Crítica | Acossado
Em meio a quarentena, impus para mim mesmo a meta de assistir ao máximo de filmes possível, algo que estou catalogando pela primeira vez.
Mas, confesso, fiquei preguiçoso com a enorme quantidade de canais liberados na TV fechada e me limitei às programações - que oferecem, ao menos, dois bons filmes por dia, é verdade. O problema é que não há qualquer sequência ou lógica em assistir a estas obras, então decidi que o melhor era escolher um diretor e assistir uma sequência de seus filmes. O escolhido da vez: Jean Luc Godard e sua contribuição para a Nouvelle Vague.
*Alguns destes filmes são clássicos e já foram analisados extensivamente, então coloco como objetivo pessoal comentar aspectos que continuem relevantes até hoje, 2020.
Em 16 de março de 2020, “Acossado”, primeiro filme de Godard, completou 60 anos e segue como um dos filmes mais influentes de todos os tempos. Porém, é inevitável notar que não envelheceu tão bem para o que entendemos hoje como bom cinema.
*(Após um ano de estudo, aprendizagem e reflexão, refuto completamente o que escrevi no final deste parágrafo, “Acossado” segue maravilhoso)*
Inundado de jump cuts, utilizados não como recurso narrativo mas como forma de deixa-lo mais curto, o filme se mostrou pioneiro em uma técnica que é até hoje utilizada no cinema de ação, mas raramente é vista em filmes mais calmos e pacientes como este. Pois apesar de apresentar uma espécie de Boonie & Clyde, “Acossado” é menos sobre os feitos e mais sobre os feitores e o que mais me chamou atenção, e mais tenho interesse em discutir, é a personagem de Jean Seberg, Patricia.
Se os primeiros dez minutos sugerem que é o Michel de Jean-Paul Belmondo o personagem principal, ele e sua admiração quase obsessiva por Humphrey Bogart e por tentar parecer como um gângster que claramente não é se tornam em uma tentativa digna de pena e que, ao menos para mim, soa extremamente desinteressante. Michel veste uma carcaça que, em momento algum, consegue disfarçar o quão raso realmente é, coisa que a falta de expressão de Belmondo amplifica consideravelmente. Em uma cena, Patricia diz que quando o olha queria enxergar a ele, e não ao reflexo dela mesma, mas é apenas óbvio, pois enquanto ela está em busca de um significado maior para sua vida, ele já se contentou com o que acredita ser e com o fato de que tem uma mulher muito melhor do que si ao seu lado - o que não o faz valoriza-la como merece.
Nesta cena em questão, longa e linda de se olhar, com os dois sentados fumando em um quarto iluminado pelo sol na janela, conhecemos o suficiente sobre ambos para fazermos a transição: ela é muito mais instigante do que ele. A forma como Godard a enquadra é quase óbvia, centralizada em várias cenas, assim como Michel também é, mas enquanto ele é filmado constantemente de cima, para parecer insignificante, ela vemos na altura dos olhos, ressaltando a beleza da atriz e a aura quase angelical que passa.
Em uma cena, ela pergunta a Michel quem é mais bonita, ela ou a menina de um quadro atrás de si. Ela tenta descobrir se realmente o ama. Tenta tirar algo de Michel, enquanto o mesmo quer apenas tirar sua roupa para transarem mais uma vez. Ela enrola uma revista em forma de telescópio e aponta para ele, mas nele não há universo, apenas vazio. É quase impossível entender o que ela vê nele, mas como o documento de sua época que é, “Acossado” retrata bem o papel limitado que a mulher tinha na sociedade: Patricia parece estar com Michel, ou com outros homens muito menos atraentes ou interessantes, porque o mundo, infelizmente, era assim.
Em outra cena crucial para entendermos não apenas ela, mas os objetivos de Godard, a vemos perguntando qual o papel da mulher na sociedade em uma entrevista, onde é cortejada pelo entrevistado que, obviamente, ignora a pergunta. Os cortejos a deixam lisonjeada, a ignorância não provoca qualquer resposta.
Mas se engana quem pensa até ali, e eu confesso que pensava, que Patricia era uma especie de heroína. Ao final, quando trai Michel apenas para se certificar que não o ama de verdade, surge, ao meu ver, a maior questão narrativa levantada pelo filme. Ou ela ama tanto Michel que precisava mata-lo para poder tocar a vida sem ele - o que definitivamente é o melhor para ela -, ou ela é uma verdadeira psicopata, sem sentimentos, que cansou de se divertir com um ser insignificante, cujo último suspiro fora a fumaça do cigarro que fumara durante todo o filme, uma das muletas que adotava para parecer com quem queria parecer.
Há evidências para ambas as hipóteses, mas, no momento, tendo para o lado da segunda. Ao não entender o que Michel diz na última cena, há a mesma pureza em seu olhar que no resto da projeção, mas agir assim após sentenciar o amado a morte não é a atitude de alguém que sinta de verdade. O que torna Patricia uma criatura intrigante, um exemplo da jovem mulher no início dos anos 60, capaz de sonhar, mas fadada a um mundo rodeado de homens que apenas veem seu exterior e que a querem para si, enquanto ela quer o mundo. Se o fato de ela precisar de atitudes absurdas para isso a tornam desprezível? Talvez, mas de uma coisa tenho certeza, todas as vezes que revisitar esta obra - seja assistindo-a ou mesmo em minha cabeça - a imagem daquela linda jovem, retratada de forma quase angelical e tudo que ela esconde sob a superfície, vão me maravilhar e assombrar. Ao mesmo tempo.