Crítica | Barbie

Em uma narrativa que teoricamente fala sobre escolhas e mudanças, Barbie é um filme de contradições.

Digo isso no bom sentido, porque o propósito dessas questões, críticas em forma de ironia realizadas de forma proposital, é fazer o espectador refletir e questionar por que um filme que critica tantas coisas, inclusive a própria Mattel, estaria recebendo os holofotes da empresa entre outros veículos de divulgação. Muitos se chatearam com essas pautas e piadas ao longo do filme, mas esse é o objetivo da sátira, te fazer refletir e questionar.

O longa de duas horas mostra uma dinâmica atrativa - cheio de futilidades, referências, nostalgia, um roteiro simples mas com camadas profundas, e muita comédia. E isso era tudo que recebíamos em trailers e divulgação. Nada além disso. Realmente não sei o que esperavam tanto, mas sei que com expectativas frustradas ou não, os fins lucrativos desse filme foram a lua.

Por fim, apesar da divulgação e comercialização dos produtos em massa, o filme nunca demonstrou muito ser voltado para um público infantil. Tornar isso um defeito do longa seria injusto, pois reprime o filme por inteiro e instaura o preconceito para pessoas que ainda não o assistiram, deixando elas reclusas, quando na verdade é uma obra que atinge muitas pessoas, principalmente mulheres. 

A Barbie estereotipada

Durante a trama, vemos uma Barbie autodenominada como “a estereotipada” que começa a perceber que nem ela e nem sua vida está perfeita e artificial como devia estar. Ao meu ver, foi minuciosa a decisão de atribuir a imperfeição em uma boneca com vários requisitos que a compõem em uma definição de perfeição, uma vez que se analisa a imagem construída em torno dela e encontra-se uma brecha para ser usada no experimento: o seu sorriso.

Nessa linha de pensamento, de acordo com as cenas iniciais do filme, a personagem aparenta estar sempre feliz por estar sorrindo e isso é usado a favor dessa ideia. Desmontaram a boneca e adicionaram suas emoções no decorrer: ansiedade, tristeza, pânico entre muitos outros; e querendo ou não, essas emoções são refletidas em mulheres reais. Criando todo um existencialismo na mente da boneca, ela passava a se sentir confortável com seus novos "requisitos" (sentimentos), e fazendo ela querer continuar tendo eles mesmo depois de um final tecnicamente feliz, pois apesar de ser tecnicamente perfeita, ela começou a não se considerar perfeita e a lidar com isso.

Margot Robbie foi com certeza "uma barbie perfeita demais". Conciliou muito bem o mix de emoções que apresentou no início do filme a um momento mais cauteloso e sensível da metade para o final. Mas quando entrava em ação com o extravagante Ken de Ryan Gosling se tornavam uma junção imbatível. 

 A "vilania" de Ken

Confesso que achei muito mais interessante o núcleo de crise de identidade do Ken. 

A reação do boneco ao chegar nesse mundo foi ficar maravilhado ao descobrir o patriarcado tal qual como um garoto descobrindo a masculinidade de um homem, e nessa comparação, significa poder, mas muitas vezes, de modo superficial esses garotos se influenciam por frivolidades, como Ken gostando da ideia do patriarcado por causa de cavalos, carros e coisas que ele apenas achava legal. 

Gosling foi a escolha perfeita para o boneco, de modo que seria um grande erro não ganhar prêmios. Assisti-lo entregando um personagem na medida certa, sendo engraçado, dramático e muito confortável sendo apenas alguém para Barbie. Até que ele quis mais. 

Para alguém submisso e dependente como Ken, que sempre esteve na sombra da Barbie, ver todas aquelas "oportunidades" de se tornar algo além disso e descobrir o que ele realmente é era uma grande descoberta que ele deveria compartilhar com outros Kens e começar a implantar essa ideia em um lugar que ele pudesse começar do zero: a Barbielândia.

O estudo (ou vivência) de Gerwig sobre a sociedade atual

Acredito que a construção de uma boa história, quando necessária, é essencial, e tanto o núcleo de Ken quanto o núcleo de Barbie se entrelaçam a fim de tornar o contexto em um único enredo. Logo, isso se direciona a relação de ser uma mulher nos dias atuais e a masculinidade tóxica influenciada em um mesmo tipo de dificuldade e frustração, e essa construção se baseia em uma comédia leve que leva reflexões ao espectador, e que me fez questionar alguns ideais.

Outra questão é a abordagem que foi feita para apresentar a Barbielândia como um mundo utópico em que todas essas bonecas acreditavam que foram feitas unicamente para implantar, desconstruir uma ideia e destruir todos os outros conceitos que existiam, diminuindo uma mulher na sociedade a fim de torná-la perfeita: um novo status quo. Como o mundo delas seguia em uma sociedade matriarcal, elas acreditavam que o mundo real seguia o mesmo ideal.

Nessa abordagem foi utilizada a boa e velha quebra da quarta parede, na história contada pela narradora na criação da boneca. Em um mundo que reafirmava para as meninas que uma mulher deveria ser dona de casa e uma mãe comercializando bonecas bebês, a Barbie surgiu na esperança de dar um novo significado para as crianças trazendo uma mensagem de que elas poderiam ser tudo o que quisessem ser. 

Além disso, trazer essa mesma abordagem como um choque de realidade para a barbie no mundo real ao descobrir que ele não funcionava assim e que as barbies não salvaram o mundo foi interessante e aprofundado. Porque afinal, a dupla Greta Gerwig e Noah Baumbach não poupou críticas ao impacto que a boneca trouxe para gerações de crianças, como o corpo e padrões de beleza inalcançáveis, seguindo para o impacto nas afirmações de comportamento social ideal da época (anos 50).

Contudo, não é atoa que a Barbie entra em uma crise existencial que a faz se perguntar se vale a pena voltar a um mundo tão perfeito ou viver a realidade. Nesse blockbuster volto a falar sobre as contradições propositais em relação a boneca e o filme, como fazer um filme com um marketing em peso mas criticando o capitalismo. No diálogo remete-se a uma verdade quanto às bonecas que eles realmente empoderam, que são estereotipadas, e as bonecas que eles fingem que empoderam a fim de ter lucro, que são as que representam a minoria na sociedade.

Cito agora a Gloria, a humana que virou uma grande chave para a solução dos problemas na Barbielândia com um discurso muito real e importante para a narrativa, por se tratar de uma mulher comum falando como é impossível ser uma mulher hoje em dia para a agradar as pessoas, que fez com que várias mulheres no cinema se espelharem.

Incorporando a alma dos filmes Cantando na Chuva e O Mágico de Oz…

O design de produção de Sarah Greenwood conversou com todo o mundo artificial, plastificado e rosa do filme (de um jeito em que não deixasse ninguém enjoado), além de se inspirar no espaço limitado e falso de filmes como cantando na chuva e magico de oz

E em meio a essas limitações impostas, foi provocante colocar a narração em uso tornando aquele mundo sem paredes na nossa imaginação. Os cenários, objetos e roupas remetiam a todos os acessórios e cenários que ganhamos nas caixas da boneca e me fez refletir em como todas essas coisas irreais pareciam tão reais no sentido nostálgico.

E ao falar de filmes antigos que serviram como fonte de inspiração, considero a cena musical da batalha na praia o destaque nesse quesito, trazendo elementos de filmes musicais de época, como Grease, do qual achei bastante similar. 

Com o elenco masculino presente, as coreografias expressaram a virilidade ironicamente, sendo isso explícito tanto na letra quanto no final da música em que eles dançam de mãos dadas em forma de união masculina ao perceberem que são auto-suficientes.

A autoralidade de Greta Gerwig

Greta Gerwig sempre tem como prioridade em seus trabalhos desenvolver suas personagens femininas tanto na emoção como no empoderamento. 

Entretanto, esse seu último trabalho foi o que mais percebi a reflexão das obscuridades femininas que ela traz. Vi em certos aspectos como - algo comum nas obras da diretora - a complexidade das relações entre mãe e filha; um parecer de que qualquer tipo de mulher pode ter seus problemas e suas individualidades em seus pensamentos mais profundos; um adendo do que barbie significa para as novas gerações e as antigas gerações; e também a baixa autoestima de uma boneca que se considerava "perfeita". Trazer todos esses aspectos de uma maneira descontraída e ao mesmo tempo articulada é o típico de Greta.

O filme despertou reações muito distintas, mas o que importa é que, estamos em 2023, e estamos falando de Barbie não como um ideal de beleza, mas como uma discussão sobre questões reais, incluindo papéis diferentes do homem e da mulher na sociedade com dois pontos de vistas - patriarcal (mundo real) e matriarcal (Barbielândia) - em uma abordagem significativa para o público geral.

E adicionando uma outra discussão que vi poucos falarem, é em como o filme impactou as crianças interiores das mulheres que não perceberam quando tiveram que dar adeus a suas bonecas na mesma medida em que se despediram de sua infância. Dando um fim em suas bonecas enquanto estavam recebendo o peso do amadurecimento - atendendo a expectativas a uma aparência, vestimenta e comportamento que antes nunca viam como um grande problema, além de suas mudanças hormonais e com elas os sentimentos e a pressão que nunca tinham sentido antes. Tudo isso chegando excessivamente rápido em suas vidas, e sem saber como lidar, elas acabam tomando decisões que não eram tão importantes para si mesmas mas sim para o seu “ideal” de aceitação.

Barbie foi uma carta aberta para mulheres que não se despediram da infância e nem cresceram da maneira certa. Não apenas um filme sobre uma boneca.

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