quando falamos do gênero fantasia, a veracidade na construção deste universo ressalta o quão fantástico são as criaturas, os objetos e a magia em si, tornando momentos triviais onde percebemos a naturalidade com que aqueles personagens interagem com seu mundo algo fascinante de se experienciar. Aqui, livros e escadas encontram seus lugares sozinhos. Ali, cães de três cabeças, dragões, centauros. Lá, feitos inimagináveis saídos de varinhas feitas de madeira. Acolá, quadros que se movimentam e conversam entre si. E nada disso seria tão eficaz caso Columbus, e seus sucessores, não apostassem em uma abordagem apoiada neste realismo, onde dezenas de cenários foram construídos e inclusive algumas criaturas também. A imersão é tamanha que toda vez que re-assisto ao filme é como se me transportasse mais uma vez para Hogwarts e seus corredores extensos, ou para o beco diagonal e seu ar de centro de capital.
Hoje, em 2020, os efeitos visuais soam um pouco datados, especialmente o trasgo - que graças ao jogo de câmeras de Columbus, que mostra seus estrasgos (me desculpem) nos cenários, não soa como um fracasso completo -, mas eles jamais deixam de ser necessários e merecidos pela história. Ao passo que cenas como a de Harry na vassoura e do cão Fofo se mantiveram visualmente convincentes com o passar dos anos. Já o uso de efeitos práticos em cenas envolvendo os desafios que protegem a pedra filosofal, e aquelas envolvendo o primeiro encontro de Harry e Voldemort, seguem como exemplos perfeitos de como a técnica é quase sempre superior ao uso de efeitos digitais. Peguemos a sequência das cartas por exemplo, onde a casa dos Durlsey é violada por centenas de milhares destas, e me diga se, por mais perturbadora que seja de um ponto de vista adulto, o realismo de vermos Harry rodeado de cartas idênticas não se torna subitamente mágico - alguém, de fato, fez aquelas cartas com as próprias mãos, afinal.
Inclusive, é impossível falar sobre estes filmes e não questionar a falta de reconhecimento nas temporadas de premiações. Enquanto os dois primeiros longas tiveram de competir diretamente com “Senhor dos Anéis” que, em suma, tem um trabalho superior em áreas como Direção de Arte, Figurino, Maquiagem e Efeitos Visuais, os outros foram ofensivamente esnobados de prêmios e nomeações, principalmente na Academia, sendo que o que a saga teve de mais consistente sempre foi, justamente, seu cuidado técnico. Por isso, por mais que as limitações de Columbus e Kloves afetem consideravelmente o ritmo do filme, não consigo deixar de admirar cada passagem pela delicadeza e cuidado com que foram construídas. Por mais que, claramente, o senso de história que “A Pedra Filosofal” possui, e necessita, fique em segundo plano.
Mesmo assim, é importante notar como todos os oito filmes são lindos exemplos do coming of age, gênero que foca no crescimento de personagens como principal elemento narrativo. De nada adiantaria a perfeição técnica se não fossemos convencidos por estes personagens e, no cinema, por seus interpretes, e isso é justamente o que a saga tem de melhor. Encarnando o trio principal com o misto de bondade e traquinagem (sim, tenho 200 anos de idade) que passam nos livros, Radcliffe, Ruppert e Watson eram naturais desde o começo, e destaco como Columbus constantemente se utiliza de plongés (aquele plano de cima pra baixo e vice-versa) para nos dar a sensação de estarmos vendo o mundo com os olhos de criança, elemento essencial para fazermos a viagem de volta para infância sempre que revisitamos o longa.
Já o elenco de apoio é um show a parte, liderado pelo divertidíssimo Snape de Alan Rickman e pela sabedoria latente do Dumbledore de Richard Harris, todos os atores se entregam às estranhezas de seus personagens e jamais, por um momento sequer, soam deslocados. A Minerva de Maggie Smith é uma professora que todos já tivemos, fora pelo fato de que ela se transforma em gato e, ao invés de ameaçar chamar seus pais, ameaça lhe transformar em objetos aleatórios. O Hagrid de Robbie Coltrane é um brutamontes por fora, mas um ursinho por dentro, e reparem na forma apaixonada como fala de seus bichos ou retira um ovo do fogo. O Filtch de David Bradley nunca recebeu o reconhecimento devido, seu olhar de medo na cena da biblioteca comunica sem a necessidade de palavras a fragilidade de ser um bruxo sem poderes, ao passo que seu conhecimento sobre a floresta proibida sugere que ele sabe bem mais do que aparenta. O Quirrel de Ian Hart tem pouco tempo em tela, é verdade, mas convence como apenas o fantoche que é. Já os tios de Harry são legítimos vilões de filmes como “Matilda”, mas são personagens que amamos odiar. E, é claro, Malfoy e Neville brilham em suas poucas cenas, um pela malevolência que acreditamos estar presente naqueles primos que não suportamos, o outro por ser um tipo que todos convivemos - e alguns de nós fomos - na escola.
Fantástico do início ao fim, “A Pedra Filosofal” foi um marco na infância de muitas crianças e um presente para os adultos que, juntos de seus pequenos, puderam se entreter e maravilhar com o mundo criado por Rowling. E caso o fato de um jovem de 11 anos enfrentar perigos que deixariam um adulto assustado incomodar os puristas, lembre-se que, quando criança, todos os empecilhos que vivemos parecem muito mais ameaçadores do que realmente são e, de certa forma, este filme representa isso.
Em sua crítica de “Meu Amigo Totoro”, Roger Ebert comentou como aquele filme era um pouco triste, um pouco assustador, um pouco surpreendente e um pouco informativo, como a vida em si. De certa forma, o mesmo pode ser dito sobre o primeiro capítulo da saga Harry Potter nos cinemas. A vida de Harry, afinal, é trágica de maneiras que poucos de nós conhecemos, algo representado por sua fixação no espelho de Ojesed, que o oferta algo tão simples, mas que jamais poderia alcancar. Pois apesar de seu encantamento com a magia - algo que vemos em todos os filmes -, tudo que ele queria era uma família. Curiosa, e metafisicamente, após este filme, ele ganhou uma tanto dentro como fora da tela e, por mais que o presente que Hagrid lhe dê seja uma lembrança de um passado que não mais volta, ele agora tem um futuro pelo qual esperar ansioso.