Filmes Para Toda Hora | Meu Amigo Totoro

Hayao Miyazaki se tornou um dos maiores nomes da história do cinema japonês graças a algo que conseguiu preservar ao longo de sua carreira. Em “Meu Amigo Totoro”, um de seus trabalhos mais aclamados, fica evidente o que é.

Considerado por muitos o projeto que o alçou para o sucesso, esta belíssima animação sobre um bichinho de pelúcia gigante se tornou um marco da cultura popular e serviu de inspiração para diversos filmes, animes e obras destinadas ao público infantil nos anos subsequentes ao fazer algo que a maioria destes tenta e alguns até conseguem, mas nenhum como “Totoro”.

E, tendo conferido o filme pela primeira vez há apenas alguns dias, ainda estou processando o impacto crescente que ele vem tendo em meu imaginário e, além disso, na forma como me lembro da parte mais feliz da minha vida.

Nesta edição do Filmes Para Toda Hora, tentarei explicar a magia deste clássico que ainda nem bem descobri por completo.


É difícil sumarizar a premissa deste filme.

Duas garotinhas, Satsuki e Mei, se mudam com o pai para uma casa no campo enquanto sua mãe melhora de uma doença no hospital. Lá, entre a rotina de ir para a escola e explorar a natureza a sua volta, elas encontram uma criatura mágica que, de acordo com o pai, é o protetor da floresta. Se ele acredita ou não nelas fica aberto a interpretação, mas seu rosto de compreensão e felicidade por ver que as filhas supostamente o encontraram é um mérito tanto do roteiro de Miyazaki como do precioso trabalho de animação dos Studio Ghibli, que ao longo de toda sua história conseguiu dar expressões mais do que significativas para personagens bi-dimensionais.

Neste momento também é possível perceber múltiplas facetas da narrativa. Entre elas, o quão dedicado e carinhoso é Tatsuo como pai, algo que pode ser comprovado pela cena onde brinca com as filhas durante o banho, que poderia ser vista de forma desconfortável caso o filme não fosse tão eficiente em comunicar o a relação de pureza e afeto entre aqueles personagens. Mas, ainda mais importante do que isso, é como o filme vai ao encontro da postura de Tatsuo e deixa a existência das criaturas mágicas para a interpretação do público, algo fundamental para que seu principal tema seja absorvido.

Em suma, “Totoro” é um filme sobre a magia da infância, em como coisas inexplicáveis como dormir em um lugar e acordar em outro podem tomar contornos misteriosos o suficiente para lhe deixar apreensivo, mas mágicos o suficiente para lhe fazer esperar pela próxima vez que aconteça. E como crianças vamos procurar por isso, vamos tentar dormir no mesmo lugar, brincar da mesma coisa, repetir o mesmo trajeto dia após dia para tentarmos provocar o mesmo resultado e, por mais que estejamos fadados a falhar várias e várias vezes, a simples sensação de acreditar que o extraordinário está ali é algo que, descobri com “Totoro”, sinto muita falta.

Mas se em significados o filme é como uma caixa de Pandora que se expande em sua cabeça e seu coração conforme você senta com ele, tecnicamente Miyazaki conduz a narrativa de forma a refletir com perfeição a sensação que procura passar.

Com curtos 87 minutos de duração, boa parte deles é destinada às atividades triviais da família Kusakabe. Elas brincam, riem - e considero fascinante que ambas tenham me incomodado com seu barulho no começo, quando ainda assistia ao filme com olhos de “adulto” e, posteriormente, tenham se tornado quase como amigas de infância que não via há muito tempo -, brincam mais, Mei chora, Satsuki com toda a maturidade da pré-pré adolescente japonesa - ao menos aquela que os animes mostram - a consola e sempre toma a decisão mais madura e, bem, é isso. Há, claro, a preocupação com a saúde de sua mãe, Yasuko, e o principio de interesse amoroso entre Satsuki e o emburrado Kanta que é tratado de forma adorável, mas não há um plot, uma jornada que as duas tenham que percorrer ou sequer um antagonista. Algo que Pixar e Disney jamais teriam coragem de fazer.

Porém é aí que “Totoro” se sobressai ainda mais, pois seus episódios sobrenaturais acontecem em momentos tão inesperados que é como se fossemos transportados para dentro daquele mundo que, como apontado pelo grande Roger Ebert, é levemente triste, levemente assustador, levemente surpreendente e levemente informativo, assim como a vida em si.

Quanto ao design das criaturas, que Miyazaki descreve como animais e não espíritos - pois nem ele próprio sabe o que são, o que apenas aumenta o misticismo acerca destes -, é difícil não se render a figura quase grotesca, mas suficientemente fofa, que é Totoro. Seus dentes são grandes demais, seu sorriso um tanto assustador, sua cor o torna quase invisível na magistral cena do guarda-chuva, seus grunhidos são tão agradáveis de se ouvir como a voz de Stitch e, por um desenho de Mei, somos quase capazes de entender o porquê de sua popularidade entre as crianças. Se nos Estados Unidos os visualmente inofensivos Mickey e Ursinho Pooh refletem a cultura onde suas gerações cresceram, no Brasil são os traços desajeitados da Turma da Mônica e, no Japão, há, mesmo na mais infantil das histórias, um quê de obscuridade que se prova extremamente atrativa para o espírito aventureiro das crianças, compartilhado e impulsionado pelos populares heróis de mangás e animes.

Mas mais importante que seus designs é o papel que Miyazaki destina às criaturas na história. Se na maioria das fantasias personagens super poderosos que emprestam suas habilidades para ajudar o mundo são um legítimo paradoxo - no mundo hipotético da Marvel, não há razão para haver qualquer desigualdade, crime ou maldade, por exemplo - aqui fica claro que Totoro não é um ser preocupado em fazer o bem e, apesar de isso nunca ser verbalizado, fica óbvio que ele ajuda - e aparece - para as duas meninas apenas porque elas não tem nenhuma intenção ambiciosa para com ele, como evidenciado pela, repito, magistral cena do guarda-chuva. Isso, claro, se ele existir de verdade, pois caso seja apenas fruto da imaginação de ambas, é como uma representação “física” de seu modo de ver o mundo.

Afinal, o fato de que sempre que ele aparece coisas aconteçam - e reparem, as vezes não são nem coisas boas, apenas coisas - reforça esta hipótese, pois o mundo pode ser muito chato quando se está esperando que plantas cresçam, ou muito assustador quando se está esperando por um ônibus a noite. E é simplesmente encantador que Mei se perca acreditando que os vegetais da Vovó irão curar sua mãe, para ser encontrada por Satsuki por conta de sua fé em Totoro.

Assim, de forma sútil, Miyazaki pinta um retrato singelo que homenageia a pureza infância. O que torna deste um filme a primeira vista bonito, mas quase vagaroso, em uma experiência capaz de moldar suas próprias memórias acerca daquele tempo que não mais volta, e que nos faz perguntar aonde aquela forma mágica de ver o mundo foi parar.

Boa parte de nós, um dia, sonhou ter um amigo como Totoro. Assistir a este filme é quase como descobrir que, de fato, tivemos.

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