Acossado no Cinema

Por motivos distintos, tendemos a nos lembrar de alguns anos mais do que outros, o que gera um efeito curioso quando alguém não lembra de tal período tão bem quanto nós lembramos. Mesmo tendo, por exemplo, a mesma idade em 2017, duas pessoas podem ter experiências completamente diferentes: para uma, o ano pode ter passado voando, para outra, uma vida inteira aconteceu. Mesmo que, no fim do dia, o tempo tenha sido o mesmo.

Alguns anos, porém, reduzem a pluralidade da experiência humana a uma espécie de semelhança coletiva. Graças a pandemia, 2020 se tornou um desses.

Para mim, de um ponto de vista pessoal, foi um ano curioso. Tive de voltar precocemente de um período fora do país, mas a novidade da situação impediu com que me sentisse mal com isso (algo que ficou para o tenebroso 2021). E, trancado em casa com o mundo na ponta dos dedos, em algum momento decidi que começaria a ver mais filmes, algo que já havia feito em 2019, mas que tinha ficado de lado em 2020 por conta dos estudos e de outras prioridades. Nas minhas contas, nos primeiros três meses de 2020 havia visto apenas cinco filmes (para cargo de curiosidade: História de Um Casamento, Retrato de Uma Jovem Em Chamas, Aquarius, 1917 e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças), mas com os canais liberados na TV logo comecei a multiplicar esse número.

Não me passava na cabeça, por qualquer motivo que não consigo hoje entender, fazer o que todo cinéfilo um dia tem de fazer: se propor a assistir a história do Cinema.

Mesmo já escrevendo sobre filmes desde 2015, foi apenas em 2019 que fiz disso uma parte integral da minha vida. Ainda assim, dos 200 e alguma coisa que vi naquele ano, a maioria foram lançamentos mainstream, ou filmes “aclamados” que escaparam dos anos 2010 (afinal, como todos, queria terminar minha lista da década). O que me abriu os horizontes para novos Cinemas (vi muitos filmes fora do circuito de Hollywood também), mas não para o Cinema em si.

Isso, só viria a acontecer no início da pandemia, quando, querendo organizar melhor minha rotina de filmes, decidi maratonar um diretor aleatório. Foi aí que assisti Godard.


A hipérbole é uma das figuras de linguagem de mais fácil acesso e de mais falho uso. Uma que todos que começamos a escrever sobre Cinema iremos usar em maior ou menor grau, até percebermos que a tal história, ou os todos os tempos, são conceitos abstratos perante a imensidão dos 130 anos da sétima arte. Hoje, prefiro reservar seu uso para momentos específicos. Este é um deles.

Não existe filme mais importante na minha relação com o Cinema do que Acossado.

Algo que não percebi enquanto assistia (como minha pavorosa e ignorante crítica de 2020 mostra, mas que mantenho no ar como exemplo de evolução), e nem nos dois anos seguintes a isso. Mas que começou a ficar claro no final de 2022 (inclusive, comentei no LetterBoxD), e que pude finalmente constatar ao re-assistir o filme, no dia 23 de Julho de 2023, na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, quando apresentei Godard a três amigos (que adoraram!) e minha namorada (que dormiu!).

Mas enquanto o objetivo inicial desse texto parecia ser um breve relato da importância dessa sessão, me sinto na obrigação de documentar - ainda que brevemente - os motivos dessa declaração. Tanto para outros que também estejam em suas respectivas jornadas com o Cinema, como para o Marco do futuro que, com toda certeza, vai querer entrar em contato com o Marco do passado.

Para isso, vamos, brevemente, ao passado.


UM CORTE NO TEMPO

Em 1958, Alfred Hitchcock lançou Vertigo (ou Um Corpo que Cai), filme que, como aqueles que acompanham meus textos sabem, referencio constantemente em minha busca por obras que compõem seu cânone. Vertigo foi um dos muitos paradigmas de mudança entre o Cinema Clássico e o Cinema Moderno, um filme-teoria que parece ser o ápice de todo o Hitchcockianismo: as assombrações idealistas de Rebecca (1940), o jogo de encenações em Notorius (1943), o voyeur obsessivo de Festim Diabólico (1948), o controle maquiavélico em Disque M Para Matar (1954), a mancha em Janela Indiscreta (1954), para citar alguns.

Sem me ater a muitos detalhes, Vertigo vai de um romance clássico à uma problemática moderna, emparelhando a fixação do protagonista com a do espectador, representando uma violação no olhar que, entre outras tantas coisas, categoriza essa transição. Nos filmes clássicos, filma-se a ação, os planos se desenrolam com clareza, a câmera apenas mostra. Nos modernos, filma-se o tempo, os planos se desenrolam com objetivos nebulosos, a câmera se torna um participante ativo.

E aí, gosto de acreditar (e espero que logo tenha condições de defender essa tese) que em 1959 foram concebidos os filmes influenciados por Vertigo, pois o ano de 1960 é um dos, se não o mais importante destes últimos 63. A Aventura, O Apartamento, Entre Amigas, A Tortura do Medo, A Cidade dos Mortos, Juventude Desenfreada, A Doce Vida, A Empregada e, claro, Psicose e, mais claro ainda, Acossado. Todos esses, em maior ou menor grau, exploram elementos do filme de Hitchcock, desde suas teorias do olhar a aspectos técnicos que procuram desconstruir as ideias anteriormente concebidas de espaço e tempo (ou seja, o plano) no Cinema.

Nenhum deles, porém, fez tanto barulho como Acossado.

Filmado com um roteiro do qual Godard se entediou no meio da produção, acompanhamos Jean-Paul Belmondo assassinar um policial e… passar os próximos dois dias tentando ir pra cama com Jean Seberg. Se nos atentarmos apenas à trama, Acossado já rejeita as batidas dos Noir que homenageia. A rede de conexões não faz qualquer sentido, a perseguição da polícia fica em segundo plano, o jogo de gato e rato é praticamente uma piada recorrente. O que importa é o tempo, como o sentimos em cada plano, como o sentimos em cada corte. Suas grandes cenas não são perseguições, ou trocas de diálogos afiadas, mas sim Belmondo olhando um cartaz de Humphrey Bogart como se fosse uma criança encantada, e repetindo o gesto que este popularizou.

Acossado é um filme de cinéfilo, feito por um Godard que passou seus anos anteriores ajudando a revolucionar a maneira como a França, o país que inventou o Cinema, via e entendia sua criação. Dos principais contribuintes para a Cahiers Du Cinema, Godard (entre outros de seus contemporâneos) era árduo defensor de Hitchcock, da forma cinematográfica como o elemento principal de qualquer filme. O conteúdo de Acossado não é o que um dia foi escrito no papel, mas o que nasceu frente a câmera.

E chega a ser quase uma ironia não intencional que Godard, um diretor com um olhar pictórico e que cria planos memoráveis, tenha revolucionado o Cinema não ao rejeitar essas convenções (seus enquadramentos, de certo modo, não deixam de ser convencionais), mas ao violar o tempo dentro delas. Se Luis Buñuel promoveu um corte no olhar com Um Cão Andaluz (1929), os jumpcuts figuram como um legítimo corte no tempo. Estes já foram amplamente discutidos, mas seu efeito ainda hoje é de estranheza, é de algo que não condiz com o que o princípio da edição sugere. Pra mim, cada corte de Jean Seberg nela mesma, enquanto passeia por uma Paris que, vista do ângulo certo, lembra minha Porto Alegre, é como uma ênfase no momento, no plano, na imagem. Uma decisão arbitrária, que transcende a própria natureza do Cinema até ali.

E para além da arbitrariedade dessa decisão (Godard literalmente utilizou os jumpcuts para não ter que excluir cenas inteiras do filme, cortando e encurtando os planos), a confiança e a irreverência que permeiam os 90 minutos de Acossado ainda parecem… jovens, ainda parecem, como diz A.O. Scott, um boletim do futuro dos filmes.

Acossado, então, me fez abrir os olhos: com sua reverência, diz que há Cinema antes, com sua irreverência, diz que há Cinema depois e, mais importante, com sua estranheza, diz que há Cinema além.


DE VOLTA

A juventude é desperdiçada nos jovens, dizia alguém que presumimos ser George Bernard Shaw.

Como um bom overthinker, julgo viver na época errada, em uma era onde cada vez mais buscar o conhecimento é algo a que somos desencorajados. Onde a base para se construir uma carreira não reside mais no talento ou esforço, e sim em se adequar a um padrão que os gatekeepers julgam ser aquilo que todos querem consumir. A tiktokização do mundo a todo vapor.

E, claro, o Cinema sofre com isso tanto ou mais do que outras áreas. Sempre se fizeram filmes ruins, e por mais que o que vejamos hoje seja apenas uma repetição do que foram ciclos passados (estúdios se colocando a frente dos artistas), realmente assusta quando você se enxerga dentro disso.

Godard e seus colegas, por meio da Cahiers e de seus filmes que hoje entendemos como a Nouvelle Vague, reagiram a seu respectivo ciclo. Para além da poesia de cinco jovens adultos terminando uma tarde não premeditada assistindo a um filme de Godard no Cinema 63 anos após seu lançamento, estar em uma sessão lotada para celebrar o filme que rompeu com o que antes se entendia por Cinema me parece uma luz - ou quem sabe, um corte - de esperança.

Entre fantasias de Barbie, corridas de Tom Cruise e explosões atômicas, o Cinema parece estar, novamente, vibrando. Que logo venha mais uma nova revolução.

A qual Acossado, indubitavelmente, será um dos responsáveis.

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